“O conteúdo do Grande Reset não difere muito do conteúdo da globalização.
Mas a globalização (…) significa, sobretudo, transformar todos os países e todas as sociedades, em Ocidente. Isso é muito importante.”
(The Great Reset and the Great Awakening, 1/3/2021, Entrevista com Alexander Dugin, Deutsche Stimme, ing.).
“(Richard) Stengel vem do governo Obama, saído da TIME Magazine, onde foi editor-gerente de 2006-2013. Em 2008, comandada por Stengel, TIME pôs Obama 14 vezes na capa, além de o ter declarado “Pessoa do Ano”. Depois de servir ao governo Obama, Stengel trabalhou para Snap, Inc. – empresa que controla os aplicativos Snapchat e Bitmoji, de mídias sociais. Passou-se então para MSNBC, como um dos analistas da equipe que criou e divulgou a ‘teoria’ conhecida como ‘Russiagate’. Stengel é conhecido por ‘noticiar’ que Donald Trump e Putin seriam ‘brothers’. Hoje chefia o Gabinete para Questões de Mídia Global [ing. United States Agency for Global Media (USAGM)], de Biden-Harris”.[1]
Forças globalistas estão sendo mobilizadas para vencer uma última batalha, na ‘guerra longa’ – com vistas a invadir-ocupar por todos os lados.
Em The Revolt of the Public, Martin Gurri, ex-analista da CIA, diz que as elites ocidentais estão passando por um colapso da autoridade, que deriva de não conseguirem distinguir entre crítica legítima e – em suas próprias palavras – “rebelião ilegítima”. Quando se perdeu o controle sobre o mito de justificação dos EUA, a máscara caiu. E a disparidade entre o mito e a experiência pública tornou-se absolutamente evidente.
Ao escrever em 2014, Gurri anteviu que o Establishment reagiria com denunciar, como se fossem mentiras e desinformação, todas e quaisquer evidências de descontentamento popular.
O Establishment – na avaliação de Gurri – estaria tão apertado dentro da própria ‘bolha’, que seria incapaz de assimilar a perda do monopólio de que usufruíra sobre a ‘realidade’ que o próprio Establishment inventara. Esse Establishment em crise de negar a realidade manifestar-se-ia, dizia Gurri, de forma autoritária delirante e violentíssima.
As previsões de Gurri confirmaram-se, com a dissidência Trumpista ‘declarada’ uma ameaça ‘contra nossa democracia’ – em meio a ataque generalizado, pela mídia e plataformas sociais. Essa resposta só confirmaria as suspeitas do público, demarcando assim um círculo vicioso de cada vez mais “desconfiança e deslegitimação” – Gurri concluiu.
Esse foi o núcleo do argumento de Gurri. Mas o traço mais impressionante do livro é o modo como parece antecipar perfeita e completamente o que só se consumaria na era de Trump e Brexit – e no impulso ‘antissistema’ por trás daqueles movimentos. Nos EUA, esse impulso expôs Trump – não o contrário.
Aqui, o ponto essencial é que os EUA então já não viam Vermelhos e Azuis como duas asas abertas de uma mesma ave da democracia liberal. Para algo bem próximo de metade dos EUA, o ‘sistema’ estava viciado na direção de favorecer os ralos 0,1% que ficavam com tudo, e contra o povo.
O ponto chave aqui é sem dúvida se o Grande Reset das elites – para se autorreinventarem, elas mesmas, como líderes dos valores ‘atualizados’ do liberalismo, recobertos por pós-modernidade requentada, comandada por Inteligência Artificial e robôs – será bem-sucedido, ou não.
A continuada ‘ocidentalização do globo – principal componente do ‘velho’ globalismo liberal – embora maculada e vastamente desacreditada, ainda é forçada e mandatória, como se vê claramente no raciocínio cogente recentemente apresentado por Robert Kagan:
– Ausente o mito de justificação de ‘semear democracia pelo mundo’ em torno da qual organizar o império, a lógica de toda a empreitada começa a cair aos pedaços, argumentou Kagan (com surpreendente franqueza).
Assim, Kagan afirma que o império dos EUA longe de casa seria indispensável – precisamente para preservar o mito da ‘democracia’ em casa. EUA que se retirem da hegemonia global, argumenta ele, já não terão tampouco a força de coesão necessária para preservar os EUA como democracia liberal sequer em casa.
