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Criptomoedas e hegemonia do dólar: confiança ou poder industrial?

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Gustavo Galvão
Gustavo Galvão
Gustavo Galvão. Economista e Doutor em Economia pela UFRJ. Autor do livro "Finanças Funcionais e a Teoria da Moeda Moderna" (clique aqui para ver ou comprar https://www.amazon.com.br/Finanças-Funcionais-Teoria-Moeda-Moderna-ebook/dp/B08BKTNFDJ) e do livro que será publicado no primeiro trimestre de 2021: "Problemas, Limites e Oportunidades das Finanças Funcionais e da Teoria da Moeda Moderna – MMT: Inflação, Câmbio e Restrição Externa"

“A hegemonia monetária dos EUA é um privilégio exorbitante”. Essa expressão é de Valéry Giscard d’Estaing, Ministro da Economia de De Gaulle, em 1965.

Em termos bem simples no que consistiria esse “privilégio exorbitante”?

Custa apenas alguns centavos produzir uma nota de 100 dólares, e praticamente nada para produzir 100 bilhões de dólares em moeda escriturária eletrônica. Na posse desse valor os EUA podem comprar países inteiros, ou pelo menos a produção e o trabalho da população inteira da maioria dos países por um ano.

Em razão deste privilégio exorbitante, os EUA puderam por décadas e continuam podendo comprar trilhões em bens e propriedades em todo o mundo dando em troca um pedaço de papel ou registros contábeis eletrônicos, chamados de dólares ou títulos de dívida pública em dólares, que não possuem nenhum valor material.

Na época de De Gaulle, esses dólares ainda poderiam ser trocados por ouro. Em fevereiro de 1965, o presidente Charles de Gaulle anunciou sua intenção de trocar suas reservas em dólares norte-americanos pelo ouro à taxa de câmbio oficial. Ele enviou a Marinha francesa ao outro lado do Atlântico para pegar a reserva de ouro francesa e foi seguido por vários países. Isso resultou na redução considerável do estoque de ouro dos EUA, levando o presidente dos EUA, Richard Nixon, a finalizar unilateralmente a convertibilidade do dólar ao ouro em 15 de agosto de 1971 (o “Nixon Shock”) que valia desde o acordo de Bretton Woods no fim da Segunda Guerra. Nixon dizia que seria uma medida temporária, mas o dólar tornou-se permanentemente um dinheiro 100% fiduciário [RM: lastreado na fidúcia, “confiança”] e flutuante. Em outubro de 1976, o governo americano mudou oficialmente a definição do dólar. As referências ao ouro foram removidas dos regulamentos.

Sabemos que os EUA tem o mais alto padrão de consumo do mundo. E isso é sustentando em parte pelo privilégio exorbitante de se emitir a moeda do mundo, pois os EUA recebem em mercadorias que exigiram esforço de centenas de milhões de pessoas, dando em troca uma moeda que não lhes custou nada. O déficit comercial anual dos EUA está em torno de 600 bilhões de dólares e ele existe há muitas décadas.

Dizem que a moeda americana não tem nenhum lastro, desde que abandonou o lastro em ouro. Outros dizem que teria sim um lastro. Seria o aço. O aço dos canhões, porta-aviões, tanques, submarinos, etc.

Nesse sentido, pode-se até dizer que o dólar é uma moeda de “curso forçado” no sistema internacional. Mas como toda moeda de curso forçado, seus usuários, os países, raramente percebem qualquer custo relevante por usa-la de forma preferencial. Por outro lado, percebem como custoso quaisquer alternativas.

A “confiança” no dólar

O senso comum divulgado pela imprensa diz que a preferência que se dá ao dólar vem da “confiança” que as pessoas depositam no dólar. Portanto, se aparecer uma outra moeda mais “confiável”, cripto ou não, o dólar poderá perder prestígio. Isso simplesmente não é verdade. O valor e a importância das moedas não é uma questão de “confiança”.

O dólar é a moeda hegemônica global em razão de uma rede de instrumentos financeiros, bancários e, principalmente, em razão do poder econômico e político dos EUA, que não é construído pela “confiança”, mas pela inteligência, empenho e poder.

