A fala de Vladimir Putin, dia 28/1/2021, em reunião virtual, participando da reunião “Agenda 2021” introdutória ao Fórum Econômico Mundial de Davos, já está sendo ativamente comparada ao discurso do presidente russo em Munique, em 2007.
Sim, há algo em comum entre os dois discursos de Putin. Ambas as falas são tão abrangentes e de tão amplo alcance [nacional e internacional] quanto os discursos “Irmãos e Irmãs”, em (3 de julho) 1941; e “Ao Grande Povo Russo”, em 1945, de Stálin.
O Discurso de Munique, em 2007, mostrou a Rússia que aceitava plenamente o desafio que o ‘ocidente’ lhe apresentava. Os russos não atacamos: fomos atacados. Oferecemos a paz, mas o inimigo escolheu a guerra. Os russos não capitularemos. Os russos venceremos a guerra. Sugerimos, antes que seja tarde demais, que todos voltem à razoabilidade e ponham fim à agressão.
Em junho de 1812, o Imperador Alexandre I, o Abençoado, disse coisa semelhante a Napoleão, servindo-se do general-adjunto Balashov como mediador. Acrescentou então que, se necessário, retiraria suas tropas para Kamchatka. Mas que não deporia armas enquanto houvesse um inimigo, um, que fosse, em solo russo.
Assim, o discurso de Putin em Munique é evidência de que a Rússia entrava ali e então, numa nova Guerra (híbrida, informacional) Patriótica.[1] E eis aí, agora, o discurso de Putin, em Davos – resumindo os resultados desta guerra. Uma espécie de nova Yalta (a Conferência de Yalta também aconteceu antes que a Alemanha finalmente capitulasse).
O pessoal que cerebrou esse movimento e trabalhou para organizar o discurso do presidente da Rússia ontem na reunião “Agenda 2021” do Fórum de Davos deve ser condecorado como herói da Rússia, de pleno e total direito. Talvez, melhor, erigir-lhes um monumento. Graças aos esforços deles, diferente de Yalta em 1945, a Rússia de hoje se viu no ponto singular de origem de um novo mundo pós-guerra, sem nenhum aliado/concorrente. Ao mesmo tempo, tampouco a China pode ser atacada – e sem que ninguém tivesse assim ‘declarado’. De algum modo, aconteceu assim. Simplesmente aconteceu. E seus interesses não estão sendo violados.
Examinemos o discurso de Davos, do ponto de vista da arte diplomática.
Todos sabem que o Fórum de Davos é conclave da elite financeira e industrial global, gente que tem influência significativa, e às vezes decisiva, na política dos respectivos estados (e às vezes também dos estados vizinhos). Políticos, mesmo os mais proeminentes, não passam lá de condimento. A presença dos eleitos, lá, só faz destacar a importância da parte dos convidados que jamais recebeu um único voto. Os que falam do púlpito significam muito menos do que os ouvem, em silêncio, das coxias. Além disso, em termos de informação, qualquer discurso que façam será bloqueado por dúzia de outros, confinado a uma mesa de discussão.
Jornalistas presentes ao fórum interessam-se muito mais por mostrar a própria importância, entrevistando, no mínimo, que seja, algum oligarca de terceira classe (ucraniano, por exemplo, de ano em ano, para discutir a cor dos bolinhos e o tamanho das porções no Café da Manhã Ucraniano, na Fundação Pinchuk, sem que ninguém os perturbe). Em geral é quase impossível oferecer discurso político e informacional consistente, nessa plataforma.
Por isso Putin durante 12 anos não discursou em Davos: a reunião não tinha importância alguma.
Mas então veio a tal pandemia de coronavírus, que obrigou que o fórum se tornasse ‘virtual’. Resultado disso, vasto número de pavões narcisistas, que antes balançavam vaidosamente os rabos brilhantes nas cercanias do fórum, ficaram em casa. Não se conseguem, por Skype, fotos em que se veja algum dos poderosos do mundo, e ninguém cruza com um ou outro deles em alguma pausa para café. O fórum ficou quase esquecido.
