Leviatã parece estar-se posicionando para surto geopolítico à Kill Bill – mas com espada de aço de alto carbono enferrujada.
Previsivelmente, os masters do estado permanente[1] dos EUA ainda não se deram conta de que podem eventualmente ser neutralizados por golpe geopolítico de Técnica de Palma e Cinco Pontos que Explode o Coração (ing. Five Point Palm Exploding Heart Technique).
Em ensaio conciso e ardente [em português, aqui], Alastair Crooke apontou o coração da matéria. Eis os dois insights chave – incluída uma These are the two key insights – incluída alusão Orwelliana certeira:
- “Quando se perdeu o controle sobre o mito de justificação dos EUA, a máscara caiu. E a disparidade entre o mito e a experiência pública tornou-se absolutamente evidente” (traduzido aqui).
- “Os EUA pensam que estarão na liderança das potências marítimas e das terras litorâneas (orig.rim-land), se impuserem derrota psicológica, tecnológica e econômica arrasadora à aliança Rússia-China-Irã. No passado, talvez fosse razoável prever esse resultado. Agora, a Eurásia pode muito bem permanecer sólida contra umaOceania debilitada[2](e uma Europa de coração já fraquejante)” (traduzido aqui).
E isso nos leva a duas reuniões de cúpula interconectadas: (1) do Quad;[3] (2) de China-EUA 2+2 no Alaska.
A reunião virtual do Quad na 6ª-feira passada veio e foi-se como nuvem à deriva. Quando se tem o primeiro-ministro da Índia Narendra Modi a dizer que o Quad é “força para o bem global”, não surpreende que tantas sobrancelhas tenham-se erguido em todo o Sul Global.
Wang Yi, ministro de Relações Exteriores da China observou, ano passado, que o Quad era parte de um movimento para criar uma “OTAN Asiática.”
E é. Mas o hegemon, que se sobrepõe como mandante à Índia, Japão e Austrália, não confessará. Daí a retórica vaga sobre “Indo-Pacífico livre e aberto”, “valores democráticos”, “integridade territorial” – tudo isso é código para “conter a China”, especialmente no Mar do Sul da China.
O sonho molhado dos excepcionalistas – manifesto rotineiramente na Think-tank-elândia nos EUA – é posicionar um enxame de mísseis na primeira cadeia de ilhas, apontados para a China, feito porco-espinho armado. Pequim sabe perfeitamente disso.
Além de um manifesto conjunto bem comportado, o Quad prometeu entregar 1 bilhão de doses de vacinas anti-Covid-19 por todo o “Indo-Pacífico”, até o final de … 2022.
A vacina seria produzida pela Índia e financiada por EUA e Japão, e a Austrália contribuiria com a logística de distribuição.
Previsivelmente, foi vendida como “meio para fazer frente à influência da China na região.” Pouco demais, tarde demais. Em resumo: O hegemon está furioso, porque a diplomacia da vacina chinesa é sucesso descomunal – não só na Ásia, mas em todo o Sul Global.
Não se trata de ‘diálogo estratégico’
O secretário de Estado dos EUA Tony Blinken não passa de apparatchik que foi boy de torcida organizada pró “Choque e Pavor” contra o Iraque há 18 anos, em 2003. Naquele momento, era chefe de gabinete dos Democratas na Comissão de Relações Exteriores do Senado, então presidida pelo senador Joe Biden.
Agora, Blinken dirige a política exterior dos EUA para aquela entidade recortada em papelão que repete ao vivo frente às câmeras “Farei o que você ordenar, Nance” (de “Nancy Pelosi”); e que diz do presidente da Rússia que seria “assassino”, “sem alma” e que “pagará um preço”.
Parafraseando Pulp Fiction: “Diplomacia morreu, baby. Diplomacia morreu” [aqui].
Com isso em mente, há pouca dúvida de que o formidável Yang Jiechi, diretor do Gabinete da Comissão de Assuntos Exteriores do Comitê Central do PCC, lado a lado com o ministro de Relações Exteriores Wang Yi, farão sopa de barbatana de turbarão de seus interlocutores Blinken e Jake Sullivan, Conselheiro de Segurança Nacional, na cúpula 2+2 em Anchorage, Alaska.
Apenas dois dias antes do início das Duas Sessões (ing. Two Sessions in Beijing; traduzido, com o título dado pelo autor “Um país, Duas Sessões, tantas metas”) Blinken proclamou que a China seria “o maior desafio geopolítico do século 21”.
Para Blinken, a China é o único país com poder econômico, diplomático, militar e tecnológico “para desafiar seriamente o sistema internacional estável e aberto – todas as regras, valores e relacionamentos que fazem o mundo funcionar como queremos que funcione, porque, afinal serve aos interesses e reflete os valores do povo norte-americano.”