A importância de uma moeda é sempre uma importância relativa. Ou seja, as vantagens de utilizá-la vis-à-vis suas alternativas. Hoje não há alternativa ao dólar como moeda internacional. O euro ainda está aquém do dólar em muitos aspectos e outras moedas não chegam nem perto.

No caso de países, muito antes das limitações mais severas por não usar o dólar nas transações internacionais, há limitações técnicas e bancárias, além do maior custo e menor liquidez.

Moeda para reserva cambial

De qualquer forma, o fato de ser moeda “preferencial” nas transações internacionais não é o mais importante para a hegemonia do dólar e para o papel fundamental que isso tem para a manutenção do elevado padrão de consumo e poderio da economia americana.

Mas o mais importante para os EUA é que o dólar seja reserva de valor para os bancos centrais de quase todos os países. Só quando isso acontece, a hegemonia passa a funcionar de sua forma plenamente útil e virtuosa aos EUA.

Exceto alguns poucos países que utilizam o euro como reserva internacional, quase todo mundo utiliza o dólar e isso significou muitos anos de superávit comercial no passado[1] para adquirir tais reservas. Ou seja, os trabalhadores da maioria dos países trabalharam duro para que seus bancos centrais pudessem adquirir esses símbolos em papel que não custaram nada para serem produzidos.

Além disso, o fato de todo mundo utilizar o dólar como moeda de referência cambial faz com que todos os países, sem exceção, fiquem à mercê da política monetária, e fiscal, americana, especialmente aqueles que têm liberdade de movimento de capitais.

Boa parte do poder diplomático dos EUA decorre do fato de que a política econômica de outros países praticamente não afeta em nada a política econômica americana, enquanto a política monetária americana pode causar sérios constrangimentos à política da maioria dos países e razoável constrangimento à política econômica de todos os países.

Se os EUA aumentam as taxas de juros, sugam capital de todo mundo e obrigam os outros países a aumenta-las também, se não quiserem desvalorizar suas moedas, ter aumento da inflação ou perder reservas. E são obrigados a reagir assim mesmo quando a reação implicar uma mudança nos objetivos planejados de sua política de geração de empregos, controle inflacionário ou proteção à indústria. Quando os EUA reduzem suas taxas de juros, o mesmo acontece em sinal invertido. Não há como ser obrigado a reagir frente a uma mudança abrupta da política monetária americana, mesmo que essa reação prejudique o interesse dos governos e povos atingidos.

Ou seja, ao atrelar suas políticas cambiais ao dólar, todos os países terão sua política econômica limitada, atrelada e dependente do dólar, mesmo Rússia e China. Mas é claro que dependendo do tamanho, diversificação e competitividade da indústria de cada país, as limitações podem ser maiores ou menores. A Costa Rica tem sua política econômica quase completamente dependente dos EUA, o Brasil tem menos e a China menos ainda. Mas todos tiveram que promover grande esforço, muitas vezes improdutivo, para se adaptarem às mudanças da política monetária americana nas últimas décadas.

O mais interessante é que isso não se deve a uma “confiança” que todos os países depositam no dólar, mas simplesmente ao fato de que o stress da política econômica seria, em geral, muito pior e mais difícil, se os países tentarem não adotar o dólar como moeda de reserva ou lastro e sim um ativo alternativo como ouro, o yen japonês, o petróleo, a soja ou o bitcoin.

