Eram oito da noite quando Luciano Coutinho entrou na sala de reuniões do 22° andar do Banco Nacional do Desenvolvimento Econômico e Social, no centro do Rio de Janeiro. O terno cinza, a camisa branca e a gravata azul que ele vestira às seis e meia da manhã continuavam imaculados. Os cabelos grisalhos e ralos também. Caminhou ao longo da mesa de quinze lugares e parou na cabeceira, onde estava escrito “presidente” numa tabuleta verde. Estendeu a mão frouxa para um cumprimento, sentou-se e aguardou o início da conversa mexendo num lápis. Tinha o ar contrafeito de quem está perdendo tempo.
Ele não gosta de entrevistas. Evita-as sempre que possível. Nos últimos tempos, sua aversão a repórteres aumentou. Há cinco meses, Luciano Coutinho e a instituição que preside desde 2007 têm sido criticados por economistas de correntes distintas e até por gente do governo, como Henrique Meirelles, o presidente do Banco Central. Coutinho não quer confrontos. O momento político lhe exige prudência.
Ele é próximo de Dilma Rousseff, de quem foi professor de economia na Universidade de Campinas, a Unicamp. Ela o consulta sobre os mais diversos assuntos: de macroeconomia a questões de infraestrutura e política industrial. A proximidade tem gerado especulações de que, no caso da vitória de Dilma, seria ele o próximo ministro da Fazenda. Essa possibilidade desagrada banqueiros, operadores do mercado financeiro e rentistas, sobretudo os de São Paulo, que almejam a volta de Antonio Palocci ao cargo.
(Um ministro do presidente Lula informa que Palocci ainda não decidiu o que fará em um eventual governo Dilma. Se achar viável vir a disputar nas urnas o governo paulista em 2014, postulará antes o Ministério da Saúde. Mas se concluir que a violação do sigilo bancário do caseiro Francenildo dos Santos Costa não será esquecida com facilidade, Palocci pleiteará o comando da economia.)
Ao ouvir a pergunta sobre ser ministro da Fazenda, Coutinho abriu uma carranca e disse: “Não ouvi essa pergunta, ela é completamente extemporânea. Não ambiciono isso, quero continuar no BNDES.”
Ocorre que a sua gestão do Banco está na berlinda. O primeiro a criticá-lo foi Luiz Carlos Mendonça de Barros, ex-ministro de Fernando Henrique Cardoso. Num artigo, o economista tucano sustentou que transferências de recursos feitas pelo Tesouro ao BNDES aumentaram excessivamente a dívida pública.
Essas transferências começaram logo depois da crise internacional, em setembro de 2008. Tinham como objetivo evitar a paralisia das obras de infraestrutura e dos projetos de longo prazo das empresas. Parte do dinheiro, contudo, foi usada no socorro a companhias que, apostando na desvalorização do dólar, especularam no mercado de derivativos de câmbio e foram à lona. Foi o que ocorreu com a Aracruz Celulose e a Sadia. Com o dinheiro do BNDES, a primeira foi comprada pela Votorantim. E a Sadia, pela Perdigão.
A primeira transferência do Tesouro para o banco, no valor de 100 bilhões de reais, foi tomada como uma saída para evitar a estagnação. As fontes de crédito haviam secado e o BNDES foi uma das poucas instituições a continuar emprestando. Os ataques começaram quando o governo liberou, com a aprovação do Congresso, mais um aporte de 80 bilhões de reais para o banco.
Como os recursos não foram obtidos por meio do aumento de arrecadação, ou da redução de gastos, o Banco Central emitiu títulos da dívida pública, pagando juros de 14,5% pelos papéis. Os reais levantados com a venda dos títulos foram repassados ao BNDES, que os emprestou às empresas a juros de 5% ao ano. Ou seja: o governo pegou dinheiro caro no curto prazo para emprestar barato às empresas, que os saldam em prazos longos. No final de setembro, o Tesouro transferiu mais 25 bilhões de reais ao banco.
