“Com a permissão de nossos deuses, de nossos irmãos mais velhos e de nossa Pachamama,[1] de nossos ancestrais, de nossos achachilas,[2] com a permissão de nosso Patujú,[3] de nosso arco-íris, de nossa folha de coca sagrada.
Com a permissão de nossos povos, com a permissão de todos os presentes e não presentes nessa Câmara.
Hoje quero compartilhar aqui, o nosso saber, em alguns minutos.
Comunicar é obrigação, dialogar é obrigação, é um dos princípios do bem-viver.
Os povos de culturas milenares, da cultura da vida, mantemos nossas origens desde os primórdios da antiguidade.
Nós, crianças, herdamos uma cultura milenar que entende que tudo é interligado, que nada é dividido, que tudo é dentro e nada é fora.
‘Vamos juntos’
Por isso nos dizem que caminhemos juntos, que vamos todos juntos, que deixar ninguém para trás, que todos tenham tudo e nada falte a ninguém.
Que o bem-estar de todos é o bem-estar de si mesmo. Que ajudar é razão de crescer e ser feliz, que desistir pelo bem do outro nos fortalece, que nos unir e reconhecer-nos no todo é o caminho de ontem, hoje, amanhã e sempre do qual nunca nos desviamos.
O ayni,[4] a minka,[5] a tumpa,[6] nosso colka[7] e outros códigos de culturas milenares são a essência de nossa vida, de nosso ayllu[8].
Ayllu não é apenas organização de sociedades humanas, ayllu é sistema de organização da vida de todos os seres, de tudo que existe, de tudo que flui em equilíbrio em nosso planeta, nossa mãe, a Terra.
Durante séculos os cânones civilizadores de Abya Yala[9] foram desestruturados, dessemantizados e muitos deles exterminados, o pensamento originário foi sistematicamente submetido ao pensamento colonial.
Mas não conseguiram nos apagar, nós estamos vivos, somos de Tiwanaku,[10] somos fortes, somos como pedra, somos Kalawawa[11] somos cholke,[12] somos sinchi,[13] somos rumy,[14] somos Jenecherú,[15]fogo que não se apaga, somos de Samaipata,[16] somos o jaguar, somos Katari,[17] somos Aïnous, Maoris, Comanches. Somos Maias, somos Guaranis, somos Mapuches, Mojeños, somos Aimaras, somos Quechuas, somos Jopis e somos todos os povos da cultura da vida que despertamos nossos larama,[18] iguais, rebeldes cheios de sabedoria.
‘Uma transição, a cada 2.000 anos’
Hoje, Bolívia e o mundo vivem uma transição que se repete a cada 2.000 anos, o ciclo do tempo. Vamos de nenhum tempo ao tempo, do intemporal ao temporal, começando um novo amanhecer, um novo Pachakuti[19] em nossa história.
Um novo sol e uma nova expressão na linguagem da vida, na qual a empatia pelo outro ou o bem coletivo substitui o individualismo egoísta.
Onde os bolivianos nos olhamos todos iguais e sabemos que unidos valemos mais. Estamos em tempo de ser Jiwasa[20] de novo, não se trata de ‘eu’: trata-se de ‘nós’.
Jiwasa é a morte do egocentrismo, Jiwasa é a morte do antropocentrismo e o fim do eurocentrismo.
Estamos em tempo de voltar ao Jisambae,[21] o código que protegeu nossos irmãos Guaranis. Jambae[22] é o que não tem dono. Ninguém nesse mundo há de se sentir proprietário de alguém e de algo.
Desde 2006, na Bolívia, iniciamos um trabalho árduo para conectar nossas raízes individuais e coletivas, para voltar a ser nós mesmos, para retornar ao nosso centro, ao nosso taypi,[23] à pacha,[24] ao equilíbrio que deixa brotar a sabedoria das civilizações mais importantes de nosso planeta.