Um país poderia fazer isso e ser bem sucedido por algum tempo, mas em algum momento esse país sofrerá algum ataque ou euforia cambial decorrente de questões financeiras, econômicas ou simplesmente em decorrência da volatilidade do próprio lastro. Por ser moeda de referência cambial de quase todos os países, o dólar é o ativo mais estável em relação a todos os outros bens e ativos e, portanto, menos propenso a sofrer volatilidade. Os EUA é o país menos sensível, aliás insensível, a um ataque cambial, porque um ataque cambial contra os EUA, significa uma supervalorização abrupta de uma outra moeda, o que pode destruir a economia do país emissor daquela moeda. Assim toda vez que acontece uma tentativa de “atacar o dólar” supervalorizando outra moeda, o banco central emissor daquela moeda compra dólares em volumes infinitos, se necessário, com emissão primária, para impedir que sua moeda se valorize e o dólar se desvalorize. Todos os países que querem ter indústria, agricultura e empregos qualificados são os maiores interessados que o dólar não se desvalorize. China e Europa em especial. Ou seja, quem sustenta o valor do dólar não é a economia americana, mas o desejo de todos os outros países em promover a própria indústria, agricultura e emprego.

Ao adotar como moeda de referência um ativo alternativo, que não o dólar, um país ficará com sua política cambial a mercê da volatilidade daquele ativo frente ao dólar. Se o ativo se valorizar frente ao dólar, a moeda do país também se valorizará, fazendo com que a indústria e agricultura percam competitividade internacional, podendo entrar inteira em falência, se a valorização for similar ao que aconteceu com o petróleo entre 2006 e 2010, ou como ouro depois de 2009, ou como o yen entre 1986 e 1990, ou com o Bitcoin recentemente. Quando o inverso acontece, a referência cambial alternativa se desvaloriza muito, sua moeda também se desvaloriza muito e o país sofrerá com inflação.

Isso acontece porque as moedas de todos os países estão vinculadas ao dólar, portanto, se só um país não estiver alinhado e estiver com seu câmbio flutuando ao sabor de uma outra referência que além de volátil não está sob seu controle, não conseguirá nem construir uma indústria e uma agricultura fortes e nem conseguirá controlar sua inflação e custo de vida.

Resumindo, se um país adota o dólar como moeda de referência, sua política monetária fica limitada e dependente da política monetária americana. Porém, se adota outra referência que não o dólar para sua política cambial e de reservas, não apenas sua política monetária fica limitada pela política monetária americana, mas também sua política cambial ficará limitada e dependente e não apenas à política monetária americana, mas também de fatores muito mais fortuitos específicos daquela moeda alternativa de referência ou lastro. Podendo ser inclusive mais vulnerável a ataques cambiais, uma vez que além de oscilar muito, ativos de baixa liquidez são muito mais sensíveis a especulação e sabotagem econômica e financeira.

Mesmo a superpotência emergente, a China, tem uma moeda quase completamente vinculada ao dólar. Isso significa limitações à política econômica chinesa. Porém, a China conseguiu se beneficiar da ancoragem no dólar. Ela investiu 30 anos para adaptar sua economia a essa situação de forma proveitosa, com o custo de ter de trocar o trabalho anual de milhões de trabalhadores por papel sem valor intrínseco. Certamente não foi uma tarefa fácil, porque a maioria dos países gostaria de fazer o mesmo, mas não conseguem. Até hoje nenhum país, nem mesmo a zona euro, que em teoria é uma tentativa de desvinculação ao dólar e a qualquer outra referência, conseguiu se dar bem, deixando de usar o dólar como referência. Os problemas da zona euro, especialmente no Sul, mostram que não foi tão bom usar o marco alemão como base para o euro. O Sul da Europa estaria muito melhor se não tivesse adotado o euro.

Uma criptomoeda petrolífera: o petro

As explicações acima colocadas implicam que a Venezuela esteja cometendo um desatino ao criar sua criptomoeda, o Petro, vinculada ao Petróleo?

Não necessariamente, mesmo porque o Petro não foge à regra de todas as outras criptomoedas: não são ainda moeda, mas de fato apenas cripto ativos financeiros ou no máximo veículos, “secretos” ou não, de transporte internacional de valor. As criptomoedas privadas jamais deixarão de ser apenas isso.

O sonho molhado dos grandes banqueiros internacionais sempre foi ter sua própria moeda privada, o que poderia fazê-los receber os ganhos de senhoriagem[2] que os governos têm além de tornarem os governos ainda mais dependentes deles. Isso pode explicar a origem do Bitcoin como um protótipo engenhoso para esse sonho. Mas as criptomoedas privadas se mostraram incapazes de cumprir o papel das verdadeiras moedas.