“O Brasil não está gastando mais porque está arrecadando mais, e sim porque está aumentando a sua dívida” disse Armando Castelar, ex-chefe do departamento econômico do BNDES e agora sócio da Gávea Investimentos, administradora de recursos de Armínio Fraga. “Esse é um modelo muito arriscado porque joga o problema para o futuro. Em algum momento, a conta terá que ser paga.”
No começo de julho, Henrique Meirelles reclamou publicamente que o nível recorde de empréstimos do BNDES freava a redução da dívida pública. Segundo ele, o excesso de dinheiro na economia obrigava o Banco Central a elevar os juros para evitar o aumento do consumo e, consequentemente, dos preços. Foi uma das poucas vezes que Luciano Coutinho reagiu: afirmou que os créditos concedidos ajudavam a aumentar o investimento. Para ele, ao aumentarem a produção e as vendas, as empresas pagam mais impostos, proporcionando maior arrecadação para o governo. “A receita gerada pela produção das empresas é maior que o subsídio concedido”, disse Coutinho.
Arno Agustin, secretário do Tesouro Nacional, é um gaúcho de olhos claros e barba eriçada no estilo dirigente sindical da década de 80. No Ministério da Fazenda, ele é o responsável final pela liberação dos recursos para o BNDES. “Quando veio a crise, tínhamos que sustentar o nível de investimento porque teríamos enormes dificuldades de retomá-los”, disse Agustin. “O aporte era a única forma de impedirmos que o Brasil voltasse à velha situação de crescer um pouquinho, interromper o crescimento e a produção, ter mais inflação, obrigando o Banco Central a dar uma porrada na política monetária, aumentando novamente os juros, para conter os preços.”
Apontando para quadros e gráficos coloridos que indicavam aumento de arrecadação e controle dos gastos públicos, ele ousou uma previsão: as taxas de juros de curto prazo tenderão a cair no próximo ano. Agustin acha que “o aumento da dívida pública não tem nada que ver com a questão fiscal. Tem a ver com a política monetária”. Segundo ele, o que mais pressiona as taxas de juros é o câmbio valorizado. Como entram muitos dólares no país, o Banco Central é obrigado a trocá-los por reais e depois retirá-los da economia através da emissão de títulos da dívida pública.
Luciano Galvão Coutinho pertence a uma família tradicional do Recife. Seu pai era um médico conhecido na cidade e, por vários anos, dirigiu a Faculdade de Medicina da Universidade Federal de Pernambuco. Uma das brincadeiras que se fazia na época era que, na faculdade, “quem não era Coutinho, era coitado”. O filho, que pensou em seguir os passos do pai, mudou de ideia ao ouvir uma palestra de Celso Furtado. No final dos anos 60, mudou-se para São Paulo para cursar economia na Universidade de São Paulo, onde se aproximou do ex-ministro João Sayad e do ex-presidente da Petrobras, Philippe Reichstul. Envolveu-se com política estudantil, e por muito pouco escapou de ser preso, ao ser avisado a tempo por Sayad de que estava sendo procurado pela polícia.
Seguiu então para os Estados Unidos. Lá, se doutorou na Universidade Cornell com uma tese sobre grandes empresas nacionais. Voltou para o Brasil no final dos anos 70 e foi chamado por Fernando Henrique Cardoso para trabalhar no Centro Brasileiro de Análise e Planejamento, o Cebrap. Preferiu aceitar um convite de João Manuel Cardoso de Mello e tornou-se professor do Instituto de Economia da Unicamp.
Com a chegada do Partido do Movimento Democrático Brasileiro ao poder, foi convidado para a Secretaria Executiva do Ministério da Ciência e Tecnologia. Seus colegas Cardoso de Mello e Luiz Gonzaga Belluzzo também ocuparam cargos importantes no Ministério da Fazenda e foram responsáveis, com outros economistas, pelo Plano Cruzado, que pretendia controlar a inflação. Na Ciência e Tecnologia, Coutinho foi um defensor atilado da Lei de Informática, que, ao tentar proteger a indústria nacional da concorrência externa, atrasou em anos o desenvolvimento tecnológico brasileiro.
