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O enigma Papa Francisco-Aiatolá Sistani

Pepe Escobar, Asia Times

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Por qualquer critério histórico que se queira, foi evento dos que mudam o jogo: o primeiro encontro, desde o século 7º, entre um papa católico romano e um líder espiritual e “Fonte de Emulação”[1] xiita.

Ainda demorará muito para que se avaliem todas as implicações desse encontro imensamente intrigante, 50 minutos de conversa cara a cara, só com a presença dos intérpretes, entre o Para Francisco e o Grande Aiatolá Sistani, na casa modesta onde vive numa rua em Najaf, próxima do deslumbrante santuário do Imã Ali.

Paralelo assumidamente imperfeito é que, para a comunidade dos fiéis xiitas, Najaf é cidade tão plena de significados quanto Jerusalém, para os cristãos.

A informação oficial do Vaticano é que o Papa Francisco partiu numa “peregrinação” muito cuidadosamente coreografada, ao Iraque, sob o signo da “fraternidade” – não só em termos de geopolítica, mas como um escudo contra o sectarismo religioso, de sunitas contra xiitas, ou de muçulmanos contra cristãos.

Francis voltou ao tema, numa conversa extremamente franca (em italiano) com a mídia, em seu avião de volta a Roma. Mesmo assim, o mais extraordinário é sua avaliação do Aiatolá Sistani.

Como disse o Papa, “o Aiatolá Sistani tem uma frase, espero lembrar corretamente: ‘Os homens ou são irmãos por religião, ou iguais por criação.’” Francisco vê a ponte que une essa dualidade também como jornada cultural.

Disse, da reunião com Sistani, que emitia “uma mensagem universal” e referiu-se ao Grande Aiatolá como “sábio” e “homem de Deus”: “Ao ouvi-lo, logo se vê. É pessoa cheia de sabedoria e também de prudência. Disse-me que, por mais de dez anos não recebeu ‘gente que vem me visitar, mas tem em mente outros objetivos’”.

O Papa acrescentou: “Foi muito respeitoso e senti-me honrado, até na despedida. Ele jamais se levanta, mas levantou-se duas vezes para me receber. É homem discreto e sábio. O encontro fez-me bem à alma.”

As imagens que abrem esse vídeo mostram bem o clima caloroso que marcou o encontro. Essas imagens não foram mostradas nos veículos da mídia comercial hegemônica no ocidente – a qual, em grande parte tentou desqualificar, sabotar, ignorar ou pintar a reunião com tons de sectarismo, quase sempre sob traços mal encobertos de propaganda de uma “ameaça xiita”.

O movimento era esperado, porque Francisco e Sistani enviavam mensagem antiguerra, antigenocídio, antissectarismo e antiocupação, que só poderia atiçar a fúria dos suspeitos de sempre.

Houve umas poucas frenéticas tentativas para apresentar a reunião como modo de o Papa privilegiar a ‘calma’ Najaf em oposição à militante Qom no universo xiita – ou, dito bem explicitamente, Sistani ‘contra’ o Aiatolá Khamenei do Irã. Só nonsense. Para garantir algum contexto, vejam o contraste entre Najaf e Qom em meu e-book Persian Miniatures publicado por Asia Times.

O Papa escreveu recentemente ao Aiatolá Shirazi no Irã. Teerã mantém um embaixador no Vaticano e colaborou durante anos para protocolos de pesquisa científica. Mas a atual peregrinação só teve a ver com Iraque. Diferente dos veículos ocidentais, os veículos de comunicação do Eixo da Resistência (Irã, Iraque, Síria, Líbano) cuidaram de garantir cobertura total.

Aquela fatwa crucial

Tive o privilégio de acompanhar os movimentos do Aiatolá Sistani desde o início dos anos 2000s, e várias vezes já visitei seu gabinete em Najaf.

Em 2003, quando o espantalho da hora, Abu Musab al-Zarqawi, literalmente explodiu o reverenciado Aiatolá Muhammad Baqir al-Hakim diante do santuário do Imã Ali em Najaf, Sistani pregou a não retaliação: A máquina da ocupação norte-americana era poderosa demais, e Sistani viu os riscos de dividir para governar, que adviriam de uma guerra sectária sunitas-xiitas.