Estamos em processo de resgatar nossos conhecimentos, os códigos da cultura da vida, os cânones civilizatórios de uma sociedade que viveu em íntima conexão com o cosmos, com o mundo, com a natureza e com a vida individual e coletiva. De construir o nosso sumak kamaña,[25] nosso bem-viver, a partir do nosso sumajakalle,[26] que é garantir o bem individual e o bem coletivo ou comunitário, nosso sake.[27]
Uma das referências inabaláveis da nossa civilização é a sabedoria herdada da terra, e da Pachakama[28]. Garantir equilíbrio em todo o tempo e espaço é saber administrar todas as energias complementares, a cósmica que vem do céu, e a da Terra, que emerge de debaixo do chão.
Chacha-warmi[29]
Estamos em tempos de resgatar nossa identidade, nossas raízes culturais, nosso bem. Temos raízes culturais, temos filosofia, temos história, temos tudo, somos pessoas e temos direitos.
Essas duas forças telúricas interagem criando o que chamamos de vida, como uma totalidade visível (Pachamama) e espiritual (Pachakama).
Ao entender a vida em termos de energia, temos a possibilidade de modificar nossa história, matéria e vida como a convergência da força chacha-warmi, quando nos referimos à complementaridade dos opostos.
O novo tempo que iniciamos será sustentado pela energia do ayllu, da comunidade, do consenso, da horizontalidade, dos equilíbrios complementares e do bem comum.
Historicamente, a revolução é entendida como um ato político para mudar a estrutura social, a fim de transformar a vida do indivíduo. Nenhuma revolução jamais modificou a conservação do poder para controlar o povo. Não conseguimos mudar a natureza do poder, e o poder conseguiu distorcer a mente dos políticos. O poder conseguiu corrompe-los.
“Nossa revolução é a revolução das ideias”
Esse é um desafio que assumiremos com a sabedoria dos nossos povos.
Nossa revolução é a revolução das ideias, é a revolução dos equilíbrios, porque estamos convencidos de que para transformar a sociedade, o governo, a burocracia e as leis e sistemas políticos, devemos mudar como indivíduos.
Vamos promover a conjunção com as oposições, buscar as coincidências entre a direita e a esquerda, entre a rebeldia dos jovens e a sabedoria dos anciãos, entre os limites da ciência e da natureza inquebrantável. Entre as minorias e as maiorias tradicionais. Entre os doentes e os sãos. Entre os governantes e os governados. Entre o culto à liderança e doação do indivíduo, para servir aos outros.
Nossa verdade é muito simples. O condor só alça voo quando sua asa direita está em perfeito equilíbrio com a esquerda. A tarefa de nos formarmos como indivíduos equilibrados foi brutalmente interrompida há séculos. Não a concluímos. Mas o tempo da era ayllu, comunidade, chegou e já está conosco.
Requer que sejamos indivíduos livres e equilibrados para construir relacionamentos harmoniosos com os outros e com o nosso meio ambiente. É urgente que sejamos seres capazes de manter o equilíbrio, para nós mesmos e para a comunidade.
Estamos no tempo de Apanaka Pachakuti,[30] irmãos da mudança, quando nossa luta não é luta só por nós, mas também por eles, não contra eles. Buscamos o mandato, não buscamos o confronto. Buscamos a paz. Não somos da cultura da guerra nem da dominação. Nossa luta é contra todas as formas de submissão e contra o pensamento colonial único, patriarcal, venha de onde vier.
A ideia do encontro entre o espírito e a matéria, o céu e a terra de Pachamama e Pachakama nos permitem pensar que uma nova mulher e um novo homem serão capazes de curar a humanidade, o planeta e a bela vida que nele há e devolver a beleza para nossa terra-mãe.
Defenderemos de todas as interferências os tesouros sagrados de nossa cultura. Defenderemos nossos povos, nossos recursos naturais, nossas liberdades e nossos direitos.
