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E o golpe das quimeras Tech? Dará certo?

Alastair Crooke, Strategic Culture Foundation

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“Não voltaremos para a mesma economia”, disse [Jerome] Powell, presidente do Federal Reserve, recentemente: “Estamos nos recuperando, mas para uma economia diferente, e será economia mais alavancada para a tecnologia – e temo que tornará tudo ainda mais difícil do que antes, para muitos trabalhadores.” Klaus Schwab, presidente de Davos, foi mais rude: “Nada jamais voltará ao senso ‘quebrado’ de normalidade que havia. Seremos (…) surpreendidos seja pela rapidez seja pela natureza das mudanças não esperadas– que virão em conflito umas com outras, provocarão efeitos em cascatas e resultados não previstos”. Schwab deixa claro que a elite ocidental não permitirá que a vida volte ao normal, sugerindo que lockdowns e outras restrições hoje em curso podem tornar-se permanentes.

‘Recuperação para uma ‘economia diferente’? Ora… De fato, o apavorante ‘golpe’ já há algum tempo está aí, à vista de todos. As mudanças foram menos noticiadas – em parte porque as elites ocidentais rapidamente se aferraram à narrativa do livre mercado, ao mesmo tempo em que, ao longo das décadas, vão-se deslocando progressivamente para uma economia oligárquica que floresce ao lado da economia de livre mercado.

Mesmo assim foi importante metamorfose, dado que fez o trabalho de base para fusão mais fundamental de interesses, da oligarquia do business e do governo. Essa fusão costumava ser chamada de ‘estado administrativo’, e foi amplamente praticada na Europa do século 19.

Se queremos compreender as raízes desse ‘golpe silencioso’, temos de voltar ao ethos que emergiu da 2ª Guerra Mundial. Foi uma reação de ‘nunca mais’ àquele terrível morticínio dos tempos da guerra, e carregava a noção de que o sangue derramado tinha, de algum modo, de ser ‘redimido’, movendo-se todos rumo a sociedades mais justas, mais igualitárias. Esses sentimentos converteram-se em ativismo, o que culminou nos anos 1960s – ‘evento’ que assustou as elites dos negócios nos EUA.

As elites providenciaram a respectiva ‘contrarrevolução’. Fizeram lobbylobbyearam feito doidas, elevaram a própria empreitada de lobbying ao plano de empresa em ‘escala industrial’, com ‘brigadas’ de advogados e muito big money. E hoje são trilhões de dólares em jogo: a Rua K (K Street, no centro de Washington, onde estão instaladas os grandes escritórios de advogados e lobbysts em geral) é o local onde, de fato, se faz a ‘salsicha’ legislativa, não no Congresso. Existe fora do Congresso, ao qual a ‘salsicha’ é vendida, numa troca benéfica para os dois lados.

Gradualmente, um segmento dos velhos Boomers radicais foram-se convertendo ao novo etos das GC (Grandes Corporações); enquanto outro segmento entrou para a política, e muitos viriam a ser líderes políticos do país. Não é difícil ver como uma visão-de-época comum poderia emergir disso. Convicção rala, pró-grandes corporações no geral e comprometido com a ideia de governo da elite, ‘cientificamente administrado’.

O ponto aqui é que jamais houve qualquer coisa de inevitável nesse golpe oligárquico ‘silencioso’ com assalto ao poder, comandado pelos EUA. Nada aí foi jamais imutável. Aconteceu nos EUA, como antes já ‘acontecera’ na Europa, no século 19. Os radicais Boomers jamais foram verdadeiramente ‘revolucionários’ – e os oligarcas aproveitaram-se de tantas reticências.

Mas o influxo dos Boomers para o mundo corporativo e do business já havia fixado antes aquele movimento incremental rumo a uma fusão de grande business e governo. Na sequência, aquela fusão está agora sendo consolidada mediante os programas de ‘alívio financeiro’ monetário dirigido ao setor empresarial. E o terceiro passo – a guerra tecnológica entre EUA e China –, que está ao mesmo tempo consolidando o Vale do Silício e a oligarquia corporativa, e abrindo a via para uma tomada mais profunda do poder, que visa a impor uma pequena elite Techno no topo de uma governança global e no comando do dinheiro e de ativos globais digitais. É o Re-Set – que visa a forjar a nova ordem global a seu próprio favor.