Ainda em 2004, Sistani resistiu, sozinho, contra o poderoso aparelho da ocupação e a perigosa Autoridade Provisória da Coalizão [ing. Coalition Provisional AuthorityCPA] quando consideravam promover um banho de sangue para se livrarem do incandescente clérigo Muqtada al-Sadr, então abrigado em Najaf.

Em 2014, Sistani emitiu uma fatwa que legitimava a ação de armar civis iraquianos para combater contra o ISIS/Daech – especialmente com takfiris que planejavam atacar os quatro santuários sacros xiitas no Iraque: Najaf, Karbala, Kazimiya e Samarra.

Assim sendo, foi Sistani quem legitimou o nascimento de grupos armados de autodefesa que adiante viriam a ser as Unidades de Mobilização Popular, UMPs [Popular Mobilization Units, PMUs], ou Hashd a-Shaabi, adiante incorporadas ao Ministério de Defesa do Iraque.

As UMPs foram – e continuam a ser – grupo guarda-chuva, com alguns grupos mais próximos de Teerã que outros, todos trabalhando sob a supervisão estratégica do general-major Qassem Soleimani até ser assassinado em ataque de um drone norte-americano, no aeroporto de Baghdad, dia 3/1/2020.

Nunca te prometi um jardim de rosas
Never promised you a rose garden (livro, filme e peça de teatro)

Apesar de todo o calor humano, o encontro entre o Papa e Sistani pode não ter sido o proverbial jardim de rosas. Meu colega Elijah Magnier, repórter muito respeitado sobretudo para todas os eventos tenham a ver com o Eixo da Resistência, confirmou com suas fontes em Najaf alguns surpreendentes detalhes do encontro:

Said Sistani recusou-se a admitir seu fotógrafo pessoal e não quis a presença de nenhum clérigo xiita, nem de autoridades de seu gabinete, na casa da Rua Al-Rasoul onde recebeu Sua Santidade o Papa (…) O Vaticano não emitiu comunicado nem assumiu posição clara de reconhecimento e apoio aos xiitas que foram mortos na guerra contra o ISIS e defendendo os cristãos da Mesopotâmia. Assim sendo, Said Sistani entendeu que não seria o caso de se emitir qualquer “documento conjunto”, como era desejo do Papa e como havia feito em Abu Dhabi ao se reunir com o Xeique de Al-Azhar.

Magnier concentra-se, corretamente, no comunicado emitido depois da visita, pelo gabinete de Sistani – e especialmente na repetição retórica dos “Não”, “Não”, “Não”. Cada um desses “Não” é uma acusação ao hegemon.

Sistani denuncia o “sítio de populações” – incluídas sanções; nega que os iraquianos desejem que as tropas norte-americanas permaneçam no país; quando denuncia a “violência”, refere-se ao bombardeio pelos norte-americanos.

Além do mais, “Não à injustiça” é mensagem de Sistani não só a políticos em Bagdá – afundados na corrupção, sem prestar sequer os serviços básicos à população e sem criar oportunidades de empregos – mas também contra a “linguagem da guerra de Washington no Oriente Médio expandido, de Síria e Irã até a Palestina.

Fontes em Roma confirmaram que houve meses de negociações que visavam a convencer Bagdá a normalizar suas relações com Israel. Uma das ‘mensagens’ foi enviada com mediação do Vaticano. Sistani respondeu duramente, que qualquer normalização é impossível. O Vaticano nada disse.

Uma das razões pela qual o Vaticano continua mudo que que a declaração distribuída por assessores de Sistani deixa perfeitamente claro que o Vaticano não está garantindo suficiente apoio ao Iraque. Segundo fonte em Najaf, citada por Magnier, entre 2014 e 2017 “o Vaticano manteve silêncio, quando os xiitas perdiam milhares de homens na luta para defender os cristãos (e outros iraquiano); e que essa luta dos xiitas não recebeu qualquer atenção até hoje, sequer uma declaração de reconhecimento, emitida pelo papa, por todos aqueles serviços .”