Gurri é ambivalente quanto à habilidade da elite para aderir rapidamente. Afirma simultaneamente que “o centro não sustenta”,[2] mas na sequência acrescenta que a periferia “não tem nem ideia de o que fazer”. As revoltas públicas aconteceriam mais provavelmente sem conexão com planos coerentes, forçando a sociedade para ciclos intermináveis de confrontos de soma zero entre autoridades míopes de um lado, e, de outro lado, subalternos cada vez mais furiosos. Chamou a isso “paralisia por confiança zero”, quando elementos externos podem “neutralizar, mas não substituir, o centro”; e “redes podem protestar e derrubar governos, mas nunca governam” (itálicos dos tradutores brasileiros).
Pode, sim, haver alguma verdade nessa última observação, mas o que acontece hoje nos EUA é uma só ‘batalha’ (embora seja batalha chave) numa guerra estratégica mais longa, que começou há muito tempo. A noção de uma Nova Ordem Mundial nada tem de nova. Imaginada hoje pelos globalistas, como antes, continua a ser processo teleológico de ‘ocidentalização’ do globo (‘valores universais’ ocidentais), perseguido sob a rubrica de modernismo (científico).
Mas o que garante ao Grande Re-set lugar à parte é que se trata agora de versão posterior, mais ‘atualizada’, de valores ocidentais – já não os mesmos valores ocidentais como foram ontem. O mau cheiro de colonialismo foi exorcizado do projeto imperial, substituído pela guerra contra a ‘supremacia branca’ e contra a injustiça racial e social. A liderança Global foi reconfigurada em termos de ‘salvar o planeta’ da mudança climática; salvar toda a humanidade da pandemia; e nos salvaguardar, ‘todos’, de uma crise financeira global que se aproxima. Melhor, nem leite de mãe. Quem resistiria a agenda assim tão bem-intencionada?
O Grande Re-set em andamento é processo de metamorfose – uma mudança nos valores e no paradigma ocidentais. Como o Professor Dugin escreve:
“E isso (…) é um processo duplo para atualizar o próprio ocidente e [ao mesmo tempo], para projetar uma versão atualizada do mundo posterior. É uma espécie de combinação pós-moderna de Ocidental e Moderno”.
Mas a essência – a raiz dessa luta meta-histórica – sempre foi a ordem mundial, o foco da sociedade aberta que obcecadamente visa a arrancar os seres humanos para fora de todas as formas de identidade coletiva. Primeiro, extrair o Homem Renascentista de sua noção de ser um microcosmo que interpenetra o interior de um vasto macrocosmo vivo circundante e é penetrado por ele (objetivo amplamente alcançado graças ao advento do Cientificismo empirista); separando-o depois do Catolicismo Latino (via o individualismo Protestante); e mais recentemente, ao libertá-lo do estado-nação secular (via o globalismo). E finalmente, alcançamos o dilacerante ‘estágio-final’ – quando são cortadas todas as conexões com todas as identidades e histórias coletivas, inclusive as conexões de etnicidade e gênero (ambas agora a serem autodefinidas individualmente [já não socialmente definidas].
Eis a passagem para um novo tipo de liberalismo, que dissolve gênero e identidade numa só fluidez líquida. Esse último aspecto não é ‘acessório’, secundário ou acréscimo irrelevante: é ‘algo’ essencialmente incorporado no âmago da lógica do liberalismo. A lógica é inescapável. E a que fim lógico tudo isso leva? Bem… Leva à des-localização[3] do eu subjetivo lançado no trans-humanismo.
“Precisamos libertar os objetos, dos sujeitos, da humanidade, e explorar as coisas como elas são – sem o homem, sem ser uma ferramenta do homem”. Mas não vamos por aí, que é a via escura. Ser humano é impor o subjetivo ao objetivo.
E aqui aparece, destacado o insight de Gurri: O plano escapou do controle, e vai-se tornando cada vez mais bizarro. O momento unipolar dos EUA ‘foi-se’. Criou oposições de vários tipos, em casa e no exterior. Impulsos conservadores e tradicionais reagiram contra a agenda ideológica radical e, crucialmente, a Crise Financeira de 2008 e o quase colapso do sistema mostraram às elites que estava próximo o fim da hegemonia financeira dos EUA, e concomitantemente do primado dos EUA. A conjuntura tornou-se crítica.
No momento estão num impasse crucial. Quando falam sobre Re-set, significa retorno forçado à continuação da agenda. Mas não é tão simples e direto quanto parece. Tudo parecia praticamente pronto para entrar nos eixos há vinte anos. Agora, contudo, o Establishment está obrigado a lutar por cada elemento dessa estratégia, porque por todos os lados encontram resistência crescente. E não é resistência desprezível. Só nos EUA, 74 milhões de norte-americanos rejeitam a guerra cultural que é feita contra eles.