“Voltaremos a Qhapak Ñan”
Voltaremos ao nosso Qhapak Ñan[31] – o nobre caminho rumo à unidade, à integração, o caminho da verdade, o caminho da fraternidade, o caminho do respeito a nossas autoridades, a nossas irmãs, o caminho do respeito ao fogo, o caminho do respeito à chuva, o caminho do respeito às nossas montanhas, o caminho do respeito aos nossos rios, o caminho do respeito à nossa terra-mãe, o caminho do respeito à soberania dos nossos povos.
Irmãos, para concluir.
Os bolivianos devemos superar a divisão, o ódio, o racismo, a discriminação entre compatriotas. Devem pôr fim à perseguição contra liberdade de expressão. Fim da judicialização da política.
Chega de abuso de poder. O poder tem de ajudar, o poder tem de circular, o poder, assim como a economia, tem de ser redistribuído, tem de circular, tem de fluir, assim como o sangue corre em nosso corpo. Chega de impunidade. Justiça, irmãos.
Mas a justiça tem de ser verdadeiramente independente. Ponhamos fim à intolerância, à humilhação dos direitos humanos e de nossa terra-mãe.
O novo tempo significa ouvir a mensagem dos nossos povos, que vem do fundo do coração, significa curar feridas, olhar para nós com respeito, recuperar a pátria, sonhar juntos, construir fraternidade, harmonia, integração, esperança para garantir a paz e a felicidade das novas gerações.
Só então podemos alcançar o bem-viver e governar-nos nós mesmos.
Jallalla Bolivia! Viva a Bolívia! [fim do discurso]
[1] Mãe-terra.
[2] Espíritos dos ancestrais que protegem a comunidade.
[3] Flor cujas cores vermelha, amarela e verde são simbolizadas na bandeira da Bolívia.
[4] Princípio da reciprocidade.
[5] Tradição do trabalho coletivo para finalidades sociais.
[6] Protocolo de convite, de invocação dos espíritos sagrados dos mortos.
[7] Grande armazém onde se guardam principalmente alimentos.
[8] Comunidade de várias famílias cujos membros consideram que tenham origem comum, seja filial ou religiosa, que trabalha coletivamente em território de propriedade da comunidade.
[9] Nome que o povo Kuna usa para se referir às Américas.
[10] Designa o local considerado berço da civilização pré-incaica de mesmo nome.
[11] Transparente, que nada esconde.
[12] Grão muito difícil de quebrar, tradicionalmente posto em volta do pescoço de recém-nascidos.
[13] Fortes, corajosos.
[14] Duros de cozinhar.
[15] Palavra de origem tupi-guarani que significa “fogo eterno”, “fogo que não se apaga”.
[16] Nome do local onde se ergue o rochedo esculpido, místico e misterioso de Samaipata.
[17] Divindade representada pela serpente alada, que simboliza a vitalidade da água que irriga as terras cultivadas e permite a existência das comunidades.
[18] Os sábios, filósofos e cientistas.
[19] “Mudança da terra”, chegada de novo tempo, volta ao equilíbrio, à igualdade original.
[20] Um todo, composto de singularidades.
[21] Sistema codificado de comunicação dos Guaranis.
[22] Como lê-se no texto, “indivíduo livre, sem patrão”.
[23] Núcleo ou centro da Terra, ponto de encontro das energias positivas e negativas, lugar dos opostos, onde coexistem os contrários.
[24] Terra, cosmos, universo, tempo-e-espaço.
[25] Bem-viver. O conceito do bem-viver.
[26] Ação de assegurar o bem individual e o bem coletivo ou comunitário.
[27] Raiz cultural.
[28] Universo espiritual, que complementa a Pachamama.
[29] Complementaridade de opostos, dualidade e harmonia.
[30] “Compreendamos os irmãos da oposição política”.
[31] Verdadeira via, o justo caminho. Expressão que também designa a famosa rede de estradas que cobria o Império Inca.
Tradução: Coletivo Vila Mandinga