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Rússia Guarda a Chave da Soberania Alemã

Por Pepe Escobar

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“Assim, o senso de possibilidade pode ser definido como capacidade para pensar tudo aquilo que também poderia ser, e não julgar que aquilo que é seja mais importante do que aquilo que não é.”
Robert MUSIL (austríaco, 1880-1942), O homem sem qualidades (romance inacabado, publicado entre 1930 e 1943). Trad. Lya Luft e Carlos Abbenseth. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, ed. 2006, pp. 34).

Semana passada traçamos os passos históricos e geopolíticos necessários para compreender Por que a Rússia enlouquece o Ocidente (aqui em inglês).

Depois, sexta-feira passada, pouco antes do início do Ano do Boi de Metal, veio a bomba, disparada com o aplomb característico, pelo ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergey Lavrov.

Numa entrevista a Vladimir Solovyov, conhecido animador de programa de entrevistas,– transcrição integral (ao ing.) publicada pelo Ministério de Relações Exteriores da Rússia (legendada em espanhol, que se lê facilmente) – Lavrov disse que Moscou “deve estar preparada” para possível “rompimento com a União Europeia.”

Esse grave rompimento seria resultado direto de novas sanções aplicadas pela União Europeia, especialmente “sanções que criem riscos para a nossa economia, inclusive nas áreas mais sensíveis”. E na sequência, uma frase ao estilo de Sun Tzu: “Se queres paz, prepara-te para a guerra”.

Depois, o porta-voz do Kremlin Dmitri Peskov cuidou de explicar que Lavrov foi interpretado fora do contexto: a mídia, como se poderia prever, só se interessou em criar manchete “sensacionalista”.

O ministro de Relações Exteriores da Rússia Sergei Lavrov deposita flores no memorial que homenageia o ex-primeiro-ministro russo Yevgeny Primakov, em comemoração ao Dia do Diplomata, 10 de fevereiro, diante do Ministério de Relações Exteriores, em Moscou. Foto: AFP/Ministério Relações Exteriores da Rússia

É preciso examinar cuidadosamente, na íntegra, a resposta cheia de nuances de Lavrov, a uma pergunta sobre as agitadas relações entre União Europeia e Rússia:

“Acreditamos que estaríamos prontos para isso. Somos vizinhos. Falando coletivamente, eles são nosso maior parceiro de comércio e investimentos. Muitas empresas da União Europeia operam aqui; há centenas, até milhares, de joint ventures. Quando um negócio beneficia os dois lados, continuaremos. Estou certo de que nos tornamos plenamente autossuficientes na esfera da Defesa. Temos de alcançar a mesma posição na economia, para podermos agir como a situação exija, se virmos outra vez (já vimos acontecer mais de uma vez) que haja sanções impostas numa esfera que possa criar riscos para nossa economia, incluindo as áreas mais sensíveis, como no fornecimento de peças e componentes. Não queremos nos isolar do mundo, mas temos de estar preparados também para isso. Se queres paz, prepara-te para a guerra.”

Está bem claro que Lavrov não disse que a Rússia cortará unilateralmente relações com a UE. A bola está, de fato, no campo da União Europeia: Moscou disse, isso sim, que não exercerá uma opção de primeiro-ataque para romper relações com a autocracia de Bruxelas. E isso, por si só, também já seria muito diferente de romper relações com qualquer dos 27 estados-membros da União Europeia.

O contexto ao qual Peskov referia-se também é claro: o enviado da União Europeia Josep Borrell, depois da desastrosa viagem a Moscou, levantou a questão de que Bruxelas considerava impor mais sanções. A resposta de Lavrov foi visivelmente construída para meter algum juízo nas cabeças duras da Comissão Europeia, comandada pela notoriamente incompetente ex-ministra da Defesa da Alemanha Ursula von der Leyen, e Borrell, seu “chefe” de política exterior.

Ursula von der Leyen (C) na sessão plenária do Parlamento Europeu, Bruxelas, 9 de fevereiro. Foto: AFP

No início da semana, Peskov teve de voltar incisivamente à mesma saga vulcânica: “Lamentavelmente, Bruxelas continua a falar de sanções, como os EUA, com persistência maníaca. Aí está algo que jamais acolheremos. É coisa de que absolutamente não gostamos.”