Para algo ser moeda ela precisa no mínimo ter as seguintes funções: (i) meio de pagamento, (ii) unidade de conta generalizada e (iii) reserva de valor. As criptomoedas não são nada disso. Praticamente não há contratos que as colocam como unidade de conta ou meio de pagamento e, com seus preços oscilando como uma montanha russa desparafusada, não poderiam ser uma reserva de valor.

O Petro é uma exceção, pois pode, sim, um dia ser uma moeda, pois ela tem o atributo fundador de todas as moedas: ser aceita como meio de pagamento de impostos. Nunca existiu uma moeda privada e nunca existirá, porque uma moeda privada não consegue manter uma grande demanda como meio de pagamento, enquanto não for válida para pagamento de impostos. Além disso, ao contrário dos Estados, nenhum ente privado tem às mãos tantos meios para garantir a estabilidade nacional e internacional do valor de sua moeda em relação ao de tantas mercadorias e moedas concorrentes.

O Petro pode vir a ser uma moeda verdadeira na Venezuela exatamente por ser estatal. Isso poderia ser de certa forma útil, porque a Venezuela não tem reservas cambiais e crédito internacional suficientes para estabilizar a cotação em dólar do bolívar.

Entretanto, o Petro seria mais útil à Venezuela se fosse usado apenas como moeda internacional e reserva cambial. Ou seja, assumi-lo mais como ativo financeiro do que como moeda de curso forçado. Assim, a Venezuela poderia criar um Novo Bolívar, como o Brasil fez com o Plano Real em 1994 e a Alemanha com o rentenmark em 1923 para acabar com a hiperinflação, tendo como moeda de referência e reserva cambial o Petro e não apenas o dólar e o yuan.

Usar o Petro como a própria moeda nacional de curso forçado poderia efetivamente acabar com a hiperinflação e a atual incapacidade de gestão da política monetária, mas cairia nos problemas que já falamos que é abrir mão de se ter uma política cambial, o que significa principalmente abrir mão de construir no longo prazo uma indústria e uma agricultura nacionais desvinculadas do petróleo e, em menor grau, de manter o padrão de consumo e seu custo controláveis. Coisas que infelizmente a Venezuela não têm hoje, mas deveria pretender ter no futuro em algum momento.

Mas não se enganem os Venezuelanos, mesmo para ter o Petro como ativo financeiro estável, moeda internacional e reserva cambial, eles precisam mais do que bons programadores de criptografia e blockchain.

O grande desafio para eles será manter o lastro de petróleo do Petro, mesmo possuindo as maiores reservas de petróleo do mundo. O maior problema da Venezuela hoje é a incapacidade, em razão de sabotagens diversas, de produzir mais de 2 milhões de barris/dia. E mesmo essa produção limitada já está completamente comprometida com a necessidade de importação da Venezuela, que é exagerada e ainda pouco controlada, e com sua dívida externa, especialmente em relação à China.

Se a Venezuela emitir muitos Petros e os possuidores pedirem, em meio a um ataque cambial, ao mesmo tempo a substituição da moeda pelo seu lastro em óleo, a Venezuela não poderá entregar. E aí o Petro se desvalorizará e perderá sua credibilidade e utilidade para a política econômica Venezuelana.

Para evitar essa vulnerabilidade, a Venezuela poderia dar como garantia não óleo físico, mas cotas de participação em subsidiárias da PDVSA, a Petrobras deles, controladoras de campos de petróleo ainda não explorados, o que é algo parecido, em teoria, ao que eles anunciaram que fariam.

Se a subsidiária for efetivamente constituída de forma operacional e se mantiver independente das necessidades de importação e obrigações externas da Venezuela e tiver respeitados seus direitos exploratórios, de comercialização e de manutenção do lastro, o Petro terá uma reserva de valor crível e poderá ser a principal reserva cambial do país. Ou seja, uma reserva cambial emitida pelo próprio país e não estrangeira. Isso já seria revolucionário internamente.

