Caio Prado Júnior (São Paulo, 11 de fevereiro de 1907 — São Paulo, 23 de novembro de 1990) foi um dos mais importantes pensadores brasileiros. Pertencente a uma família abastada de cafeicultores e sobrinho-neto de Eduardo Prado, autor do livro A Ilusão Americana, Caio Prado destacou-se não apenas no campo intelectual, mas, também, no editorial, pois fundou, em 1943, junto a Monteiro Lobato, a editora Brasiliense, uma das maiores e mais respeitáveis do Brasil. Preso e exilado durante o governo Getúlio Vargas pela sua filiação ao PCB (Partido Comunista Brasileiro), foi eleito, em 1945, terceiro suplente de deputado estadual em São Paulo, tendo proposto, durante a Assembleia Constituinte Paulista de 1947, a criação de um órgão público de fomento à pesquisa em moldes semelhantes ao da futura FAPESP, criada em 1962.
O fio condutor da sua obra é a compreensão da formação histórica do Brasil, tema em voga no contexto da Era Vargas e para o qual Caio Prado deu uma das mais apuradas contribuições. Adepto não-dogmático do materialismo dialético, para ele, o entendimento do presente é impossível sem o do passado, pois a História se organiza como totalidade diacrônica e não como sucessão cronológica de fragmentos temporais.
Caio Prado busca, então, as raízes do Brasil no período colonial, quando, de fato, o Brasil começa a se formar e a existir. Contudo, não como nação soberana, mas como empresa comercial voltada para o atendimento da demanda europeia por matérias-primas. A organização econômica e social estabelecida no Brasil, fundada na grande propriedade rural, monocultora, escravista e exportadora, não tinha por objetivo fazer subsistir a população brasileira que aqui surgia e crescia como efeito da própria colonização, mas suprir os centros estrangeiros de cobiçados artigos primários. A exportação sistemática de recursos naturais estaria baseada na extrema exploração do homem, cujo suor e sangue serviriam ao conforto e à prosperidade dos europeus abastados e não da massa popular no Brasil. O sentido da formação brasileira orientar-se-ia, pois, ao exterior, e não para dentro. Mesmo as atividades introvertidas do País, como a pecuária sertaneja e a agricultura e a indústria de subsistência praticadas no entorno dos engenhos e no rastro das bandeiras, seriam, para ele, elementos secundários e apendiculares de uma formação estruturada para e pelos centros metropolitanos exteriores. Segundo o autor, tal característica permaneceria desde os tempos coloniais, não tendo sido essencialmente superada, pois, apesar da Independência política, a estrutura material e social colonial teria sido mantida.
Como escreve em seu importante livro Formação do Brasil Contemporâneo, publicado em 1942:
“Se vamos à essência da nossa formação, veremos que na realidade nos constituímos para fornecer açúcar, tabaco, alguns outros gêneros; mais tarde ouro e diamantes; depois, algodão, e em seguida café, para o comércio europeu. Nada mais que isto. É com tal objetivo, objetivo exterior, voltado para fora do País e sem atenção a considerações que não fossem o interesse daquele comércio, que se organizarão a sociedade e a economia brasileiras. Tudo se disporá naquele sentido: a estrutura, bem como as atividades do país. […] O ‘sentido’ da evolução brasileira, que é o que estamos aqui indagando, ainda se afirma por aquele caráter inicial da colonização” (p. 20).
Caio Prado atribui tal durabilidade colonial, em parte, a um suposto caráter conservador da Independência, que, em sua análise, significou uma transferência pacífica de poder da Metrópole portuguesa para o novo governo brasileiro e as classes superiores da antiga colônia, feita à revelia dos setores populares. Ele conclui que “A Independência brasileira é fruto mais de uma classe que da nação tomada em conjunto” (Evolução Política do Brasil e Outros Estudos, 1971 [1953], p. 48). Desconsidera, portanto, não apenas a Guerra de Independência, que mobilizou cerca de 50 mil soldados brasileiros na luta contra Portugal, como, também, a multiplicidade de projetos nacionais no período, sendo o mais importante o de José Bonifácio de Andrada e Silva, cujos méritos o próprio autor reconhece no artigo O Tamoio e a Política dos Andradas na Independência do Brasil, publicado no mesmo livro.
Caio Prado, apesar disso, acertou ao apontar o caráter eminentemente mercantil da formação brasileira, cujo caráter capitalista teria se fortalecido especialmente a partir do fim do monopólio colonial português em 1808, quando se definiu a integração direta do Brasil aos centros industriais e financeiros mundiais e, apesar de mantido o caráter periférico do País, ampliou-se o horizonte de possibilidades de ação comercial em relação à situação anterior.
Em sua grande obra A Revolução Brasileira, de 1966, polemizou contra a doutrina do antigo PCB, com o qual havia rompido, acerca da centralidade de um “feudalismo latifundiário” no Brasil, a ser superado por uma revolução burguesa capitaneada por uma burguesia industrial nacionalista, anti-imperialista e aliada aos trabalhadores. Para ele, o esquema histórico-evolutivo europeu, da transição do feudalismo ao capitalismo nacional, não se aplicaria ao Brasil devido ao nosso País ter se formado nos marcos da expansão ultramarina do mercantilismo europeu. O Brasil nasceu e se constituiu como periferia capitalista, dotado de um capitalismo heterônomo, de baixo nível técnico e por muito tempo escravagista, não como um país feudal. Da mesma forma, o Brasil não seria uma colônia de exploração aos moldes africanos e asiáticos, pois, diferentemente desses outros casos, o Brasil não existia previamente à intervenção europeia, de modo que a própria formação sociocultural brasileira, e mais fortemente ainda dos grupos dirigentes brasileiros, facilitava a integração subalterna aos centros ocidentais.
