– XVI –
Por 3 séculos com raras exceções, ficaram sob sigilo político dos portugueses, os documentos e relatos que nos referiam para o mundo, como as cartas cartográficas, mapas, diários oficiais e os tornado conhecidos, vieram muito mais pelos estrangeiros. Como já sabemos, quando não se destrincham vísceras históricas, outros a contam como bem entendem.
Os relatos literários de viagens em voga naquela Europa de época; descrevendo ora o exotismo da Terra Papagali, ora a sacralidade e ingenuidade dos originários da Terra de Santa Cruz ou até mesmo o servilismo expoliável, resultante da mistura ‘de uma gente de cor acastanhada em corpos bem talhados mal cobertos’ com abundância de ‘um pau de seiva vermelha que só se circunda com quatro braços’ do Brasilis|Brasil; corou donzelas e atiçou cobiças. E entre seus capítulos mais interessantes, aquele que nos DNAlizou até hoje, foi o do canibalismo, ou do mais culturalmente apropriado, antropofagismo.
Se por um lado, eram relatos confortáveis para os portugueses, já que serviam de justificativa à crueldade do genocídio (olha ele já aí gente!) e também desestimulavam outros exploradores, por outro, condensaram a curiosidade de destemidos holandeses, franceses e ingleses que rasgaram os mares do sul.
Verdade é que o ritual antropofágico entre as tribos resume em si, a captura|devoro do inimigo, não por hábito alimentar, mas para sugar suas características qualitativas de espírito de coragem|bravura|sabedoria, com pitadas de promessas de vingança pelos familiares e honra por tal destino final.
Um bispo português sabor Sardinha havia sido comido pelos ‘emocionais Caetés baianos’, outro tal Hans alemão, foi aprisionado pelos ‘intelectuais Tupinambás paulistas/cariocas’ (aspas para o geo e um talvez indício do nosso cromossomo polarizador), que só não foi devorado por ser considerado uma mistura um tanto covarde e doente no entanto interessante do ponto de vista da estratégia astuta de guerra.
Salvo por piratas franceses, o fugitivo Hans nos brindou com seu detalhadíssimo Duas Viagens ao Brasil|1557, na Alemanha |1882, por aqui, pudemos definitivamente compreender tal costume, e como os portugueses e os franceses lidaram naquelas relações coloniais. Os primeiros acreditaram em selvageria traiçoeira, revidavam com maior teor de violência e queriam, ao final, apenas a mão de obra escrava. Os mais pensadores, para não dizer avançados mesmo, enxergavam a bravura, entendiam os comportamentos, viam as virtudes dos combates e desenvolveram ‘ótimas’ parcerias comerciais.
– Hans Staden também pode ser assistido em dois filmes que nele inspiraram, Como é gostoso o meu francês|1971, de Nelson Pereira dos Santos e Hans Staden|1999, de Luis Alberto Pereira –
Nesse ponto do século XVI, vemos a antropofagia gestando idéias que desmembocariam em fontes desde para o futuro iluminismo com as análises contextuais; passando pela filosofia, nas trocas entre colonizadores|colonizados e tiranos|oprimidos; até para a própria legislação européia sobre os direitos dos homens, com a teoria da bondade natural d’“o ser humano não é mau por princípio, mas se torna, ao ser corrompido pela sociedade” E ainda, penso eu, para a própria Revolução Francesa “os homens nascem e permanecem livres e iguais em direitos”. (Tudo bem que aqui, posso ter puxado um pouco a sardinha – desculpem o trocadilho – para o nosso lado!)
– XX –
Na virada do século XX, a Europa ferida de guerra e em total crise de identidade, fez com que a sociedade, em especial a classe artística, buscasse novas inspirações na vanguarda além limites, tendência essa que não tardou a respingar por aqui.
O rompimento com o conservadorismo, academicismo e linguagens ditas antiquadas (percebam que ainda gosto bem) e eruditas, mais a retomada da urgente essência brasiliana quase selvagem, ecoou na Semana de Arte Moderna de 22.
Do Manifesto Pau Brasil|1924, Oswald de Andrade extraíu a poesia nos fatos, de formação étnica rica, misturando primitivismo simplório com as influências modernas. Os casebres de açafrão e de ocre, nos verdes da favela, sob o azul cabralino, foram fatos estéticos. Do carnaval do Rio concluíram que Wagner submerge ante os cordões de Botafogo.