Mas se o Petro for bem sucedido, poderá ameaçar a hegemonia do dólar?

Não. Não faria nem cócegas.

Como já explicado, os países que desejam construir ou manter indústrias e agriculturas modernas e poderosas e manter a estabilidade do custo de vida precisam garantir a estabilidade da cotação de suas moedas em relação ao dólar e não a uma moeda-mercadoria, como o Petro, mesmo que essa moeda fosse emitida por um país poderoso como a Rússia.

A própria Rússia não teria interesse em vincular seu câmbio a uma mercadoria volátil como o petróleo. Se fizesse isso poderia desistir de seu velho sonho de construir uma indústria e uma agricultura competitiva em nível mundial. Ninguém faria um investimento industrial na Rússia se soubesse que seus custos salariais, imobiliários e de serviços poderiam dobrar de valor em pouco tempo, como acontece com a cotação do petróleo.

Alguém poderia perguntar “mas a estabilidade do dólar não depende dos famosos ‘acordos secretos’ que os EUA tem com a monarquias do Golfo Pérsico que se obrigaram a ter o dólar como reserva de valor e meio de pagamento para suas exportações”?

É compreensível que os americanos desejem e lutem por garantir que os países do Golfo continuem recebendo em dólar por suas exportações e que invistam seu excesso de liquidez nos EUA. Isso ajuda a manter o dólar como principal meio de pagamento internacional, reduz o risco dos EUA não ter meios de pagamento para comprar suas importações de petróleo, pode ajudar na política monetária americana, o controle da inflação e trazer mais investimentos para seu país entre outros benefícios. Mas, na prática, esses países nunca tiveram outra alternativa que não seja manter suas reservas e aceitar pagamento em dólar.

As Petromonarquias do Golfo também estão em processo de construção de economias competitivas modernas buscando se industrializar, virar polo turístico, logístico ou vendedor de serviços financeiros. Em quaisquer dos casos, não podem construir nada disso se suas moedas não tiverem estabilidade em relação ao dólar. E também não poderiam encontrar outros ativos financeiros que possam ser reservas de valor superior aos ativos em dólar para os volumes que eles precisam acumular em função de seu grande saldo comercial. O ouro, por exemplo, se não estiver vinculado à moeda de um país hegemônico, não tem nenhuma chance como reserva de valor a longo prazo. Entre 1822 e 1971 como padrão libra-ouro e dólar-ouro o ouro só foi reserva de valor porque era o lastro monetário dos países hegemônicos. Antes disso, o ouro era o metal usado para cunhagem das moedas nacionais. Ou seja, sem vinculação a uma moeda estatal, o ouro é no máximo uma aposta especulativa muito arriscada e eventualmente lucrativa, mas em geral é muito pior do que investir na bolsa de valores ou em títulos de renda fixa.

O dólar será sempre a moeda hegemônica?

Até poucos anos atrás, seriamos obrigados a dizer que sim. Hoje acredito que não. A grande ameaça ao dólar não serão moedas-mercadorias e nem moedas de países exportadores de commodities ou de países desarmados em geral.

A grande ameaça ao dólar pode vir a ser o yuan no futuro. A China muito provavelmente contestará a hegemonia do dólar na próxima década ou na seguinte, desde que ela, China, não caia na tentação de valorizar sua moeda como fez o Japão nos anos 80, quando achou que havia superado tecnologicamente os EUA.

Uma moeda valorizada é sempre uma moeda fraca. As moedas fortes são as moedas desvalorizadas como o Yuan, porque só as moedas desvalorizadas podem criar uma expectativa hegemônica de valorização desta moeda em relação à média das demais.

Mas não basta ser uma moeda forte – como o euro, libra, yen e yuan – para ser uma moeda hegemônica. Para isso, a maioria dos países, inclusive aqueles de moeda forte, precisam utilizar sua moeda como referência da política cambial ou moeda de reserva.

O yuan está longe desse ponto, mas, se ele se mantiver estável em relação ao dólar até meados da próxima década, poderá convencer cada vez mais países a usar o yuan como moeda de reserva.