A declaração do gabinete de Sistani faz explícita referência a “deslocamento, guerras, atos de violência, bloqueios econômicos e a ausência de justiça social aos quais vivem expostos os palestinos, especialmente o povo palestino dos territórios ocupados.”

Tradução: o Iraque apoia a causa dos palestinos.

Coroa de espinhos

O encontro de Catolicismo e Islã Xiita girou em torno de uma coroa geopolítica de espinhos. Considerem por exemplo que porta-vozes ou subordinados de um Presidente dos EUA católico, bem como a mídia norte-americana dominante, demonizam o inimigo da hora sem parar, sempre em termos de “milícias apoiadas pelo Irã”, “milícias apoiadas pelos xiitas” ou “milícias xiitas ligadas ao Irã”.

Perfeito nonsense. Como descobri ao conhecer alguns militantes no Iraque em 2017, as UMPs reúnem brigadas compostas não só de xiitas, mas também de iraquianos de outras religiões. Por exemplo, há o Conselho de Especialistas da Ribat Sagrada de Muhammad; o Conselho de Pensamento de Combate aos Takfiri da Sunnah Fallujah e Anbar; e a Igreja Católica Caldeia, chefiada por Rayan al-Kildani, que encontrou o Papa Francisco.

Mas é verdade que o Papa Francisco realmente condenou nessa peregrinação os que instrumentalizam a religião para arquitetar guerras –para beneficiar Israel, a farta hacienda saudita de petróleo, o império e todos os anteriores. Orou numa igreja destruída pelo ISIS/Daech.

Significativamente, o Papa Francisca deu um terço a al-Kildani, chefe da milícia Babilônia das UMPs. O Papa considera al-Kildani nada menos que o salvador dos cristãos no Iraque. Mesmo que al-Kildani seja o único cristão em todo o planeta incluído na lista norte-americana de terroristas.

Nunca será demais lembrar que as UMPs foram alvos da recente bem-sucedida aventura-bombardeio assinada por Biden-Harris dias 25-26 de fevereiro: os militantes foram realmente bombardeados no Iraque, não em território sírio. O comandante-de-campo anterior das UMPs foi Abu al-Muhandis, que conheci em Bagdá no final de 2017. E que foi assassinado ao lado de Soleimani.

O Papa Francisco só conseguiu levar adiante sua peregrinação ao Iraque graças aos combatentes de Hashd al-Shaabi – atores absolutamente chaves, da linha de frente, na luta que salvou o Iraque de ser dividido por takfiris e/ou de se tornar um Califado (fake).

E Francisco, sim, acompanhou alguns dos passos do Profeta nessa sua peregrinação abraâmica, especialmente em Ur na Babilônia; mas ouviram-se ecos muito adiante, em al-Khalil (Hebron) na Palestina, e até nas modernas Síria e Jordânia.

Mas nenhuma mera peregrinação mudará os duros fatos em campo mesopotâmico: 36% de desemprego (quase 50% dos jovens não encontram trabalho); 30% da população vive na pobreza; avançada iminente da OTAN; o hegemon incapaz de parar, porque precisa desse império-de-bases entre o Mediterrâneo e o Oceano Índico; corrupção política avassaladora numa inamovível oligarquia.

Francisco insistiu que foi só um “primeiro passo” e que envolve “riscos”. O melhor que se pode esperar, conforme estão as coisas hoje, é que o Papa e seu “discreto e sábio” interlocutor continuem a destacar que dividir para governar, atiçar as chamas das lutas religiosas, étnicas e comunitárias, só beneficia – e quem poderia ser? –os suspeitos de sempre.*******

[1] “Fonte de emulação” são algumas altas autoridades (Maraji) do xiismo dozista [ing. twelvers], a maioria das quais vivem em Najaf e Qom: dentre outros, Ali Khamenei e Sayyid Sadeq Rohani, em Qom); e Ali al-Sistani, em Najaf [da Wikipedia, 10/3/2021]. NTs.

Esse artigo foi retirado do site “Asia Times”, do dia 09 de março de 2021.

Tradução: Coletivo Vila Mandinga 

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