Blinken pois admite que o que realmente conta é o modo como o mundo funcione “como queremos que funcione” – onde “nós” é o hegemon que, em primeiro lugar, fez as tais regras. E as tais regras servem aos interesses e refletem os valores do povo norte-americano. Tipo: é como queremos, ou vá caindo fora.
Até se poderia desculpar Blinken, porque não passa de recém-chegado ao palco principal. Mas fica ainda muito mais embaraçoso.
Imagem: Secretário de Estado dos EUA Antony Blinken ajusta o fone de ouvido durante conferência de imprensa conjunta, ao lado do secretário da Defesa dos EUA Lloyd Austin, do ministro de Relações Exteriores da Coreia do Sul Chung Eui-yong e do ministro da Defesa da Coreia do Sul Suh Wook, depois da reunião no Ministério do Exterior em Seul, dia 18 de março. Foto: AFP/Lee Jin-man / POOL
Eis a política exterior de Blinken, numa linha (digo “de Blinken, porque o holograma que habita a Casa Branca precisa de instruções no ponto de ouvido todos os dias, dia e noite, até para saber que horas são):
Sanções, sanções, sanções por todos os cantos; Guerra Fria 2.0 contra a Rússia e “Putin é assassino”; China pratica genocídio em Xinjiang; conhecido estado de apartheid com passe livre para agir como queira; o Irã tem de piscar primeiro, ou nada de voltar ao acordo nuclear (JCPOA); Random Guaidó reconhecido presidente da Venezuela, com mudança de regime, ainda no topo das prioridades.
Vê-se aqui uma curiosa encenação de teatro kabuki. Acompanhando a lógica da já proverbial porta giratória em DC, antes de literalmente atravessar a rua para ter pleno acesso à Casa Branca, Blinken foi sócio-fundador de WestExec Advisors, cuja principal linha de negócios é vender “expertise política e geopolítica” a multinacionais norte-americanas, a maioria das quais estão interessadas em – claro! – China.
Assim sendo, o Alaska pode apontar para algum tipo de contrapartida para o setor comercial. Mas o problema parece insuperável. Pequim não quer descartar o lucrativo mercado norte-americano, enquanto, para Washington, a disseminação da tecnologia chinesa por todo o Ocidente é anátema.
O próprio Blinken cuidou de anular preventivamente o encontro do Alasca, ao dizer que “não é diálogo estratégico.” Estamos portanto outra vez promovendo a fraude do “Indo-Pacífico”; recriminações contra a “perda da liberdade” em Hong Kong – ‘evento’ que absolutamente já não considera o papel da Quinta Coluna EUA/Reino Unido; o Tibete; e a “invasão” de Taiwan, agora em surto de repetição incansável nos veículos, com o Pentágono a ‘garantir’ que seria “provável” antes de 2027.
É… “diálogo estratégico” não é, mesmo.
A junkie em viagem ruim
Wang Yi, em conferência de imprensa ligada ao 13º Congresso Nacional do Povo e ao anúncio do Plano Quinquenal que estava por vir, disse: “Vamos dar um exemplo de mútua confiança estratégica, ao apoiar firmemente uns os outros, na promoção de interesses importantes e centrais, opondo-nos firmemente, juntos, a ‘revoluções coloridas’ e desinformação, e salvaguardando a soberania nacional e a segurança política nacional”.
Vê-se aí contraste agudo com a escola pós-verdade dos “altamente provável” preferidos dos (já fracassados) propagandistas de Russiagate e cinófobos variados.
Professor Wang Jisi, intelectual chinês de alto prestígio, que privava da intimidade do falecido Ezra Vogel, autor da, pode-se dizer, melhor biografia de Deng Xiaoping em inglês, introduziu dose extra de sanidade, ao relembrar a ênfase que Vogel deu à necessidade de EUA e Ásia Oriental compreenderem, cada lado, a cultura do outro lado.
Para Wang Jisi, “Nas minhas próprias experiências, encontrei uma diferença muito esclarecedora entre os dois países. Na China, gostamos da ideia de “buscar chão comum, reservando nossas diferenças.” Dizemos que os interesses comuns entre nossos dois países excedem em muito nossas diferenças. Por ‘chão comum’ entendemos um conjunto de princípios como respeito mútuo e cooperação. Os norte-americanos, em contraste, tendem a se fixar em questões duras, como tensões em torno de Taiwan e do Mar do Sul da China. Parece que os chineses querem fixar princípios antes de tentar resolver problemas específicos, mas os norte-americanos querem negociar com problemas, antes de estarem prontos para melhorar o relacionamento.”