Campeão do eufemismo diplomático.

Assim sendo, está preparado o cenário para encontro feroz – para dizer o mínimo – de ministros de Relações Exteriores da União Europeia na próxima 2ª-feira, quando discutirão – e o que poderia ser?! – possíveis novas sanções.

Dentre as sanções mais prováveis podem estar a proibição de viagens e o congelamento de bens de russos selecionados, incluindo gente muito próxima do Kremlin, a quem a União Europeia culpa pela prisão no início de fevereiro de Alexei Navalny, blogueiro e fraudador já condenado (por golpe contra Yves Rocher).

A vastíssima maioria dos russos veem Navalny – cuja taxa de ‘popularidade’ mal chega a 2% – como agente sem qualquer valor, descartável, da OTAN.

A reunião da próxima semana pavimentará a via para a reunião dos líderes dos estados-membros, marcada para o final de março, na qual a União Europeia pode – e essa é a palavra ‘de trabalho’ – aprovar formalmente novas sanções. A aprovação exige decisão unânime, com voto favorável dos 27 estados-membros da União Europeia.

Como estão hoje as coisas e excetuados os suspeitos de sempre estridentemente russofóbicos – Polônia e os países do Báltico – não parece que Bruxelas cogite de atirar nas próprias costas.

Não esqueçamos Leibniz

Observadores da União Europeia obviamente não têm observado a evolução pela qual passou nos últimos poucos anos, a visão pragmática que Moscou tem de Bruxelas.

O comércio Rússia-União Europeia continuará, aconteça o que acontecer. A União Europeia precisa terrivelmente da energia russa; e a Rússia está disposta a vendê-la, petróleo, gás, oleogasodutos e tudo. São estritamente negócios. Se a União Europeia não quer a energia russa – por uma cesta de razões – ok, sem problemas: Rússia está desenvolvendo fluxo estável de negócios, incluindo energia, por todo o Leste da Ásia.

O sempre relevante Clube de Discussão Valdai, think-tank com sede em Moscou, por exemplo, está rastreando cuidadosamente  o aspecto comercial da parceria estratégica Rússia-China:

“A política dos EUA continuará a buscar um ‘racha’ entre China e Rússia. A Europa ainda é parceira importante para Moscou e Pequim. A situação é estável na Ásia Central, mas exige que se prossiga na construção da cooperação russo-chinesa.”

Putin, paralelamente, também examinou a saga União Europeia-Rússia, subtexto da perene batalha entre Rússia e o Ocidente: “Logo que começamos a estabilizar, a voltar a ficar sobre nossos pés – imediatamente veio a política de contenção… E conforme fomos ficando mais fortes, a mesma política de contenção foi conduzida com mais e mais intensidade.”

Eu mesmo semana passada sugeri a possibilidade de vir a se formar um eixo Berlim-Moscou-Pequim, embora ainda longínqua, distância de dimensão intergaláctica.

Peter G. Spengler, analista de mídia e telecomunicações, em longo e-mail que me escreveu, qualificou elegantemente a sugestão que fiz como item do senso de possibilidade (ing.) de que fala Robert Musil em sua obra-prima O Homem sem Qualidades [vide epígrafe acrescentada pelos tradutores. NTs].

Peter Spengler também chamou a atenção para Novissima Sinica (latim) de Leibniz,[1] e particularmente para um ensaio de Manfred von Boetticher sobre Leibniz e Rússia,[2] no qual a Rússia aparece representada pelo Czar Pedro O Grande, e o autor enfatiza o papel da Rússia como ponte entre Europa e China.

Embora Leibniz afinal não tenha conseguido encontrar-se com Pedro O Grande, lê-se no ensaio que

“Sempre foi objetivo de Leibniz colocar em prática seus conhecimentos teóricos. Ao longo de sua vida, sempre procurou um ‘grande potentado’ que estivesse aberto às ideias modernas e com cuja ajuda pudesse realizar suas ideias de um mundo melhor. Na era do absolutismo, essa parecia a perspectiva mais promissora para um estudioso para quem o avanço da ciência e da tecnologia, bem como a melhoria da educação e das condições econômicas, eram os objetivos mais urgentes. O czar Peter, que era tão poderoso quanto aberto a todos os novos planos e cuja personalidade fascinava Leibniz, teria de ser pessoa de contato extremamente interessante para Leibniz.