Mas não morreu. Os organizadores não quiseram degolar a galinha dos ovos de ouro, só por causa de alguma pandemia. Se o bloco de carnaval das fotos de antes foi cortado, e só aparecem umas poucas dezenas de gente que realmente decide com seriedade, dessa vez o problema está por trás da manchete que cativaria todas as atenções e poria o fórum feito por Skype no centro da agenda da ‘informação’ mundial.
Nada melhor que o discurso de Putin, para superar esse problema.
Primeiro, que, efeito da crise nos EUA, até os mais profundamente céticos já veem claramente que Washington perdeu a liderança no mundo moderno. Além do mais, o golpe ‘comandado’ por Biden fez dos EUA um pilar das forças da direita-esquerda (os ‘iliberais’) e uma ameaça à direita-direita conservadora em todo o mundo. Trump, conservador de direita tradicionalista, considerado pelos conservadores ocidentais como líder em potencial, foi nocauteado e arrastado para fora da política por longo tempo, se não para sempre. No melhor dos casos, consegue voltar à política dos EUA depois de algum tempo, mas está muito longe de voltar à política global.
Segundo, tampouco há líder entre os políticos europeus capaz de liderar a resistência da direita-conservadora, aos iliberais globalistas. A própria Merkel é liberal-direitista (embora pragmática) e também está aposentando-se. Macron é ambicioso, mas trabalha ao estilo ‘todos, os seus e os nossos’, e não é homem em quem se possa confiar – a qualquer momento, pula para o lado oposto. Os demais nem têm calibre, nem os países que poderiam representar têm recursos para reclamar qualquer liderança.
Terceiro, Xi Jinping na China é com certeza líder conservador na Ásia, mas, dadas as vastas diferenças culturais e históricas, não pode aspirar a qualquer liderança na Europa.
Putin em Davos alcançou posição de popularidade, dada a completa ausência de competidores. Foi projetado para a elite financeira e industrial do mundo; era o único capaz de oferecer “futuro brilhante”, que viria depois da demolição final do sistema EUA-cêntrico (e por essa razão, Putin converteu-se no tópico número 1 de informação da semana, absolutamente impossível de ignorar).
Putin demonstrou com muita elegância a inevitabilidade da desintegração final do velho-mundo-EUA-cêntrico com alguns poucos números. Esses números mostraram que, enquanto nos recentes 15-20 anos passados, o número de pobres (vivendo com menos de 5 dólares/dia) nos EUA aumentou 1,5 vez, na China a mesma faixa da população diminuiu para ¼ da inicial; e na Rússia, para 1/12. Ao mesmo tempo, na Rússia, hoje, o número de pessoas que vivem com menos de 5 dólares/dia já é inferior ao que se vê nos EUA.
Para gente habituada a comprar e vender, que conhece bem o poder de compra da população, gente capaz de calcular processos dinâmicos, esses números são como a sentença de morte dos EUA. Mais que isso, esse pessoal já sabe que, em termos militares, a Rússia também já ultrapassou para sempre o ‘ocidente’. EUA e Europa não têm tecnologia para alcançar Moscou no campo do armamento, nem têm recursos para desenvolver tecnologias equivalentes ao longo da próxima década.
Significa que, nas telas dos computadores de cerca das 100 pessoas mais influentes no planeta, o presidente da Rússia aparece e oferece um modelo de um novo mundo pós-norte-americano – e sem via alternativa (dado que não se vê nem sinal de outro candidato ao posto). Putin indica claramente que liberais de esquerda (“iliberais”) são ameaça a qualquer estado, e gentilmente, sem espalhafato, sugere que a Rússia não só combaterá contra eles, mas que também está pronta para liderar uma aliança de conservadores saudáveis, em todo o mundo, que assegure proteção dos estados nacionais contra as Corporações Transnacionais [ing. TNCs] invasoras.