O fato de os chineses acumularem imensas reservas em dólar não muda em nada essa perspectiva. Ao contrário do que dizem a maioria dos analistas econômicos, a China pode acumular dois PIB dos EUA em dívida pública americana sem que isso afete em nada a hegemonia do dólar. As reservas chinesas não são absolutamente nenhuma ameaça à hegemonia do dólar. A China simplesmente nem pode, nem deve e nem conseguiria se desfazer delas, se quisesse. Se ela tentasse vender no mercado suas reservas em dólar, o yuan subiria de valor como um foguete espacial e destruiria assim toda a poderosa indústria chinesa. Se a China usasse esses dólares para comprar bens no resto do mundo para consumir na China seria um problema, pois teria que vendê-los mais baratos que os produtos da indústria chinesa para que não encalhem, o que também prejudicaria a indústria e o emprego na China. Se a China usasse esses dólares, como aliás vem fazendo, para comprar propriedades e empresas no mundo inteiro, seria a melhor ideia. Porém, esse dinheiro que enriqueceu vendedores de patrimônios nacionais aos chineses acaba voltando para a China de alguma forma, porque a China é o exportador mundialmente preferido de produtos industriais. Ou seja, a China simplesmente não consegue se desfazer de suas reservas em dólares e nem de ter o dólar como referência da sua política cambial. Ao menos enquanto sua taxa de câmbio for mantida desvalorizada para proteger sua indústria.

O dólar superou a libra esterlina nos anos 20 exatamente por ter se desvalorizado em relação a ela e depois ter se mantido estável em relação a ela durante aquela década. Outra vantagem dos EUA naquela época foi o fato de a libra esterlina estar vinculada ao ouro e, assim, poderem constituir suas reservas em ouro e não em libras esterlinas, o que hoje não é possível.

Um dos maiores erros políticos de Churchill foi ter insistido em revalorizar a libra esterlina nos anos 20, voltando seu câmbio em relação ao ouro para o patamar de antes da Primeira Guerra Mundial. Como o câmbio entre o dólar e a libra ficou fixo depois disso, a competitividade industrial, o saldo comercial e a atração de investimento dos EUA se tornaram muito grandes, portanto as reservas de ouro passaram a migrar para lá, vindas da Inglaterra, mesmo a taxas de juros equivalentes. A Inglaterra então se viu obrigada a manter uma taxa de juros superior aos EUA. Com isso, o mundo passou a pedir dinheiro emprestado nos EUA e não mais à Inglaterra. Assim os países passaram a constituir suas reservas cambiais em dólares e não mais em libras, pois além de ser o crédito mais barato de que dispunham, as crescentes dívidas em dólares dos países e empresas obrigaram os mesmos a manter sua liquidez em dólar, porque ele era o meio de pagamento contratual para honrar tais dívidas.

Dessa forma, o dólar se tornou naturalmente a principal reserva internacional já nos anos 20. Isso tudo em razão de a libra ser lastreada em ouro e, principalmente, em razão da super competitividade, à época, da indústria e agricultura americanas que levaram ao encolhimento das reservas em ouro da Inglaterra e ao aumento dessas mesmas nos EUA, que passou a ter uma moeda considerada mais segura.

Hoje os EUA têm a seu favor o fato de ser uma moeda sem lastro. Aliás, o dólar é o lastro universal da maioria das moedas.

Para que o yuan supere o dólar como moeda de reserva o desafio será muito maior do que foi para os EUA superarem a Inglaterra, com ajuda involuntária de Churchill, nos anos 20. Como o próprio yuan não quer, não deve e não pode perder sua posição de estabilidade frente ao dólar, o dólar continua sendo uma solução confortável como referência de política cambial e reserva de valor para os bancos centrais.

Esse jogo pode mudar apenas se os EUA tiverem uma taxa de juros significativamente mais alta do que a China por muito tempo com os chineses oferendo empréstimos para outros países constituírem reservas em yuan em troca de fazerem ao menos parte de suas transações internacionais em yuan. Mas os países não farão isso se o yuan for uma moeda que oscile muito em relação ao dólar.

