Habemus chanceler. Quo vadis, Itamaraty?
A chegada do novo chanceler Carlos Alberto França foi recebida pela imprensa sem grandes expectativas. A mídia aposta na continuidade dos principais eixos da diplomacia do presidente Bolsonaro, agora com baixos teores, menos errática e com maior pragmatismo. A maioria dos blogs de esquerda (no mais das vezes meras correias de transmissão “progressistas” do que dizem os jornalões) também tem destacado o fato de que o chanceler não tem experiência em formulação de política externa, ser “da cozinha” do Palácio e ter sido aprovado pela dupla Eduardo Bolsonaro e Filipe Martins, os verdadeiros “formuladores” do Presidente na área internacional.
Pode ser. Mas penso que não será demais alimentar boas expectativas num aspecto crucial para o Brasil e sobre o qual nada se tem falado nesta mudança de comando no Itamaraty: o nosso lugar na América do Sul e a cooperação pan-amazônica.
É fato que o novo chanceler não é, digamos, um medalhão do Itamaraty. Ingressou na carreira em 1991 e chegou a ministro de primeira classe (embaixador) em 2019, quando já ocupava a chefia do cerimonial da Presidência da República, onde havia iniciado como subchefe na gestão de Michel Temer, subordinado ao diplomata Pompeu Andreucci.
Nos últimos meses do governo de Temer, Andreucci foi nomeado embaixador na Espanha e Andorra e Carlos Alberto França assumiu a chefia do cerimonial. Nessa condição cuidou da posse do presidente Bolsonaro. O seu desempenho e o trato afável com os políticos atraíram simpatias que alçaram a sua carreira. Nomeado embaixador em 2019, assumiu em seguida a chefia da assessoria especial da Presidência.
Ocupou cargos no Paraguai, Washington e na Bolívia, onde foi ministro-conselheiro. De volta a Brasília da Bolívia, seu terceiro e último posto no exterior, em 2011, passou a servir como assessor do chefe do cerimonial do Palácio do Planalto, no governo Dilma, onde permaneceu até 2015.
No mesmo ano, licenciou-se para trabalhar na Andrade Gutierrez, como diretor de assuntos corporativos e negócios internacionais, onde permaneceu até 2017. Sua função era de natureza técnica, relacionada com o financiamento de projetos da empreiteira no exterior. Isso foi pouco antes da eclosão da Lava Jato, que nocauteou a empreiteira e a engenharia consultiva e a indústria da construção pesada brasileira. Com o impeachment de Dilma, voltou a trabalhar no Palácio do Planalto, de onde sai agora para o Palácio dos Arcos.
Mas em que palácio da Esplanada dos Ministérios Carlos Alberto França agora trabalha importa para o seu currículo. Para o Brasil e os brasileiros o que importa é que, a crermos no que escreveu, o chanceler tem um olhar para o desenvolvimento e a integração sul–americana. Sua tese de conclusão do LVIII Curso de Altos Estudos (CAE) do Instituto Rio Branco, no Ministério das Relações Exteriores, em janeiro de 2013, teve como tema “Os empreendimentos hidroelétricos do Rio Madeira e as relações Brasil – Bolívia: análise das perspectivas de integração energética bilateral.”
Impressiona positivamente que na apresentação do livro originado da tese pela Fundação Alexandre de Gusmão (https://www.researchgate.net/publication/299688677_Integracao_Eletrica_Brasil-Bolivia_o_encontro_no_Rio_Madeira) leia-se:
“Na opinião do autor, as perspectivas de integração elétrica e de vinculação física bilateral a partir dos projetos de desenvolvimento do Madeira ampliam a estratégia diplomática que teve gênese em Roboré e, ao mesmo tempo, reforçam doutrina elaborada por Alberto Ostria e Fernando Guachalla, para quem a Bolívia – “tierra de contactos” – tem atributos para exercer papel agregador na América do Sul.”
Num momento em que cooperação pan-amazônica assume vital urgência para o Brasil, é auspiciosa a chegada à chancelaria de um diplomata capaz de formular estratégias integracionistas e de cooperação como esta:
“ Em virtude da tendência à interiorização do desenvolvimento econômico na América do Sul, a Bolívia pode tornar‐ ‐se um dos pontos de cruzamento das crescentes correntes de comércio no Subcontinente, sobretudo no sentido Atlântico‐Pacífico.
É natural enxergar a Bolívia como nação andina, mas é relativamente pouco divulgado o fato de a bacia Amazônica abarcar os Departamentos de Beni, Pando e Cochabamba, cerca de 70% de Santa Cruz e 65% de La Paz, além de 35% de Chuquisaca e 10% de Potosí. Entretanto, não há naquele país entidade alguma que represente a totalidade da bacia Amazônica boliviana, como ocorre no Brasil com a “Amazônia Legal” ou com a denominada “região hidrográfica amazônica”.
Por esse motivo, o Itamaraty deve propor à Bolívia a criação de referente institucional semelhante, cuja correspondência com estrutura análoga no Brasil permitirá estabelecer diálogo bilateral mais dirigido àquela região, foco das iniciativas de integração hidroelétrica. Tal aproximação permitirá, mais facilmente, identificar oportunidades para acelerar o processo de vinculação física e energética, bem como discutir, em foro apropriado, soluções estruturais para questões que desafiam o desenvolvimento socioeconômico da região, muitas das quais comuns a ambos os lados da fronteira Norte. “
Depois de um turbulento interregno obscurantista em que o Itamaraty desviou o Brasil do seu destino natural de ser elemento de coesão, equilíbrio e pacificação da América do Sul para tratar de temas “candentes” como o risco do “comunavírus” e do “marxismo cultural globalista” e o papel de Donald Trump como herói libertador do Ocidente, esperemos que o Presidente da República tenha tido consciência clara de que escolheu para a chefia da nossa diplomacia alguém que defendeu (e queremos crer que siga defendendo) ideias como esta:
“Nos dias de hoje, o Brasil tem na América do Sul o principal espaço de seus interesses diplomáticos. Tal ocorre tanto por razões econômicas quanto por razões de sua circunstância geográfica, uma vez que o Brasil faz fronteira com a quase totalidade dos países da região e compartilha recursos naturais com muitos de seus vizinhos.
A identidade de país sul‐americano, construída pela diplomacia brasileira ao longo do século passado, contribui para situar a inserção internacional do país a partir de sua circunstância geográfica.”
Enfim, a chegada de um chanceler integracionista e pan-amazônico é notícia alvissareira que se soma às iniciativas do Conselho Nacional da Amazônia Legal e da reativação do Parlamento Amazônico por iniciativa do Congresso Nacional brasileiro, com o apoio dos parlamentos da Bolívia, Colômbia, Equador, Guiana, Peru, Suriname e Venezuela, países signatários do Tratado de Cooperação Amazônica, como pudemos analisar com alguma amplidão e profundidade em artigo publicado no (portal) Bonifácio sob o título “Reativação do Parlamento Amazônico – é a chegada a hora da diplomacia parlamentar pan-amazônica?”
Aos brasileiros nos cabe esperar que a gestão do embaixador Carlos França honre o que ele escreveu no trabalho de conclusão do Curso de Altos Estudos do Itamaraty. Quem viver, verá.
Samuel Gomes
Mestre em Filosofia do Direito, Doutorando em Direitos Humanos e Desenvolvimento, Advogado e Assessor Parlamentar