O Cruzado fracassou, ele deixou o governo e voltou para a vida acadêmica com Cardoso de Mello. Por pouco tempo. Logo abriu uma consultoria de planejamento de empresas, a LCA Consultores, da qual se desligou para ser presidente do BNDES. Ela assessora bancos em macroeconomia e orienta empresas em questões de concorrência, comércio internacional, fusões e aquisições. Opera com empresas cujo ativo total soma 30 bilhões de dólares.
No final dos anos 90, a LCA participou de uma grande licitação, feita pelo BNDES, para o desenvolvimento de uma estratégia de planejamento para o Brasil, dentro do programa Mãos à Obra do governo Fernando Henrique. Perdeu para a americana McKinsey. “Ele nunca se conformou”, contou um ex-diretor do banco. “Foi várias vezes ao BNDES para protestar, alegando ser um absurdo colocarem uma companhia estrangeira para planejar o Brasil.”
João Manuel Cardoso de Mello tem a compleição de um urso polar. É alto, grande, com uma cabeleira branca e desarrumada. Seus gestos são largos, expansivos e costumam ser pontuados por gargalhadas tonitruantes. “O Luciano sabe tudo de política industrial, não tem ninguém que entenda tanto do assunto quanto ele”, disse. Cardoso de Mello o descreveu como afetivo, fiel aos amigos e obsessivo por trabalho. “É difícil contar histórias interessantes de um cara que trabalha 24 horas por dia”, observou, gargalhando em seguida. O único hobby é a leitura. Lê, compulsivamente, de livros técnicos a romances. Tem mania de limpeza e odeia cigarro.
Cardoso de Mello lembrou que, numa época em que trabalhavam na Unicamp, os dois compraram um carro em sociedade com outros três colegas para viajarem juntos entre São Paulo e Campinas. “Como eu fumava, ele trouxe dos Estados Unidos uma espécie de exaustor portátil”, disse. “Era só eu acender um cigarro que ele colocava aquele sugador na minha cara. Era um saco.” Ele credita o temperamento reservado de Coutinho a uma enorme timidez. Os seus modos empertigados valeram-lhe o apelido de “Durinho”, cunhado pelo historiador Fernando Novais.
Coutinho está no segundo casamento. Do primeiro, teve dois filhos, um economista e outro publicitário. É vaidoso a ponto de ter feito cirurgia plástica para amenizar as rugas. Seus hábitos são espartanos. Come pouco e dá preferência a saladas e peixe grelhado. No Rio, mora em um apartamento próprio, no Leme. Exercita-se diariamente. Costuma chegar ao BNDES por volta das sete da manhã e sai às dez da noite.
Ao assumir a presidência do banco, fez apenas uma nomeação, a de João Carlos Ferraz, para a diretoria de Planejamento, que trabalhava na Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe, a Cepal, em Santiago do Chile. Os dois publicaram, nos anos 90, um livro sobre política industrial. Coutinho manteve a equipe porque precisava que a máquina do banco, que passara por três presidentes em apenas cinco anos, funcionasse com rapidez.
A velocidade era necessária porque, até 2006, o orçamento do banco era maior do que a procura por empréstimos. No ano seguinte, houve a retomada dos pedidos de empréstimos para novos investimentos, que totalizaram quase 65 bilhões de reais. No meio de 2008, os empréstimos ultrapassaram os 90 bilhões de reais. “Era um momento mágico”, disse João Carlos Ferraz. “A produção, a produtividade e o emprego cresciam. E nós estávamos nos preparando para crescer a taxas chinesas.”
Em setembro, estourou a crise. “Era preciso decidir se continuaríamos crescendo ou se colocaríamos um freio na economia”, contou Ferraz. No começo de outubro, Coutinho, Ferraz e Ernani Torres, um dos superintendentes do banco, foram a Washington participar de um congresso do Fundo Monetário Internacional. O assunto único era a crise. A China anunciara investimentos de 600 bilhões de dólares para não paralisar a economia.
