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Reflexões sobre a criação do Estado Nacional: o arcaísmo brasileiro

Por Felipe Quintas, Gustavo Galvão e Pedro Augusto Pinho

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Gustavo Galvão
Gustavo Galvão
Gustavo Galvão. Economista e Doutor em Economia pela UFRJ. Autor do livro "Finanças Funcionais e a Teoria da Moeda Moderna" (clique aqui para ver ou comprar https://www.amazon.com.br/Finanças-Funcionais-Teoria-Moeda-Moderna-ebook/dp/B08BKTNFDJ) e do livro que será publicado no primeiro trimestre de 2021: "Problemas, Limites e Oportunidades das Finanças Funcionais e da Teoria da Moeda Moderna – MMT: Inflação, Câmbio e Restrição Externa"

No momento de turbulência planejada que vive o Brasil de hoje, terceira década do século XXI, a vítima principal tem sido o Estado Nacional. Se nenhum outro motivo existisse para o entendimento que esta situação é fruto de ação planejada, produzida e financiada pelo exterior, este desmonte do Estado bastaria para comprovação.

Afinal quem, que não seja o estrangeiro ou um traidor da Pátria, agiria para destruir o instituto básico da representação do povo e garantidor de seu espaço, da própria identidade, ou seja, o Estado Nacional? Somos brasileiros ou apátridas ou qualquer inominada colônia?

Não faremos retrospectiva histórica. Vamos olhar para frente. Mas não é possível deixar de nos referir aos poucos instantes em que o projeto de Brasil tinha a clareza e consciência do significado do Estado Nacional. O mais longínquo ocorre quando da própria independência política formal do Brasil, pelo talento e nacionalismo do Patriarca da Independência, o projeto de José Bonifácio de Andrada e Silva.

Bonifácio e Vargas lançaram-se à obra fundamental de edificação do Estado Nacional

Um aspecto até hoje não resolvido, fundamental para Bonifácio, era a escravidão. E escravos eram os africanos, para aqui trazidos, e seus descendentes, e também a população originária, os índios, e, até mesmo, brancos pobres submetidos ao sistema de oligarquias locais.

“A sociedade civil tem por base primeira a justiça e por fim principal a felicidade dos homens; mas que justiça tem um homem para roubar a liberdade de outro homem, e o que é pior, dos filhos deste homem, e dos filhos destes filhos? Mas dirão talvez que favorecerdes a liberdade dos escravos será atacar a propriedade. Não vos iludais, senhores, a propriedade foi sancionada para bem de todos, e qual é o bem que tira o escravo de perder todos seus direitos naturais e se tornar de pessoa a coisa, na frase dos jurisconsultos? Não é pois o direito de propriedade que querem defender, é o direito da força, pois que o homem, não podendo ser coisa, não pode ser objeto de propriedade”. (José Bonifácio de Andrada e Silva, Representação à Assembleia Geral Constituinte e Legislativa do Império do Brasil sobre a Escravatura, in Projetos para o Brasil, organização de Miriam Dolhnikoff, Companhia das Letras, SP, 1998).

“Mas a cobiça”, diz José Bonifácio, “não sente nem discorre como a razão e a humanidade”. E, fruto dela, o país se fragmenta num falso federalismo que só sofrerá, já no alvorecer da república, a crítica dos positivistas. Consequência desta imoralidade institucionalizada é a miséria. “A maior corrupção se acha onde a maior pobreza está ao lado da maior riqueza”.

Portanto, via com clareza nosso Patriarca que a escravidão, fruto da cobiça, desestruturava o Estado e produzia corrupção e violência. Males que ainda nos atormentam, passados dois séculos. Completaremos nossos 200 anos de uma independência inexistente, com o poder dominante buscando destruir os poucos, nem mesmo aprofundados, avanços obtidos neste período.

Bonifácio, no texto sobre a escravidão, faz uma observação: “Ler o sermão da 1ª Dominga da Quaresma, de Vieira”. Neste sermão, Padre Antônio Vieira trata das tentações. E pergunta se, entregando a alma pelo mundo, faria um bom negócio. A resposta é contundente: “Quid prodest homini si mundum universum lucretur: animae vero suae detrimentum patiatur?” Em tradução livre: “Que proveito terá do mundo o homem cativo, escravo do demônio?”.

Foi e continua sendo a escravidão, que conduz à força da violência e à corrupção legalizada, o grande mal brasileiro. São hoje escravos não só pela raça ou pela miséria, mas pelos uber, pejotização, ausência dos direitos trabalhistas, todos os brasileiros. Em breve, esta situação escravagista avançará nos empregos públicos, terceirizados, e na substituição das Forças Armadas por milícias. É o projeto neoliberal em vigor e resultante dos golpes aplicados pelas Forças Armadas, pelos intermediários dos capitais estrangeiros, pelos que cederam à tentação da cobiça e das ideologias colonizadoras.