Fyodor Dostoevsky descreveu em Os Demônios (publicado em 1871-1872) as consequências dessas cesuras que nos separam dos significados, como fenômeno que opera nos níveis mais profundos da psique humana coletiva. Transcendê-las? Impossível. ‘Não há como simplesmente se livrar disso.’ O anseio pelo significado, por saber quem somos, está fundamente implantado na psique humana. Em Os Demônios, negar e rejeitar esse anseio leva à violência mais pervertida (incluindo até estupro de criança), destruição cega e outros comportamentos patológicos extremos.
Originalmente, Dostoievsky pensara Os Demônios como polêmica política. Mas, horrorizado com notícias de que um líder niilista russo orquestrava um assassinato político sem alvo definido e sem qualquer sentido, Dostoevsky fez das notícias ficção, na esperança de lançar luz sobre o processo pelo qual liberais seculares russos sensíveis, gentis e bem-intencionados dos anos 1840s haviam preparado o caminho para a geração de russos (também) liberais e seculares dos 1860s, mas já então radicalizados, jovens aos quais as ideologias enlouqueceram, dedicados a estraçalhar o mundo.
Num dado sentido, a exploração a que Dostoevsky dedica-se, da psicologia dos russos liberais seculares nos anos 1840s (que transmitiram suas críticas anti-establishment à geração seguinte) mostra que ali estavam os pioneiros da geração de Woodstock dos anos 1960s – juventude cordata, mimada, em busca de significado e de transcendência que os extraísse, pela música, sexo e drogas, de uma ‘realidade’ tediosa. Nos dois casos liberais seculares e anti-establishment produziram crianças furiosas, movidas pelo ódio contra um mundo que só fazia conspirar sem parar para frustrar a visão ‘jovem’ de então, de como as coisas ‘deveriam ser’.
Se interrogado sobre por que a cultura ocidental deixou-se apanhar na armadilha de uma dinâmica que oscilava entre o liberalismo e o radicalismo niilista por praticamente dois séculos, e sem conclusão à vista, Dostoevsky responderia provavelmente que aconteceu por causa da des-localização[4] dos níveis mais profundos do que significa ser humano. É perda que inevitavelmente cria patologias. (Carl Jung chegou à mesma visão).
Assim sendo… o Re-set será completado?
As elites ainda se agarram à ocidentalização do mundo (‘America is back’ – embora ninguém dê sinais de grande interesse). Os obstáculos são muitos e crescentes. Obstáculos e crises nos EUA – onde Biden está visivelmente autodevorando a própria autoridade. A tomada de decisões nos EUA cada dia mais parece não ter encontrado seu locus, um ‘trono’ ou, talvez devamos dizer, um mestre dos anéis que funcione. Quem está encarregado da Política Externa? Opacidade absoluta. E os próprios EUA estão irreconciliavelmente divididos e enfraquecidos. Mas também, e pela primeira vez, EUA e União Europeia são cada vez mais vistos, no planeta, como incapazes para dar conta da gestão até dos assuntos mais simples.
Mesmo assim, é evidente a chamada globalista às armas. Claramente o mundo mudou ao longo dos últimos quatro anos. Forças globalistas, portanto, estão sendo mobilizadas para vencer uma última batalha na ‘guerra longa’ – procurando entrar em todos os locais. Derrotar Trump foi o primeiro objetivo. Agora, outro objetivo é desacreditar todas as variedades europeias de ação popular.[5]
Os EUA pensam que estarão na liderança das potências marítimas e das terras litorâneas (orig. rim-land) se impuserem derrota psicológica, tecnológica e econômica arrasadora à aliança Rússia-China-Irã. No passado, talvez fosse razoável prever esse resultado. Agora, a Eurásia pode muito bem permanecer sólida contra uma Oceana debilitada (e uma Europa de coração já fraquejante). Até as fundações do Leviatã seriam abaladas. E sabe-se lá o que pode então emergir das ruínas da pós-modernidade.*******
[1] Epígrafes acrescentadas pelos tradutores.
[2] “The Second Coming” [A Segunda Vinda], William Butler Yeats, trad. de Paulo Vizioli [NTs].
[3] Orig. ing. dis-embedding. Tradução tentativa. Correções e comentários são bem-vindos [NTs].
[4] Orig. ing. dis-embedding. Tradução tentativa. Correções e comentários são bem-vindos [NTs].
[5] Orig. European populism. Tradução tentativa, dado que “populismo” não significa a mesma coisa em todas as culturas e em diferentes momentos. Correções e comentários são bem-vindos [NTs].
Esse artigo foi retirado do site “Strategic Culture Foundation”, do dia 15 de março de 2021.
Tradução: Coletivo Vila Mandinga