Dessa forma, mesmo para apenas contestar a moeda previamente hegemônica como os EUA fez nos anos 20, China precisaria de acordos bilaterais e multilaterais de comércio, investimento e financiamento interestatal para convencer diplomaticamente país a país a adotar sua moeda como reserva. Se fizer isso em uma grande extensão, e mantiver sua indústria como a mais competitiva e juros baixos, poderá manter uma política cambial independente dos EUA, o que em si definiria o fim da hegemonia do dólar e abriria espaço para um mundo monetário menos polarizado. O que, segundo a Lei de Gresham [3] , acabaria levando uma dessas moedas a se hierarquizar sobre a outra. Para os americanos esse risco seria um pesadelo, pois se o mundo, de repente, deixar de usar o dólar como reserva de valor em benefício do yuan, a economia americana seria obrigada a se reduzir em pelo menos uns 15% para zerar seu déficit em conta corrente no balanço de pagamentos com o exterior e para estabilizar sua grande dívida externa. Caso contrário, passaria a ser vulnerável a ataques cambiais e riscos inflacionários.

De certa forma, o acordo dos BRICS assinado por Dilma, Putin, Xi Jinping e Zuma em Fortaleza em 2014, logo após a desastrosa Copa do Mundo no Brasil, seria um embrião para esse tipo acordo, pois incluía um fundo mundo de reservas com moedas nacionais, acordos de comércio como moedas próprias e banco de investimento multilateral. Seria uma forma de o yuan começar a ser uma moeda de reserva desses países. Isso explica muito a guerra híbrida que Rússia, África do Sul e principalmente Brasil sofreram desde então.

Os EUA são tão ciosos e paranoicos em relação à manutenção ideológica do dólar como a moeda “mítica”, “neutra”, “confiável”, “universal” e “imprescindível” que mesmo a mínima contestação simbólica como a promessa da Venezuela adotar uma criptomoeda pode fazê-los ameaçar pela primeira vez na história uma invasão direta e oficial contra um país da América do Sul, como têm feito nos últimos meses. Segundo muitos autores, a invasão da Líbia e do Iraque foram decorrentes de “ameaças” semelhantes.

Se invadirem a Venezuela por isso, além de um desastre humanitário, estarão jogando por terra o próprio misticismo do dólar, primeiro porque pareceria que o Petro poderia ser algum dia um exemplo de algo que pudesse ameaçar o dólar, mesmo no âmbito interno da Venezuela, o que é um absurdo, porque só uma moeda sem lastro[4] de uma potência industrial e militar maior ou igual aos EUA poderia fazer isso. Segundo porque isso só fortaleceria a posição da China como potência benevolente e oferecedora de um acordo financeiro guarda-chuva de mútuo-benefício para países que desejem atrair investimentos e empréstimos chineses.

A arrogância, o unilateralismo, o autoritarismo e, por fim, intervenção militar híbrida ou direta é tudo o que os EUA não precisam hoje para manter a sua hegemonia. A próxima década vai fazer emergir a multipolaridade. Será a era da diplomacia e não da guerra. Quem não perceber isso acabará isolado e apenas acelerará sua decadência, por mais que invista em novas tecnologias militares de coerção ou manipulação para tentar superar essa tendência. Esmagar países pequenos e inofensivos como Venezuela é apenas uma demonstração patética da tentativa do valentão da rua esconder sua incapacidade em dobrar seu novo desafiante que está se formando com o Pacto de Xangai.

[1] Ou no futuro, no caso de países que adquiriram moedas através de empréstimo ou capital estrangeiro. Esses terão que ter significativos saldos comerciais no futuro.

[2] Ganhos de senhoriagem são os ganhos que um Estado tem ao emitir dinheiro primário para comprar bens e serviços em troca de mero papel sem custo de produção.

[3] https://en.wikipedia.org/wiki/Gresham%27s_law

[4] Ou seja, lastreada na própria política cambial e na própria indústria.

 

Esse artigo foi retirado do site “Duplo Expresso”, do dia 21 de março de 2018.

 

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