“Voltamos de lá convencidos de que se o Brasil parasse naquele momento, seria um desastre,” disse Ferraz. A questão era como captar recursos: todas as linhas de crédito, e não só para o Brasil, estavam fechadas. Assim que chegaram, Coutinho e Ferraz reuniram-se com Guido Mantega e o alertaram de que não haveria crédito do exterior. Era preciso encontrar, com urgência, um meio de a economia nacional não entrar em recessão. Começou a ser desenhado então o empréstimo de 100 bilhões de reais do Tesouro para o BNDES. A liberação foi anunciada em dezembro.
Os empréstimos colossais devolveram ao banco o prestígio que perdera no governo de Fernando Henrique Cardoso, quando alguns dos seus presidentes, como Pérsio Arida e José Pio Borges, questionaram até a necessidade da sua existência. Eles argumentavam que o Brasil construíra um mercado de capitais relativamente forte, que poderia suprir o papel de um banco de desenvolvimento. A iniciativa privada deveria buscar seus próprios caminhos para se financiar, liberando o Estado para investir exclusivamente no sistema público. Luciano Coutinho abomina essas ideias. Diz que os que minimizam a importância do BNDES “não conhecem um pingo de história econômica”.
“Os sistemas de crédito e de mercados de capitais são instáveis e cíclicos”, disse ele, ereto e quase imóvel na cadeira, falando professoral e pausadamente. “Nas expansões econômicas, eles impulsionam a ampliação de crédito, reduzem os requisitos de avaliação de riscos e levam à irresponsabilidade. E foi essa irresponsabilidade que produziu a crise financeira que paralisou o sistema por muitos meses e exigiu gastos de centenas de bilhões de dólares de subsídios públicos para evitar a derrocada da economia global. Instalado o caos, o crédito é contraído e há longos períodos de desinvestimento.”
Embora defenda associações do BNDES com o setor financeiro, Coutinho diz que o Estado não pode sair do negócio. Para ele, uma lição da crise é que os países que dispunham de bancos públicos, como o Brasil, China, Índia e Coreia, conseguiram se safar com mais facilidade. “Os sistemas públicos que puderam expandir o crédito na hora em que o privado estava contraindo, impediram a ocorrência de problemas dentro do sistema produtivo, como quebras em série.”
Na opinião dele, a dificuldade que a Casa Branca vem tendo de impulsionar o processo de recuperação de sua infraestrutura é resultado da falta de um banco como o BNDES: “O governo americano avalia hoje que a existência de um banco de desenvolvimento seria importante para alavancar a economia”, disse. “E muitos dos países da América Latina que varreram seus bancos de desenvolvimento do mapa, na década de 90, estão absolutamente arrependidos.”
O Brasil se inseriu na economia mundial como um grande fornecedor de matéria-prima. Com a crise de 1929, que derrubou os preços agrícolas, entre eles o do café, principal produto da pauta de exportação brasileira, a dependência da agricultura foi posta em xeque. A ideia de industrialização, já presente no movimento tenentista, ganhou força no primeiro governo de Getúlio Vargas. O impulso modernizador se daria com a Segunda Guerra Mundial, por meio daquilo que os manuais de economia chamam de substituição das importações. Seu maior símbolo foi a Companhia Siderúrgica Nacional, a CSN, construída em 1941 com apoio dos americanos, que queriam o aço brasileiro para sustentar a sua indústria bélica.
O governo brasileiro acreditava que, terminada a guerra, poderia continuar contando com a ajuda dos Estados Unidos para acelerar a modernização. O presidente Franklin Roosevelt chegara a constituir uma comissão mista dos dois países para discutir um plano de desenvolvimento para o Brasil que incluía uma forte ajuda financeira. Com a sua morte, em abril de 1945, o projeto naufragou. A prioridade de seu sucessor, Harry Truman, passou a ser apoiar a reconstrução dos derrotados na guerra, Alemanha e Japão.
Quando Getúlio voltou ao poder, em 1951, o debate em torno das formas de modernizar o país foi influenciado pelas teses desenvolvimentistas da Cepal, um órgão das Nações Unidas que apostava na industrialização para tirar o continente do atraso. Foi nesse contexto que o governo criou o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico, o BNDE.