E sempre com os recursos da espionagem, dos órgãos de inteligência estrangeiros: CIA, MI6, Mossad. E abundância de recursos financeiros que sairão de nosso próprio bolso e, novamente, nos remete ao sermão de Vieira: a Cristo, com fome, o diabo oferece pão. “Sem pão para a boca não pode viver”, e se cria a cultura do supérfluo, das vaidades, da venalidade pelo dinheiro e pelo poder. Mau começo para formação de um povo.

Como entendeu claramente Bonifácio, trocou-se a nacionalidade de uma potência, que poderia ser a maior do mundo, o Brasil unido a Portugal, por um autoritarismo provinciano, pela visão estreita e tacanha do despotismo que vem da insegurança, da arrogância que camufla o medo, do complexo de vira-lata, que submete corpo e alma.

Tratemos de outro arcaísmo: o federalismo brasileiro. Sylvio Romero, no prólogo da 1ª edição (18 e 19 de maio de 1888) da História da Literatura Brasileira (H. Garnier, Livreiro-Editor, 1902, 2ª edição), escreve: “A ideia de federação assenta em dois falsos pressupostos: a crença errônea de nos convir o que convém aos anglo-americanos e a falsa teoria de supor que para lá nos levam as lições da história”.

E o mesmo jurista e pensador brasileiro, em A Integridade do Brasil (in Realidades e Ilusões no Brasil Parlamentarismo e Presidencialismo e Outros Ensaios, Vozes e Governo do Estado de Sergipe, 1979), dispõe: “A fase da colônia no Brasil, aliás, tomada em seu conjunto, (foi) muito mais bem orientada do que a do Império e incomparavelmente mais do que a do federalismo atual”. Detalha: “Os colonizadores desta porção da América estavam de posse, desde dois ou três séculos antes, da unidade da raça, de religião, de governo, de direito, de instituições”. Enquanto “nos Estados Unidos a dispersão, o particularismo, o separatismo vinham já nos navios que transportavam os colonos, quase sempre, de credos religiosos diferentes, de tendências políticas antagônicas”. E conecta, para a unidade do Estado e do direito, “o catecismo do jesuíta e as Ordenações do Reino”.

Façamos pequena retrospectiva. A ideia unitária vinha do insucesso privatista das capitanias hereditárias. Em 1548, Portugal cria, para toda a extensão da colônia, o Governador Geral, aqui chegando, no ano seguinte, Tomé de Sousa, com aproximadamente mil pessoas, e o Regimento Régio de 17 de dezembro de 1548.

Até a junção de Portugal à Espanha (1580 a 1640), todo o espaço colonial era um único Estado do Brasil. E foi somente em 1621 que Felipe III, da Espanha, resolveu criar o Estado do Maranhão. E, até a Independência, ora juntos, ora separados, Maranhão e Grão Pará se subordinariam diretamente a Lisboa.

Vê-se que a ideia federativa, como tantas cópias mal feitas, não está na formação do povo brasileiro. Do vício de se buscar modelos estrangeiros, de se importar soluções, fomos ficando cada vez mais tacanhos, menos criativos, mais medíocres a ponto de termos um presidente de tão poucas letras e ideias, e eleito (!).

Mas, também notável, o que só se explica pelos ardores políticos, Sylvio Romero combateu o positivismo castilhista. Não que vejamos uma cópia melhor do que outra, mas a Revolução de 1930, herdeira de Castilhos, foi um dos melhores, senão o melhor momento, da criação do Estado Nacional Brasileiro.

Em março de 1912, sob o título O Castilhismo no Rio Grande do Sul (in obra citada), não poupou governantes e governados: “Almas semibárbaras de egressos do regime pastoril, envenenadas, além disso, pelas doutrinas e manhas ditatoriais de um meio positivismo grosseiríssimo – essas da classe hoje dirigente no Rio Grande do Sul – não trepidam no manejo dos atos mais violentos na repressão daqueles que se desviam das normas do seu estreito politicar, e menos ainda em cobrir de insultos e baldões a quem quer que não diga amém a todas as suas tresloucadas pretensões”. Céus, parece que foi literalmente ontem.

A emancipação nacional e a libertação do povo brasileiro dependem, assim, da edificação do Estado Nacional compatível com a grandeza territorial e populacional brasileira.

Em outros tempos, José Bonifácio, herdeiro do Iluminismo do Marquês de Pombal, e Getúlio Vargas, herdeiro do positivismo castilhista gaúcho, lançaram-se à obra fundamental de edificação do Estado Nacional. Com Bonifácio, ganhamos a Independência formal, Exército, Marinha e evitamos a balcanização. Com Getúlio, ganhamos uma administração pública moderna, a soberania (hoje perdida) sobre nossos recursos naturais, a Petrobras, os direitos trabalhistas e iniciamos um dos maiores processos de desenvolvimento econômico no século XX.

Ambos foram derrubados pelas oligarquias cipaias, mas nos legaram o que hoje o Brasil tem de melhor. Cabe a nós seguirmos a trilha deixada por nossos grandes estadistas para nos tornarmos o Brasil brasileiro que podemos ser.

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