Isso posto, voltemos ao alerta de Jerome Powell sobre uma ‘recuperação’ para “uma economia diferente”. Vê-se aí um sopro de inevitabilidade; quer dizer, Powell está expondo a evidência de que o Fed ‘está autoencurralado’. Mas Schwab, ao promover uma ‘bem-vinda mudança de paradigma’, é diferente. Vê-se que está numa ideologia excepcionalista, sem qualquer coisa de inerentemente inevitável. Não se deve confundir essas duas posições.

Problema é que, no ‘novo normal’ do coronavírus, Powell goste ou não goste, o segmento pró livre mercado das economias ocidentais está sendo sistematicamente destruído, ao mesmo tempo em que a maior parte dos estímulos econômicos está sendo canalizada para as mais gigantescas das corporações multinacionais, e para bancos sistemicamente importantes. Será, sim, economia diferente. Essa fusão de governo e big business foi reforçada durante a pandemia, e isso claramente facilita os que cultivam esperanças de um re-set fundamental da ordem global. A guerra Tech é a cereja do bolo: se o Vale do Silício vencer a aposta que faz na hegemonia das tecnologias, esses gigantes Tech norte-americanos serão players políticos globais. Mesmo hoje, já estão próximos disso.

Será que o golpe “das Tech” será bem-sucedido? Ou será que a ideologia – a visão da oligarquia – que há por trás dele, simplesmente decairá para um grande jogo de soma zero entre Techs gigantes rivais, tão semelhante à rivalidade entre grandes potências no século 19? Não esqueçamos que aquelas rivalidades não acabaram bem. Conforme as coisas estão hoje entre EUA e China – por conta da diferença fundamental que há entre rivalidade de empresas de tecnologia e concorrência comercial tradicional – um confronto direto é bem possível. Qual então é essa qualidade inerente das Tech que as diferencia do comércio ordinário, e exacerba o risco de nova guerra à moda do século 19? Explico.

Não faz muito tempo, imaginava-se que a economia digital pairaria acima da geopolítica convencional. A Internet global, aspirando a ser livre e aberta, era vista como tecnologia para todos os fins – motor de combustão interna tão revolucionário quanto fungível, e um bem de muitos, no sentido dos ‘public commons’. Essa quimera alcíone Tech sobrevive na opinião pública, mesmo quando elementos da mesma Tech já assumiram a função bem mais sombria de vigiar e disciplinar a sociedade, a serviço do ‘grande irmão’.

Acelere o filme, chegamos a hoje: Data são o novo ‘petróleo’, e tornaram-se a mercadoria estratégica pela qual os governos combatem, tentando proteger, defender e mesmo organizar-se em rebanho, deixando de fora os demais. Cada estado sente-se agora obrigado a ter sua ‘estratégia para Inteligência Artificial, IA’, com vistas a ‘refinar’ esse neocru para extrair dele derivados e lucros. Se as grandes potências guerreavam por petróleo, hoje lutam (talvez com menos alarido) por dados. Taiwan pode ser simplesmente um pretexto, por trás do qual espreitam as ambições dos EUA, de dominar as normas e padrões para décadas adiante.

O otimismo que a internet original fez brotar, como um ‘bem’ global, já cedeu lugar a uma disputa furiosa pela hegemonia tecnológica – disputa que pode facilmente, algum dia, ‘esquentar’. Alguém poderia supor que a geração seguinte, na tecnologia digital, manteria o padrão de Internet ‘ganha-ganha’ para todos. Mas não aconteceu assim. A aprendizagem maquínica é diferente, refere-se a uma ‘modelagem’ não pré-programada – como quando se tem um código, que são instruções, que o computador executa.

O computador hoje recebe um conjunto de modelos de aprendizagem da Inteligência Artificial os quais capacitam os computadores para que eles mesmos extraiam padrões de grandes conjuntos de dados, e desenvolvam seus próprios algoritmos (regras para decidir). Esses novos algoritmos que a máquina desenvolve são então aplicados a novos dados, problemas e questões (o que pode ser muitíssimo lucrativo – como no caso da análise em nuvem [ing. Cloud analytics).