No dia 25 de julho de 1952, a primeira diretoria do banco tomou posse. Entre seus fundadores estava o economista Roberto Campos, mas havia quase de tudo na casa, da esquerda ortodoxa ao liberalismo radical. O banco iniciou suas atividades num espaço improvisado, no prédio do Ministério da Fazenda. Como as instalações eram “insuficientes e insatisfatórias”, mudaram-se dois meses depois para um prédio na rua Sete de Setembro, também no centro do Rio, ocupando sete andares alugados.
No final de 1953, o BNDES lançou sua primeira publicação, o balanço de atividades Exposição sobre o Programa de Reaparelhamento Econômico. Nas cinquenta páginas do pequeno livro de capa amarela – guardado como relíquia na biblioteca do banco – estão descritas a situação econômica brasileira, as necessidades de investimento, os desembolsos feitos durante o ano e a estrutura da instituição. Por ali, sabe-se que o BNDE operava com seis departamentos. Eles tratavam da coordenação de projetos, seus custos e produtividade, da análise de grandes números nacionais como balanço de pagamentos, PIB, política monetária e fiscal, mercados e até de traduções. E tinha seis advogados, dez economistas e doze engenheiros, além de 31 assistentes técnicos, 58 assistentes administrativos e 91 auxiliares administrativos – escriturários, datilógrafos, arquivistas, correntistas e calculistas.
O cenário econômico, de acordo com o relatório, não era dos mais favoráveis – e poderia se aplicar em alguns pontos à situação de hoje. Os técnicos da instituição avaliavam que as taxas de investimento que mantiveram o crescimento nos anos anteriores não se repetiriam. O crescimento do país esbarrava na “deficiência de serviços básicos, entorpecedora da atividade econômica”. Seria fundamental “o reaparelhamento de portos e dos sistemas de transporte, aumento da capacidade de armazenamento, frigoríficos e matadouros, elevação do potencial de energia e desenvolvimento das indústrias básicas e da agricultura”. A solução duradoura para o problema “implicaria alterar fundamentalmente a estrutura econômica do país”.
Em 1948, o Estado bancava 21% dos investimentos totais. Em 1952, essa participação subira para 24%. A fim de se obter novos recursos destinados ao investimento, os técnicos do banco propunham uma racionalização das despesas públicas, com corte nas despesas correntes. Naquele ano, 30% dos recursos do banco tinham sido destinados à compra de estoques de mercadorias, como algodão, lã e sisal, para estabilizar os preços. Os outros 70% haviam sido empregados na construção de rodovias, ferrovias, portos, canais e dragagens, açudes e barragens e na compra de equipamento agrícola.
O primeiro grande desafio dos técnicos do BNDE foi entender os projetos antes de aprová-los e acompanhar o andamento das obras para garantir que seriam executadas. O treinamento foi feito com a ajuda de um manual trazido dos Estados Unidos por Roberto Campos. O Manual de Análises de Projetos ensinava como acompanhar desde a montagem de uma fábrica à construção de uma usina elétrica. Ele se tornou a bíblia do banco e ainda hoje é usado. Os modelos de financiamento também tiveram que ser aprendidos. Como os bancos privados brasileiros não financiavam no longo prazo, o BNDE se inspirou nas operações de crédito do Banco Mundial, que ajudava na reconstrução da Europa no pós-guerra.
A partir de 1955, o BNDE assumiu a dianteira do desenvolvimento. Boa parte de seus técnicos ajudou a elaborar o Plano de Metas de Juscelino Kubitschek. Começam a sair do papel projetos de construção de ferrovias, rodovias, hidrelétricas, siderúrgicas. Na década seguinte, num primeiro momento, a ditadura cogitou acabar com o banco porque os seus técnicos estavam ligados à Cepal e eram considerados de esquerda. Mas como muitos dos generais haviam sido tenentes nas décadas de 20 e 30, e viam a industrialização como a saída para o atraso, o banco sobreviveu.