Imagem: Zbigniew Brzezinski, ex-conselheiro nacional de segurança dos EUA, fala em Washington, em 2009. Foto: AFP / Mandel Ngan
O real problema é que o hegemon parece incapaz, incapacidade congênita, de compreender o Outro. Sempre volta àquela conhecida formulação de Zbigniew Brzezinski, marcada pela arrogância imperial, em sua obra magna de 1997, O Grande Tabuleiro de Xadrez:
“Para pôr em terminologia que assume a velha e mais brutal era dos antigos impérios, os três grandes imperativos da geoestratégia imperial são impedir a colusão e manter a dependência entre os vassalos para segurança; manter os tributários curvados e protegidos; e impedir que os bárbaros venham a se juntar.”
Dr Zbig referia-se, claro, à Eurásia. “Dependência entre os vassalos para segurança” aplicava-se sobretudo a Alemanha e Japão, nodos chaves na Rim-land [aproximadamente “terras litorâneas”]. E “tributários curvados e protegidos” aplicava-se principalmente ao Oriente Médio.
E, crucialmente, “impedir que os bárbaros venham a se juntar” aplicava-se a Rússia, China e Irã. Eis, numa linha, o que foi a Pax Americana. E aí está o que hoje está de cabeça para baixo.
Daí a lógica à Kill Bill. Tem longa história. Menos de dois meses depois do colapso da URSS, o Defense Planning Guidance de 1992, já pregava dominação global total e, seguindo o Dr Zbig, como imperativo absoluto, impedir a emergência de qualquer novo competidor.
Especialmente a Rússia, definida como “única potência no mundo com capacidade para destruir os EUA”.
Então, em 2002, no início da era “eixo do mal”, veio a doutrina de dominação de espectro total como pedra fundamental da Estratégia de Segurança Nacional dos EUA. Dominação, dominação por todos os cantos, dominação: terrestre, aérea, marítima, subterrânea, cósmica, psicológica, cibertecnológica.
E, não por acaso, a Estratégia do Indo-Pacífico – que guia o Quad – só cuida de “como manter a primazia estratégica dos EUA.”
Esse modo de pensar só capacita a Think-tank-elândia norte-americana a formular “análises” risíveis, cujo único “ganha” pró-EUA exige absolutamente um “regime” fracassado, na China.
Imagem: Espera-se que EUA e China troquem visões francas sobre muitas questões, na próxima reunião no Alaska. Facebook.
Afinal de contas, o Leviatã padece de incapacidade congênita para aceitar relação “ganha-ganha”; só conhece “soma-zero”, só sabe dividir para governar.
E isso é o que conduz a parceria estratégica Rússia-China a estabelecer progressivamente um ambiente de segurança mais amplo e mais abrangente, cobrindo tudo, de armamento de alta tecnologia a banking e finança, suprimento de energia e o fluxo de informação.
Evocando mais uma preciosidade da cultura pop, o Leviatã sem noção está agora feito uma Caroline, a junkie de Berlin, de Lou Reed:
But she’s not afraid to die / All of her friends call her Alaska / When she takes speed / They laugh and ask her / What is in her mind / What is in her mind / She put her fist through the window pane / It was such a / funny feeling / It’s so cold / in Alaska.[4]
[1] Orig. Deep State (lit. “estado profundo”). Já há algum tempo, temos optado por traduzir essa expressão por “Estado Permanente”. Depois de muito discutir, chegamos a um consenso: “Afinal de contas, o tal Deep State (i) não é ruim por ser profundo: é ruim por ser eterno, permanente, imutável, inalcançável pelas instituições e forças da democracia; e além disso, (ii) nem ‘profundo’ o tal Deep State é: ele vive à tona, tem logotipos, marcas e nomes na superfície, é visível, portanto; mesmo assim, se autodeclara “profundo”. Não. Ele que se autodeclare o que queira. Nós o declaramos “Estado Permanente” (e anotamos nossos motivos, aqui, em nota dos tradutores [NTs].
[2] Oceania (ing.) é um dos quatro superestados, em 1984, de George Orwell. Vide mapa [NTs].
[3] Sigla de Quadrilateral Security Dialogue (ing.) (“Diálogo de Segurança Quadrilateral”) é diálogo estratégico informal entre EUA, Japão, Austrália e Índia, mantido por conversações entre os estados-membros. Estabelecido em 2007 (“Quad 1.0”); 2017 (“Quad 2.0”: reiniciada) [NTs, com informações de Wikipedia].
[4] “Mas ela não tem medo de morrer / Todos os amigos a chamam de Alaska / Quando ela se droga / Eles riem e perguntam / O que ela tem na cabeça / O que ela tem na cabeça / Ela mete o punho pelo vidro da janela / Sensação tão engaçada / Faz tanto frio no Alaska” [Tradução de trabalho, para ajudar a ler].
Esse artigo foi retirado do site “Asia Times”, do dia 18 de março de 2021.
Tradução: Coletivo Vila Mandinga