O ex-presidente do Brasil, Luiz Inácio Lula da Silva, está outra vez no páreo político. Na 2ª-feira passada, foi catapultado para a linha de frente da disputa política no Brasil, por uma repentina decisão da Suprema Corte do país, que declarou que a operação dita ‘anticorrupção’ concebida para fraudar a eleição presidencial de 2018, ao impedir que Lula concorresse, foi “o maior escândalo do Judiciário” em toda a história do país.
Na 4ª-feira, Lula pronunciou discurso potencialmente histórico, visto como primeiro movimento para reconquistar a presidência. Lula chicoteou o atual presidente de extrema direita, Jair Bolsonaro, declarado “imbecil”, “idiota” (ing. moronic), ele e a resposta “tola”, “errada”, “viciosa” (ing. bungling) que deu à pandemia de coronavírus. A política brasileira já está em torvelinho, constatada a inépcia e o negacionismo de Bolsonaro, causa da escala a que está chegando a crise do Covid, que já matou quase 270 mil pessoas.
Pesquisa distribuída no final de semana antes do discurso mostrava que 50% dos brasileiros já assumiam que ou já estavam decididos a votar em Lula, ou diziam-se dispostos a votar nele nas próximas eleições, contra apenas 38% pró-Bolsonaro. Fato é que a reabilitação de Lula faz subir muito a voltagem da eleição prevista para 2022, e cria real possibilidade de um confronto de titãs entre uma chamada “Maré Rosa” e o mais tóxico demagogismo de extrema-direita que o país jamais conheceu.
É visível que Lula continua a ser figura amada e reverenciada, por sua cruzada contra a miséria. O povo sente saudade dos dias de boom econômico que o Brasil conheceu durante os oito anos de mandato de Lula. Lula afastou-se de abordagens extremas e buscou vias pragmáticas para superar os desafios persistentes da miséria, da desigualdade e do baixo desenvolvimento do país.
A emergência do Brasil, como pivô central do hemisfério ocidental teria ficado incompleta, sem a magnífica contribuição de Lula, ao conduzir a economia do país para crescimento recorde, o qual, por sua vez, ajudou a financiar o desenvolvimento social que reduziu à metade a extrema desigualdade que dividia o país. Em dez anos, de 2003 a 2013, o PIB brasileiro cresceu 64%, e a população que vivia na miséria caiu à metade. Além disso, o gasto social cresceu significativamente, o salário mínimo cresceu 75% em termos reais, e criaram-se milhões de novos empregos formais a cada ano.
O ícone da esquerda na política dos EUA, senador Bernie Sanders, comemorou efusivamente a volta de Lula à política ativa. Na 4ª-feira, Sanders tuitou:
“Como presidente, Lula fez trabalho incrível para reduzir a pobreza no Brasil e na defesa dos trabalhadores. É excelente notícia que sua condenação altamente suspeita esteja agora sendo anulada. É importante vitória da democracia e da justiça no Brasil.”
Os elogios de Sanders não exibem qualquer traço de apreensão de que um veterano esquerdista esteja voltando ao poder no Brasil, ou que possa pôr os três maiores e mais influentes países na América Latina — Brasil, Argentina e México — sob a tal “Maré Rosa”. Sanders fala, isso sim, do tipo de política e de diplomacia que se pode esperar que Lula construa, ao lado dos presidentes Alberto Fernández (Argentina) e Andrés Manuel López Obrador (Mexico).
Lula, diferente nisso de Fernández e Obrador, que são intelectuais respeitados como tal, recebeu pouca educação formal. Aprendeu a ler aos 10 anos e abandonou a escola no segundo grau para trabalhar e ajudar a família. Foi engraxate aos 12 anos e vendedor de rua. Aos 14, teve o primeiro emprego formal, num armazém.
Lula ascendeu na política como líder sindical, com sólida militância entre trabalhadores. Mas, tipicamente, ia compensando suas inadequações – se é que algum dia houve alguma – ao mesmo tempo em que ia construindo o Partido dos Trabalhadores – partido de esquerda, com ideias progressistas cevadas durante os governos militares do Brasil em 1980 –, tendo ao leme de seu partido, além dele, um colegiado de líderes sindicais e vários acadêmicos e intelectuais brasileiros respeitados.
Como presidente, Lula foi como muro corta-fogo que resistiu contra esforços incansáveis dos EUA para desestabilizar outros processos políticos na região, esses, sim, mais radicais, que cresciam no Equador, na Bolívia e na Venezuela, mesmo que nenhum dos outros movimentos ‘coincidisse’ com a trajetória ideológica de seu próprio governo.