O banco passou também a financiar indústrias de substituição de importações. Surgiram fábricas de bens de consumo como eletrodomésticos, geladeiras, televisores e têxteis, além de siderúrgicas e empresas petroquímicas, a maioria delas estatais. “Em 1967, a Argentina produzia muito mais carros do que o Brasil. Em 1970, a produção brasileira de automóveis já era uma vez e meia maior que a argentina”, contou Darc Costa, funcionário de carreira do banco, hoje dono de uma consultoria. O BNDE passou a apoiar também a indústria de bens de capital, construtoras de máquinas e equipamentos. Os grupos Bardella, Villares, Suzano e Votorantim se beneficiaram de créditos do banco.
Nos anos 70, o Brasil já tinha uma base industrial muito mais robusta que a de seus vizinhos. O salto industrial foi tão grande que a economia brasileira, que ocupava o quinquagésimo lugar no começo dos anos 60, transformou-se na oitava maior economia do mundo em apenas uma década. O Produto Interno Bruto crescia a taxas de 7% ao ano. O Rio passou a abrigar uma indústria naval, e São José dos Campos, em São Paulo, uma fábrica de aviões estatal, a Embraer. Ambas financiadas pelo banco. Mas, em meio à pujança, se repetiam os vícios das economias subdesenvolvidas.
O modelo parecia funcionar. Mas estava longe de ser politicamente republicano ou racionalmente capitalista: os militares favoreciam empresários amigos do regime com grandes obras e financiamentos. Foi a assim na construção civil, na indústria de bens de capital e na indústria naval. Empréstimos do BNDE turbinaram a expansão de grupos de comunicação simpáticos à ditadura.
Para bancar a expansão, o Brasil se endividava no mercado internacional. Em 1973, quando houve o primeiro choque do petróleo, e o preço do barril decuplicou, a dependência da economia nacional veio a nu. Os países do grande capital aumentaram as taxas de juros, e o governo militar continuou se endividando no exterior para manter o crescimento. Além de dar crédito às empresas, o BNDE passou a financiá-las através de compra de participação acionária, tornando-se sócio das companhias. Não adiantou: o segundo choque do petróleo, em 1979, fez com que o preço do barril saltasse de 17 dólares para cerca de 80 e arrasou o projeto desenvolvimentista do regime. As taxas de juros dispararam, e o Brasil entrou na era da crise da dívida externa.
Os militares tentaram garantir o crescimento a qualquer custo, oferecendo crédito subsidiado para estimular os empresários a continuar investindo. Estipulou-se que, qualquer que fosse o índice de inflação, os empresários não pagariam mais que 20% de juros. Com a inflação batendo em 100% ao ano, muitos deles pegavam financiamento no BNDE a juros de 20%, e aplicavam o dinheiro no mercado financeiro embolsando a diferença. O setor naval é um exemplo. Seus donos embolsaram o dinheiro da construção dos navios, não entregaram as encomendas, faliram e deixaram enormes passivos no banco. No final da década de 80, a indústria naval desapareceu.
Sem petróleo e sem divisas para pagar os juros da dívida externa, a economia brasileira afundou. E o BNDE, que se acrescentara um S com a justificativa de que passaria a investir no social – na verdade, uma manobra do governo para criar um novo imposto –, perdeu a função de banco de desenvolvimento. Seus desembolsos visavam apenas salvar empresas da falência. O economista Paulo Guedes apelidou o banco de “Recreio dos Bandeirantes”, tantas eram as empresas familiares mal geridas de São Paulo que se socorriam na instituição.
Ficaram sem função centenas de técnicos de excelente formação – a maioria com doutorado no exterior – e com salários superiores aos da média do serviço público. Instalados numa torre de 22 andares de vidro negro, construída na época da abundância, viraram gerentes de banco: renegociavam dívidas e liberavam empréstimos para uma ou outra empresa. Eram operações que poderiam ser tocadas por outros bancos oficiais, como o Banco do Brasil e a Caixa Econômica Federal.