Esses algoritmos são ferramentas efetivamente úteis e têm seus aspectos positivos. Não são particularmente novos, e máquinas não são particularmente boas no ‘serviço’ de aprender. Estão absolutamente muito longe da psique humana, e modelos que funcionam bem em laboratório frequentemente falham na vida real. Mas em áreas específicas, onde haja bons conjuntos de dados, esses algoritmos podem ser transformadores (i.e., na Medicina, na Física, na exploração de energia, na Defesa, etc.).

E é aí que se revela a dinâmica da rivalidade geopolítica. Isso porque, quando se unem os big data e as máquinas com sistemas avançados de aprendizado, forma-se um circuito de retroalimentação positiva (ing. a positive feedback loop), pelo qual melhores dados alimentam melhores análises, as quais, em troca, geram retornos potenciais maiores quando aplicados a outros conjuntos, separados, de dados. Cria-se, para resumir, uma dinâmica de acumulação – mais lucro, mais peso político; mais gera mais. E nessa competição, quase sempre, líderes e retardatários serão estados.

É precisamente isso – a busca frenética por um circuito de retroalimentação positiva, e o medo de ser deixado para trás – que pode rachar ao meio o planeta, de deixarmos que aconteça.

E essa característica de retroalimentação na análise que torna a rivalidade entre as Big Tech diferente da concorrência comercial que já se conhece. Big data e análise rápida como raio acabarão por determinar a supremacia militar, bem como os padrões de liderança de empresas Tech. Essas empresas chamadas em conjunto Big Techs portanto, atraem intenso interesse dos governos, não simplesmente como reguladores, mas como principais usuários, financiadores e às vezes como proprietários de tecnologias. Daí que, nessa ótica, a fusão oligárquica tenha embutido um intensificador – a fusão da oligarquia com interesses de governos é hoje mais estreita.

Mesmo assim, a rivalidade ‘quente’ na disputa por dados e algoritmos não é predeterminada. Outra vez, o ponto é que o recurso atual à Tech War, à guerra das tecnologias que temos hoje, reflete precisamente um modo de pensar – uma ideologia. Recentemente, o Global Times chinês publicou artigo assinado por Xue Li, diretor da Academia Chinesa de Ciências Sociais, que explica precisamente esse ponto:


Baseada no monoteísmo cristão, no espírito da lei romana e na lógica formal grega, a civilização ocidental considera os problemas e a ordem do mundo, quase sempre, da perspectiva da oposição binária. Portanto, ocidentais preferem fazer alianças na diplomacia, para assim limitar e até assimilar seus aliados mediante mecanismos obrigatórios. Assim conseguem confrontar e em alguns casos derrotar os não aliados.

“Ao mesmo tempo, creem firmemente que todos os países ‘devem’ ter filosofias diplomáticas similares; com isso, se torna necessário cercar e mesmo desintegrar qualquer potência emergente. Não só tentam apresentar como ‘iguais’ a história da expansão do cristianismo (…) e a história da humanidade, como também tomam como filosofia diplomática universal para todo o mundo, o conceito de civilização cristã que circula ao longo dos últimos 500 anos. Não se dão conta de que 500 anos é período relativamente curto de tempo na história da civilização humana, que diferentes civilizações têm visões diferentes da ordem diplomática mundial.”

Xue está certo. A narrativa Tech está sendo inflada e convertida em arma tanto, para servir à mentalidade ocidental binária e de oposição adversária como, além disso, para promover a noção segundo a qual o estado progressista cientificamente governado [hoje, por computadores e Big Data] representaria a essência política da modernidade, que a Europa reverencia desde os tempos de Napoleão. É ideia, como Xue destaca, extraordinariamente paroquial (e perigosa).

Esse artigo foi retirado da publicação feita no site ” Strategic Culture Foundation , do dia 09 de dezembro de 2020.

Tradução: Coletivo Vila Mandinga 

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