Assim, não haveria por que pensar, no Brasil, em uma oposição entre a indústria capitalista dirigida por uma classe industrial nacionalista e progressista, e um suposto latifúndio feudal dirigido por uma classe senhorial pré-capitalista, reacionária e ligada ao imperialismo. Nas condições de um País caracterizado por um capitalismo que preservava aspectos coloniais, a indústria surgira como o desdobramento do desenvolvimento capitalista da agricultura exportadora e se dinamizara com a internacionalização do mercado de crédito dos países capitalistas centrais. A industrialização do capitalismo periférico brasileiro, solidária às atividades agroexportadoras, não teria rompido com o chamado imperialismo, mas se dado a partir do seu arcabouço. Não teria havido uma luta derradeira de classes entre os proprietários rurais e os industriais. Houve, isto sim, um entrelaçamento histórico no qual, ao contrário do que supunham as teses pecebistas, não seria incomum encontrar, entre os grandes fazendeiros, disposições antagônicas ao capital imperialista, cujas flutuações e instabilidades os ameaçavam diretamente, e, entre os grandes industriais, disposições pró-imperialistas, favoráveis a uma maior participação do capital estrangeiro na organização industrial do País e hostis a reformas sociais.
Caio Prado, crítico ao que considerava o caráter heterônomo da industrialização brasileira, propôs o que chamou de “Programa da Revolução Brasileira”, quinto capítulo d’A Revolução Brasileira. Consistia em uma estratégia de desenvolvimento calcada no planejamento governamental, não para substituir a iniciativa privada, mas para desenvolvê-la de modo autônomo e nacionalista, voltada para dentro do País e para atender aos interesses e demandas da população brasileira. Ele defendia, então, realizar a integração nacional e social do País, por meio da construção de infraestruturas e a abertura de oportunidades de investimento no interior despovoado e pauperizado do Brasil, bem como da elevação do padrão material de trabalho e de vida dos segmentos populares. Dessa maneira, os estímulos ao investimento e ao crescimento viriam não mais de propulsões exteriores, mas do aumento do poder aquisitivo e das condições existenciais da massa populacional brasileira e do aproveitamento econômico e da ocupação demográfica da vastidão geográfica do Brasil. O País criaria, de fato, uma economia nacional que efetivasse a soberania no plano material e social, rompendo definitivamente com o estatuto colonial.
Nesse sentido, Caio Prado assinalou, muito corretamente, que a reforma agrária, entendida como o desmembramento das grandes propriedades rurais, seria uma solução abstrata para um problema inexistente. Não tendo nunca havido de forma significativa, no Brasil, um campesinato alijado de terras – tanto pela abundância de terras férteis para uma população historicamente exígua quanto pela divisão espontânea de grandes propriedades decadentes, como ocorrido nas antigas regiões cafeicultoras paulistas – a questão social agrária residiria, então, na criação de mais e melhores empregos nas grandes unidades agrícolas. Como muitas delas se mantinham quase que unicamente pelo baixo custo da mão de obra, a elevação dessa as obrigaria a elevar sua produtividade para não perecerem, acelerando o desenvolvimento agrário. O desenvolvimento técnico-produtivo das grandes propriedades, impulsionado pela elevação do quinhão distributivo dos trabalhadores, seria, pois, a solução para a questão agrária, e não um simples e imediato fracionamento patrimonial.
Caio Prado, entretanto, não entendeu que o seu “programa revolucionário” expressava exatamente as transformações concretas vivenciadas pelo Brasil desde a Revolução de 1930, aprofundadas pelos governos JK e militares. A coordenação estatal dos recursos naturais e do seu aproveitamento pelas indústrias de base, a Marcha para o Oeste, a construção de Brasília, a Consolidação das Leis Trabalhistas e o Estatuto do Trabalhador Rural, por exemplo, foram empreendimentos voltados para se criar um desenvolvimento autocentrado, sustentado na dinamização do mercado interno e da amplitude territorial do País. Caio Prado, intelectualmente ativo durante esse processo de mudanças estruturais, não o compreendeu adequadamente, enxergando continuação do passado colonial onde havia justamente a sua superação e a edificação de uma Nação independente, conforme ele defendia.
Polêmico, vivaz e contundente, Caio Prado Jr. firmou-se como um dos maiores intérpretes da nacionalidade brasileira. Concordando-se ou não com suas colocações, elas invariavelmente suscitam a reflexão e o pensamento sobre as fundações, as razões de ser e as possibilidades do Brasil, iluminando os caminhos da construção nacional brasileira.
Referências – obras do autor:
– Evolução Política do Brasil (1933)
– Formação do Brasil Contemporâneo (1942)
– História Econômica do Brasil (1945)
– Evolução Política do Brasil e Outros Estudos (1953)
– A Revolução Brasileira (1966)
– História e Desenvolvimento (1972)
Esse artigo foi retirado do site “Bonifácio”, do dia 17 de março de 2021.