No começo dos anos 90, o BNDES, sem rumo, foi convocado para comandar as privatizações. “Não deixava de ser uma ironia o banco criado para desenvolver empresas estatais ser chamado para desestatizá-las”, disse um ex-diretor. O banco ajudou a montar os consórcios que comprariam as empresas estatais. E sofreu as mesmas pressões políticas do passado para proteger empresários amigos do governo. No leilão de telefonia, o então presidente do banco, André Lara Resende, e o ministro das Comunicações, Luiz Carlos Mendonça de Barros, foram flagrados em escutas telefônicas defendendo o consórcio liderado por Daniel Dantas no leilão da Telebrás para a compra da Telemar (hoje Oi). A empresa acabou indo parar nas mãos da construtora Andrade Gutierrez e do grupo La Fonte. O vazamento das fitas obrigou Lara Resende e Mendonça de Barros a deixarem o governo.
A volta do banco às origens se deu no governo Lula. Quem assumiu o seu comando foi Carlos Lessa, um nacionalista de ideias desenvolvimentistas que defende um Estado planejador e indutor do crescimento, por meio do apoio a setores que possam enfrentar a competição global. Ele tem personalidade exuberante e adora confrontos. Na presidência do banco, antes mesmo da posse comprou briga com o ministro do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior, Luiz Fernando Furlan, um dos donos da Sadia – só se refere a ele como “o frangueiro”.
Carlos Lessa mora num imponente chalé vermelho cercado por jardins, no bairro do Cosme Velho, no Rio. Numa tarde de setembro, na sala de visitas repleta de antiguidades orientais, vestia calça e camisa de linho claro, suspensórios escuros e portava uma bengala de bambu chinesa. “O Furlan queria que eu fosse a São Paulo para ser sabatinado por ele, e eu disse que não ia porque fui colocado no banco pelo presidente da República e não por ele”, contou. “Além do mais, eu era responsável, no BNDES, pelas maiores empresas do Brasil. Ele só cuidava de uma meia dúzia de empresinhas sem importância.”
Em quinze dias de banco, Lessa mudou todos os diretores e superintendentes. “Aquilo lá estava coalhado de tucanos e gente favorável à privatização; eu não podia trabalhar com aquelas pessoas”, explicou. Funcionários tarimbados foram isolados em pequenas salas e deixados sem função. Alguns entraram em depressão e outros se aposentaram. Lessa fez um concurso público e aumentou o número de funcionários de 1 600 para os atuais 2 250. Os novos foram treinados no ideário desenvolvimentista e orientados a não conversarem muito com os antigos. “Foi um período de horror”, contou um velho funcionário. “Havia até câmeras nas salas para vigiar os funcionários.”
“Eu queria defender o BNDES dos estragos feitos no governo Fernando Henrique”, justificou Lessa. Em relação aos empresários, também foi duro. “Um banco de desenvolvimento não pode sair emprestando dinheiro barato, isso é papel de banco de investimento”, disse. “Um banco de desenvolvimento tem que apoiar projetos que se encaixem num plano estratégico de crescimento. Eu exigia que as empresas me apresentassem metas de crescimento, criação de empregos, investimento em inovação tecnológica. Se é para fazer mais do mesmo, vai pegar dinheiro com banco privado e pagar juros de mercado.”
Acabou criando atritos com Guido Mantega, na época ministro do Planejamento, que o acusou de atrasar alguns dos desembolsos do banco, comprometendo os investimentos de empresas. “O Lula me chamou para conversar e eu disse que banco de desenvolvimento não era padaria que fazia pão a metro”, ele disse. “Banco de desenvolvimento tinha que ter projeto”, justificou. O presidente pediu que ele se explicasse com a imprensa. Lessa repetiu o argumento da padaria para os jornalistas. No dia seguinte, o sindicato dos padeiros fez um protesto formal.
Lessa deu uma gargalhada ao lembrar a história: “Eu disse para eles que não tinha nada contra padeiros, e que adorava pão. Mesmo porque tinha tido um câncer de garganta e o primeiro alimento que senti o gosto foi o pão. E eles me mandaram 400 pães de presente. Saí distribuindo pão para todo mundo no banco. Foi uma farra.”