Foi radicalmente contra o gabinetismo das Escolas de Arte (aqui seu provável único deslize histórico), pois o que importava, era a prática da vida. Queria uma linguagem sem arcaísmo, que fosse natural e neológica como falamos, como somos.
Dos Manifesto Verde Amarelismo e Grupo Anta|1927, mais ligados à vertente literária, Cassiano Ricardo, Menotti Del Picchia e Plínio Salgado, em um ufanismo de pureza sagrada|imaculada e zero influência exterior, resultaram num totalitarismo engessando as regras das características nacionais e desnecessário do ponto de vista da formação e alcance populares.
E do Manifesto Antropofágico|1928, de novo Oswald, junto a Raul Bopp, chegaram à conclusão de uma certeira equalização ao pico de sentimental nacionalismo e a dureza dos conceitos.
Consolidaram o pensamento da Revolução Caraíba, muito maior que a francesa (olhem o superlativo otimista de novo), que para eles resumia na união pelo devoro, sorvendo os saberes adversários e nos transformando definitivamente em TOTENS, uma marca tipo exportação.
Do tupi or not tupi, ficou a conclusão de que se não fosse a antropofagia (obrigada meus autóctones), provavelmente ainda, estaríamos a importar as fórmulas desgastadas e sem originalidade.
– O casal Oswald e Tarsila –
Oswald; que para mim junto a Lima Barreto (em breve um texto), foram os primeiros antropólogos deveras brasileiros; conseguiu em alguns movimentos e Manifestos, explicar a importância da crítica sem xenofobismos dessas influências culturais eurocentristas nas variadas formas de arte e que, no entanto, seria absorvida junto à nossa originalidade tão nutritiva.
Unido em torno das mentes decoloniais paulistas mais criativas, e depois especialmente numa imersão ao interior do país com Tarsila, sua companheira, capturaram nosso essencial e acabaram semeando a árvore modernista|identitária brasileira.
“Só a antropofagia nos une. Socialmente. Economicamente. Filosoficamente.”
Oswald de Andrade
Tarsila, aristocrata paulista, que estudou arte na França com Léger, sorvendo do mestre, as vanguardas concretistas, e daquela expedição interiorana, a nossa alma, as transfigurou em sua sólida fase Pau Brasil, e em suas telas até o final. Ou melhor, expandindo o limite temporal a rodar o mundo até hoje.
“Encontrei em Minas, as cores que adorava em criança.
Ensinaram-me depois que eram feias e caipiras.
Mas depois vinguei-me da opressão, passado-as para as minhas telas.
O azul puríssimo, o rosa violáceo, o amarelo vivo, o verde cantante.”
Tarsila do Amaral
A Negra|1923 conceitua o cubismo e o primitivismo numa onda pós-abolição que urgia inclusão, mas que acabou entregando uma obra cheia de estereótipos e contradições, se compararmos com seu Auto Retrato do mesmo período. Está no MAC-USP.
Abaporu|1928, ‘o homem que come gente’, passível de inúmeras interpretações e análises, nos iconizou, nos internacionalizou.
Na minha modesta, o retrato a uma figura andrógena, cabeça pequena (que por acaso tem um formato e corte de cabelo muito parecidos com seus próprios), refletindo o ‘não refletir’ da maioria dos brasileiros à época, hibridado com imensos membros conectados às agruras do sertão nordestino, de céu azul, sopro entre comuns céus cinzentos e banhado de um sol caldante. Cores brasileiras em traços puros. Um ser que vive dentro da própria cultura.
Vendido como a tela mais cara de nossa história, está fincada ainda em terra latino-americana (MALBA).
Antropofagia|1929, entrelaça as duas primeiras de forma a desmistificá-las, reconduzindo ambas à terra, claro resumo de seu pensamento mais maduro, onde o que importa, é o popular nos unndo definitivamente.
Pertence à Fundação José e Paulina Nemirovsky (Pinacoteca-SP).
Ignorados pela maioria conservadora da imprensa, conivente da vedação das idéias vanguardistas, esse remelexo intelecto cultural de toda forma, foi nossa pedra filosofal transformadora, Oswald nos teorizou e Tarsila visualmente nos traduziu.