Desde que a Europa Ocidental entrou em contato mais próximo com a China através da missão jesuíta, e Leibniz reconheceu a importância da cultura chinesa milenar, ele também passou a ver a Rússia como o elo natural entre as culturas europeia e chinesa [n.2 do original, com a referência bibliográfica completa], o centro de uma futura síntese entre leste e oeste. Com as convulsões iminentes no Império Russo, suas esperanças pareceram se realizar.” (Trecho de tradução automática, cf. nota 2, aqui de ‘amostra’. NTs)

LEGENDA: Gottfried Wilhelm Leibniz (1646-1716), filósofo e matemático. Litogravura de Pierre-Emile Desmaisons (1812-1880). Foto: AFP / Roger Violette

Mas evocar Leibniz no atual estágio dos acontecimentos é sonhar com esferas celestiais. A pedestre realidade geopolítica é que a União Europeia é instituição Atlanticista – subordinada de fato à OTAN.

Lavrov talvez deseje agir como monge taoísta, ou, mesmo, dar uma de Leibniz, mas é difícil quando você é obrigado a lidar com um bando de imbecis.

Trata-se sempre de soberania

Atlanticistas irados argumentam que Navalny, aquela não entidade, teria relação direta com Nord Stream 2. Bobagem: Navalny foi construído (itálicos meus) pelos suspeitos de sempre como aríete para minar Nord Stream 2.

A razão disso é que o gasoduto consolidará Berlim como centro da política de energia da União Europeia. E esse será fator de peso na política exterior geral da União Europeia – com a Alemanha, pelo menos em teoria, exercendo maior autonomia em relação aos EUA.

Eis aí portanto o segredo “sujo”: trata-se sempre de soberania. Qualquer ator geopolítico e geoeconômico sabe muito bem quem não deseja entente Alemanha-Rússia mais íntima.

Imagine agora uma Alemanha hegemônica na Europa, formando laços mais próximos de comércio e investimento não só com a Rússia, mas também com a China (e esse é o outro “segredo” inserido no acordo entre União Europeia e China para comércio-investimentos).

Assim sendo, não importa quem esteja hospedado na Casa Branca, nada se deve esperar do ‘Estado Profundo’ nos EUA, além do impulso “maníaco” rumo a sanções perenes, cumulativas.

A bola está agora no campo de Berlim, muito mais do que no campo de Bruxelas, aquele pesadelo eurocrático, onde prioridade de todos, para qualquer futuro imaginável, resume-se a embolsar aquelas gordas aposentadorias isentas de impostos.

A prioridade estratégica de Berlin é mais exportações – dentro da União Europeia e, sobretudo, para a Ásia. Industrialistas alemães e as classes empresariais sabem exatamente o que representa o gasoduto Nord Stream 2: soberania alemã cada vez mais assertiva, orientando o coração da União Europeia, o que se traduz em sempre mais soberania para a União Europeia.

Sinal imensamente significativo veio recentemente de Berlim, com a aprovação já garantida para importar a vacina Sputnik.

Será o “senso de possibilidade” de Musil já em operação? Ainda é cedo para dizer. Desde 2014 o hegemon faz guerra híbrida total contra a Rússia. Pode até nem ser guerra cinética; é 70% financeira e 30% infoguerra.

Uma Alemanha mais soberana mais próxima de Rússia e China pode ser o fio de palha que quebre as costas do hegemon.*******

[1] Não pesquisamos – porque achamos pouco provável que exista – tradução desse documento ao português. Mas em (http://www.mnemeion.studien-von-zeitfragen.net/Leibniz/NOVISS_1/noviss_1.HTM ) obtém-se uma tradução automática lat.-port., surpreendentemente boa como ponto de partida para tradução melhorada que interesse a algum de nossos leitores [NTs].

[2] Aqui se lê o ensaio citado, em trad. automática al.-port. não revista, mas surpreendentemente boa e legível [NTs].

Esse artigo foi retirado da publicação feita no site “Asia Times”, do dia 17 de fevereiro de 2021.

Tradução: Coletivo Vila Mandinga 

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