Teve então um segundo embate com Luiz Fernando Furlan. A Vale do Rio Doce colocara um lote de ações à venda e Lessa comunicou a Furlan que o BNDES exerceria seu direito de comprá-las. Furlan avisou sua intenção ao presidente da Vale, Roger Agnelli, que se adiantou e vendeu as ações para os sócios japoneses da empresa. No segundo lote de ações colocado à venda, Lessa manteve silêncio. “Estava tudo combinado para que os japoneses comprassem mais essas ações, mas um estudo do banco indicou uma alternativa melhor”, contou Lessa. “Vendi as ações que tínhamos da Votorantim, e, com o dinheiro, fomos lá e pagamos 500 milhões de dólares pelas ações da Vale. O Furlan, quando soube, queria me matar. Mas eu não podia deixar que as decisões sobre o patrimônio dos brasileiros fossem parar nas mãos dos japoneses.”
Ao saber da operação, Lula, que estava no exterior, ligou para Lessa. “A imprensa está me perguntando se nós estamos reestatizando a Vale”, disse-lhe Lula. “Eu expliquei que não, que o banco estava apenas exercendo sua preferência de compra. Com essa operação eu dei um lucro de 1 bilhão de dólares para o BNDES, já que as ações da Vale dispararam.” Dias depois, numa reunião em Brasília, Mantega e Furlan reclamaram da forma como o negócio tinha sido feito – de maneira autocrática, sem discussão nem comunicação aos ministros. “Se eu comunicasse, eles iam me passar para trás”, explicou Lessa.
“Todos os dias a imprensa dizia que eu ia ser demitido. Comecei a trabalhar com um gráfico de demissões na minha sala. Eles, finalmente, acertaram na 74ª vez que anunciaram minha saída”, ironizou.
Com a destituição de Lessa, Mantega foi para a presidência do banco. Pouco depois, deixou o cargo para assumir o Ministério da Fazenda, que ficara vago com a demissão de Palocci. Para seu lugar foi Demian Fiocca. Em 2007, Luciano Coutinho foi chamado para presidi-lo.
Aos poucos, Coutinho ocupou espaços no governo, e maiores dos que cabem ao presidente do BNDES. Passou a comandar as discussões sobre o setor elétrico junto com Dilma Rousseff. Ajudou a estruturar a operação da construção da Usina Hidrelétrica de Belo Monte e também participou da elaboração do programa do pré-sal. Foi o responsável pelas operações de fusão da Sadia e Perdigão, que gerou a Brasil Foods, e da compra da Aracruz pela Votorantim, da qual resultou a Fibria. “O Lula confia muito no Luciano Coutinho, e o escuta sobre tudo que diga respeito à economia”, disse um integrante do governo. “E gosta dele também porque o Luciano não cria confusão e sabe trabalhar em equipe.”
Algumas das suas ações, no entanto, foram criticadas. Nildemar Secches, antigo presidente da Perdigão e atual presidente do conselho da Brasil Foods, acha que, sem a intervenção do BNDES, teria comprado a Sadia por um preço muito mais baixo. “A Sadia não ia quebrar, quem ia quebrar eram os acionistas”, disse ele a um amigo. “Nós ficaríamos com a empresa por um preço muito menor.” Um dos acionistas beneficiados foi Luiz Fernando Furlan.
Os setores tradicionais da economia eleitos pelo BNDES de Luciano Coutinho para serem os campeões nacionais se concentram nas áreas de commodities. É uma contradição: um banco que foi criado para incrementar a industrialização está hoje mais voltado para o financiamento de empresas de matérias-primas. Os setores escolhidos – papel e celulose, alimentos, frigorífico, petroquímico, petróleo e mineração – não colocam o Brasil entre os grandes exportadores de bens de alta tecnologia. “Estamos voltando a ser exportadores de commodities. É uma volta à Velha República”, provocou Lessa. “Eu acho que a culpa não é do Luciano. Isso acontece porque não existe um projeto de desenvolvimento para o Brasil. O negócio do BNDES hoje é emprestar a quem pede.”
O artigo continua no link a seguir: https://piaui.folha.uol.com.br/materia/o-desenvolvimentista/
Esse artigo foi retirado da publicação feita na revista “piauí”, em outubro de 2010.