Tupinaqueamos!
Tropicalizamos!
– Tropicália –
Os anos 20 e 30, com a segunda geração modernista também chamada de realista social, amassaram o barro para os fabulosos anos 50, para a arte contemporânea e sua filha sessentinha mais ‘superantropofágica’, a TROPICÀLIA.
Enquanto a arte moderna desconstrói a tradição, a arte contemporânea questiona a própria idéia de arte, indo além das formas, das técnicas, das dimensões – do bi para o tri – rompendo a parede, invadindo o espaço e seduzindo o espectador por completo, tornando-o partícipe do processo.
Enfim chega o momento da minha paixão avassaladora (VAR! Cadê você, meu filho? Organiza esse meu esquema aí!). Aquele que reconfigurou meu destino, Helio Oiticica – o gigante experimental.
“Não se trata mais de impor um acervo de idéias
e estruturas acabadas ao espectador,
mas de procurar pela descetralização da arte,
pelo deslocamento do que se designa como arte,
do campo intelectual racional, para a proposição criativa vivencial,
dar ao indivíduo de hoje, a possibilidade de experimentar a criação.”
Helio Oiticica
Tudo começou com os exercícios de ‘figura-fundo’ na escola de arquitetura, com slides que jogavam luz nos Metaesquemas|1950 – um guache sobre carvão, com seu abstracionismo geométrico e suas cores concretas, nos Grandes Núcleos|1960 – um ‘móbile’ imenso em madeira recortada e pintada, nos Parangolés|1965-1972 – capas de tecidos coloridos ‘desintelectualizadas’, nos Imagéticos|1966 e, onde eu descobri poder circular, vestir ou penetrar na arte, um lance pré-Matrix, arrematado com a citação ‘Museu é o mundo!’
‘Libertem as cores!’
bradava
O bagulho bateu forte! E aprofundei.
“A antropofagia seria a defesa que possuímos contra tal domínio exterior, e principalmente arma criativa, essa vontade construtiva,
o que não impediu de todo, uma espécie de colonialismo cultural,
que de modo objetivo queremos hoje abolir,
absorvendo-o definitivamente numa superantropofagia.”
Continuava Oiticica
– 1977 –
Sua Tropicália chegou chegando ao MAM|RJ, com a exposição Nova Objetividade Brasileira, uma composição ajuntada com os penetráveis PN2|1966 e PN3|1967, resgatava o populacho e convidava o espectador a um labirinto de singelos chitões, plantas, pedras, areia, dos puros poemas-objetos, do improviso das capas de Parangolés e até uma televisão (aqui uma crítica ao consumo de massas). Foi uma espécie de vingança anti colonial estética à avalanche exagerada que chegava dos Estados Unidos.
Vale muito, para quem ainda não conhece, uma visita presencial|banquetural, assim que possível, à Inhotim, nossa meca tupi de arte contemporânea.
Deixem-se engolir! – lhes digo
– Caetano e os tropicalistas –
Vestiu a arte!
Com tudo posto, puderam então assimilar tudo e transmutar numa arte absolutamente original tupinaque simbólica, que alcançou a música, o cinema e o teatro. E sob todas essas influências, não tardou Caetano em seu álbum de Caetano Veloso|1968, lançar, dentro de uma capa originalíssima nacional (projeto de Rogèrio Duarte com foto de David Drew Zing), a música Tropicália, lotada de referências art nuveau com pura brasilidade.