Iniciativas como a União das Nações Sul-americanas, Unasul, e a Comunidade de Estados Latino-americanos e do Caribe (ing. Caricom), criadas para promover maior integração da região, receberam pleno apoio do Brasil de Lula. Esse apoio, e uma via socialista própria, garantiram mudança importante na política exterior do hemisfério durante seus governos. Mas, pelos sobretons anti-imperialistas, também, ao mesmo tempo, valeram a Lula e ao seu partido a antipatia do establishment dos EUA. Mas Lula jamais foi abertamente anti-EUA e sempre foi agudamente consciente de que o Brasil precisava manter comércio e relações de investimentos com o ocidente, sobretudo, que precisava garantir acesso ao mercado norte-americano.
O que provavelmente mais irritou Washington foi que o Brasil de Lula rapidamente se converteu em participante ativo do grupo BRICS. A ideia de que os BRICS foram concebidos como polo econômico e político alternativo ao grupo das nações G7, essa, sim, sempre atraiu as simpatias pessoais do presidente Lula.
Mas, do ponto de vista de Washington, os BRICS foram (e continuam a ser) ideia perniciosa, dado que o grupo apresentava-se como desafiante contra a ordem internacional liderada pelos EUA com suas cadeias de abastecimento, divisões do trabalho, e, claro, total dominância do EUA-dólar.
O então secretário de Estado dos EUA, Mike Pompeo, não esqueceu de levantar um brinde ao que supôs que fosse saída eterna de Lula, da vida política. Numa das últimas mensagens de Pompeo, já de saída do Departamento de Estado, dia 19 de janeiro, Pompeo tuitou, com mal disfarçado tom de triunfalismo que, com Bolsonaro no governo do Brasil e o primeiro-ministro Narendra Modi no governo da Índia, os BRICS teriam entrado em coma; implicando que os dois governantes mereceriam toda a confiança para dispersar qualquer remodelação do grupo a favor de Rússia e/ou China:
Remember BRICS? Bem…
graças a @jairbolsonaro e @narendramodi o B e o I já entenderam que o C e o R são ameaças ao próprio povo.
Então… Viva os BRICS! Os sonhos de Pompeo viraram cacos. Lula já começou a voltar. E Modi será anfitrião da reunião de cúpula dos BRICS em 2021.
Isso posto, embora Lula não seja nem jamais tenha sido demagogo, marxista ou anti-EUA, sua volta ao poder no Brasil pode ainda significar duro golpe contra as pretensões de Washington, que sonha com restaurar sua hegemonia na região, num momento em que a onda de conservantismo que se seguiu à “Maré Rosa” está recuando em todo o hemisfério, e perde força a estratégia global de se opor a China e Rússia em todo o mundo, em todas as frentes, principalmente no tradicional ‘quintal’ dos EUA.
Não há dúvidas de que, se Lula for eleito presidente ano que vem, sua eleição reenergizará os BRICS. Moscou e Pequim veriam Lula como aliado com convicção que deita raízes na própria raison d’etre do bloco como instituição que mais genuinamente apoia o desenvolvimento e constrói os pilares fundacionais de um mundo multipolar.
Ainda não se sabe como o governo de Joe Biden se adaptará a essa realidade geopolítica. Bolsonaro teve laços próximos com o governo Trump, e o grosseiro atual presidente do Brasil talvez enfrente hostilidade de Biden. (No Brasil, Bolsonaro é chamado de “Trump tropical”).
Dia 7 de novembro, Lula disse que o mundo “respirava aliviado” com a vitória de Biden; e Bolsonaro, apaixonado servidor de Trump, manteve eloquente silêncio. Lula tuitou: “Saúdo a vitória de Biden e expresso minha esperança de que seu governo será guiado pelos valores humanistas que marcaram sua campanha, não só domesticamente, mas em suas relações com a América Latina e o mundo.”
Quando Biden disse, no primeiro debate com Trump, que os EUA precisavam empurrar o Brasil para que protegesse melhor a Floresta Amazônica, Bolsonaro respondeu que o comentário teria sido “desastroso e desnecessário”. De fato, veículos da mídia brasileira, citando fontes do governo, disseram que o governo Bolsonaro não cogitava de reconhecer a vitória de Biden, até que se esgotassem todos os recursos legais que Trump ameaçara impetrar.
Hoje, de fato, se Biden realmente quiser enfrentar os demagogos de direita no Brasil, bastará entender-se com Lula.*******
Esse artigo foi retirado do site “Indian Punchline”, do dia 11 de março de 2021.
Tradução: Coletivo Vila Mandinga