À óbvia questão seguinte, sem esperar que alguém lhe perguntasse, Putin responde que ninguém vai reduzir a cacos o sistema; que só em condições de crise sistêmica severa, deve-se reforçar o papel do Estado na vida econômica. O Estado não substituirá a iniciativa privada. Planeja apenas aplainar as bordas mais ásperas e garantir que a busca, pelos empresários privados, de lucros máximos, não colida frontalmente contra os interesses públicos e os valores conservadores. Por trás do palco, lá está a ideia de que o estado russo deve converter-se em garantidor e líder desse processo.
Outra pergunta não perguntada – “Como derrotar os iliberais destruidores do Estado e defensores dos interesses da oligarquia financeira transnacional?” – foi respondida dia 23 de janeiro e nos dias seguintes nas ruas de cidades russas.
Sem excessiva violência, sem proibições totalitárias, mas também sem liberalismos com vândalos da extrema direita. Com todos com os quais é possível negociar — construiu-se um acordo. Para os animais de chifre e hienas que trocam de pele, cadeia (não assassinato. Cadeia, sim, mas vivos).
Em geral, comparadas ao que se vê acontecendo no mundo (da Bielorrússia aos EUA), as medidas russas para proteger o Estado são, efetivamente, as mais suaves. Simultaneamente, são as mais efetivas.
Em geral, para o dinheiro do mundo que realmente deseje operar sob o marco de uma economia de mercado clássica, que não quer esperar que o “bilhão dourado” decaia para o “milhão dourado”, depois para o “milhar dourado” e, em seguida tudo se converta numa gangue de banqueiros doidos matando-se entre eles sobre as ruínas do planeta, Putin propôs uma saída da crise, delineou o “mundo pós-Yalta” (garantido pelo poderio russo) e sugeriu que comecemos a discutir esse formato final.
E, atenção: 80 das pessoas mais influentes do planeta ouviram e não riram na cara de Putin, como se viu em Munique 2007. Em silêncio, sem levantar poeira, imediatamente depois do discurso à “Agenda 2021”, rapidamente organizaram-se em fila para conferência a portas fechadas com… a Rússia.
Liberais honestos e lunáticos urbanos comuns podem rir sinceramente e livres de multa ou castigo, do que Putin fala (e mostra) do poder e da autoridade global da Rússia. Aquela fila de líderes da economia global, à espera de audiência privada com Putin é a melhor prova de que o que pareceu inacreditável ontem, já se tornou hoje óbvio. A Rússia pôs sobre a mesa os termos de um novo mundo. E o mundo acorreu para discutir com a Rússia aquelas condições.
Finalmente, mais uma vez, quero chamar a atenção do leitor para a proeza invisível do pessoal que preparou esse discurso de Putin.
Em termos de escala e impacto sobre processos históricos, é feito mais impressionante que as Batalhas de Stalingrado e Kirsk combinadas. E a vitória chegou com praticamente nenhum sangue derramado e em território estrangeiro. O efeito de bombas explodindo é resultado da surpresa. Já é a identidade corporativa da Rússia.
O discurso de Putin em Munique foi repentino, e a derrubada do presunçoso regime de Saakashvili em agosto de 2008 foi repentina. A reintegração da Crimeia foi repentina. Agora, outra vez, repentino, Davos.
O falecido Viktor Stepanovich Chernomyrdin diria, satisfeito: “Jamais antes aconteceu… e agora, aí está, outra vez!”
[1] A expressão “Guerra Patriótica” foi usada na União Soviética após discurso de Stálin, pelo rádio, para a nação soviética, dia 3/7/1941. Em 1914-1915 a expressão “Grande Guerra Patriótica” foi usada em publicações informais, para designar a 1ª Guerra Mundial. A frase foi usada pela primeira vez para a guerra entre a União Soviética e Alemanha (“2ª Guerra Mundial”, no ‘ocidente’) nos artigos do jornal Pravda, em 23 e 24 de junho de 1941.
Esse artigo foi retirado da publicação feita no site “Stalker Zone”, do dia 29 de janeiro de 2021.
Tradução: Coletivo Vila Mandinga