Sobre a cabeça os aviões
Sob os meus pés, os caminhões
Aponta contra os chapadões, meu nariz
Eu organizo o movimento
Eu oriento o carnaval
Eu inauguro o monumento
No planalto central do país
Viva a bossa, sa, sa
Viva a palhoça, ça, ça, ça, ça
O monumento é de papel crepom e prata
Os olhos verdes da mulata
A cabeleira esconde atrás da verde mata
O luar do sertão
O monumento não tem porta
A entrada é uma rua antiga,
Estreita e torta
E no joelho uma criança sorridente,
Feia e morta,
Estende a mão
Viva a mata, ta, ta
Viva a mulata, ta, ta, ta, ta
No pátio interno há uma piscina
Com água azul de Amaralina
Coqueiro, brisa e fala nordestina
E faróis
Na mão direita tem uma roseira
Autenticando eterna primavera
E no jardim os urubus passeiam
A tarde inteira entre os girassóis
Viva Maria, ia, ia
Viva a Bahia, ia, ia, ia, ia
No pulso esquerdo o bang-bang
Em suas veias corre muito pouco sangue
Mas seu coração
Balança a um samba de tamborim
Emite acordes dissonantes
Pelos cinco mil alto-falantes
Senhoras e senhores
Ele pões os olhos grandes sobre mim
Viva Iracema, ma, ma
Viva Ipanema, ma, ma, ma, ma
Domingo é o fino-da-bossa
Segunda-feira está na fossa
Terça-feira vai à roça
Porém, o monumento
É bem moderno
Não disse nada do modelo
Do meu terno
Que tudo mais vá pro inferno, meu bem
Que tudo mais vá pro inferno, meu bem
Viva a banda, da, da
Carmen Miranda, da, da, da da, da da da
No álbum Tropicália OU Panis ET circensis|1968 ainda no furacão criativo pré AI5, com capa em homenagem vívida à foto dos criadores do nosso modernismo, (projeto de Rubens Gershman e foto de Olivier Perroy) e músicas experimentais, num amálgama de ritmos e sons, com guitarras elétricas já devidamente digeridas (sim, houve na época uma marcha purista contra as ‘inglesinhas’), sela o pavimento.
– Desdobramentos –
Abaporu|1967, de Glauco Rodrigues, Glugluglu|1967, de Anna Maria Maiolino Proposta de uma Catequese|1993 de Adriana varejão, Comida| 1987 entre outras, nunca mais tiraram o canibalismo tupinaque da mesa.
Em seu álbum Maritmo|1998, Adriana Calcanhotto veste um parangolé pamplona e deglute Hélio.
O parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona a gente mesmo faz
Com um retângulo de pano de uma cor só
E é só dançar
E é só deixar a cor tomar conta do ar
Verde
Rosa
Branco no branco no preto nu
Branco no branco no preto nu
O parangolé pamplona
Faça você mesmo
E quando o couro come
É só pegar carona
Laranja
Vermelho
Para o espaço estandarte
Para o êxtase asa-delta
Para o delírio, porta aberta
Pleno ar
Puro hélio
Mas o parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona você mesmo faz
O parangolé pamplona a gente mesmo faz
O parangolé pamplona você mesmo faz
Com um retângulo de pano de uma cor só
E é só dançar
E é só deixar a cor tomar conta do ar
Verde
Rosa
Branco no branco no preto nu
Branco no branco no preto nu
E se farta de Caê
Vamos comer Caetano
Vamos desfrutá-lo
Vamos comer Caetano
Vamos começá-lo
Vamos comer Caetano
Vamos devorá-lo
Degluti-lo, mastigá-lo
Vamos lamber a língua
Nós queremos bacalhau
A gente quer sardinha
O homem do pau-brasil
O homem da paulinha
Pelado por bacantes
Num espetáculo
Banquete-ê-mo-nos
Ordem e orgia
Na super bacanal
Carne e carnaval
Pelo óbvio
Pelo incesto
Vamos comer Caetano
Pela frente
Pelo verso
Vamos comê-lo cru
Vamos comer Caetano
Vamos começá-lo
Vamos comer Caetano
Vamos revelarmo-nos
– XXI –
Continua, e continua e façamos esse processo, que urge terraplanar essa terra arrasada, semear o que nos sacia, ocupar todas as áreas, para em breve, nos nutrirmos dos bons frutos-nação.
Há pouco, num reverbero antropofágico onde menos esperava, já que meu olhar contempla arte|cultura, outra luz brilhou. Neste panorama político atual, onde debatemos questões bólidas, Paulo Nogueira batista Jr, escritor do livro “O Brasil não cabe no quintal de ninguém”, forte defensor da nossa soberania, desenvolvimento e verdadeiro nacionalismo (não esse fajuto cafona que passa aos olhos), disse:
“O país precisa,
antropofagicamente de um nacionalismo aberto à influências externas,
capaz de absorver criativa e oportunamente.
Inclusive, diante de temas relevantes como clima e pandemia,
aberto à cooperação internacional.”
Como vêem, um conceito longe de ser finito ou satisfeito.