O Brexit fez aumentar a ambição da elite britânica, que anseia por recuperar um posto na linha de frente da política mundial. Para tanto, cria situações de alto risco, e obriga os EUA a socorrê-la.
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A relação entre a classe dirigente norte-americana e a classe dirigente britânica é como a que se vê em alguns homens que, mesmo já entrados em anos, não conseguem declarar independência da respectiva velha mãe, senil ela também, mas ainda dominadora e presa de delírios de grandeza. Inconscientes da própria fraqueza, essas senhoras metem-se outra e outra vez em aventuras arriscadas, ansiosas por fazer com que os filhos acorram em socorro delas e ‘provem’ que a amam.
Longe vão os tempos do Empire. Durante 45 anos a Grã-Bretanha gozou de boa acolhida na União Europeia, mas o círculo áulico que rodeia e mistura-se com a família real cansou-se, afinal, de ter de lidar com a hegemonia franco-alemã, e já sonha com recuperar a grandeza perdida. Por isso manipulou e instrumentalizou o próprio povo, até conseguir o Brexit. E agora já sonha com voltar a navegar triunfante por pelo menos quatro dos sete mares que se habituaram a infernizar.
O Ministério da Defesa do Reino Unido (ing. UKDM) publicou nessa segunda-feira seu informe “Defensa numa era competitiva” (ing., aqui), que se incorpora ao “Livro Branco da Defesa”, divulgado há dez dias.
Ainda no sábado, o mesmo ministério distribuiu informe sobre a formação de uma força-tarefa para combater “o terrorismo russo”. Aconteceu poucos dias depois de se conhecer o informe de DeclassifiedUK.com sobre a intervenção da Grã-Bretanha no golpe de Estado na Bolívia, em novembro de 2019 e um mês depois de que a mesma ONG denunciasse o papel do Príncipe Charles como negociante de armas a serviço das sanguinárias monarquias da Península Árabe. A vovozinha é bem atrevida, sim, mas não se sabe com que meios. O que se sabe é que, se algo dá errado, o filho dela, também ancião, do outro lado do Atlântico, terá de socorrê-la.
Na estratégia para a modernização das Forças Armadas que veio a público na 2ª-feira, 22 de março, o governo britânico qualificou a Rússia como “a maior ameaça nuclear e militar convencional” contra a segurança da Europa, e formulou seu desejo de que a referida modernização dê a Londres a oportunidade para intensificar sua presença no Ártico, assim como nos mares Negro e Báltico. “A modernização das Forças Armadas russas, a capacidade para integrar toda a atividade estatal e mais apetite por riscos, fazem da Rússia ator capaz e imprevisível” – como se lê no documento Defence in a competitive age.
Como resposta a essa ‘ameaça’, propõe-se, no documento, que
“grandes investimentos numa nova geração de fragatas-de-guerra antissubmarinos e enfoque na interoperabilidade profunda com aliados como EUA, França, Noruega e Países Baixos permitam ao Reino Unido conservar seu papel histórico (…) para garantir nossa liberdade para operar no Atlântico Norte e reforçar os aliados europeus”.
Nesse sentido, Londres tem a intenção de fortalecer laços com Ucrânia, Grécia, Turquia, Bulgária e Romênia para “garantir a liberdade de navegação e segurança” no Mar Negro. Além disso, também planeja aumentar sua presença militar na África, bem como nos oceanos Índico e Pacífico.
Entretanto, em consonância com o novo/velho conceito, no sábado, 20 de março, o general Sir Mark Carleton-Smith, chefe do estado-maior do Exército britânico, anunciou a constituição de uma nova força de operação conjunta, que reúne as forças especiais do Exército (ing. SAS) e o Serviço Secreto de Inteligência (ing. SIS, mais conhecido como MI6), para “combater as intervenções russas em todo o mundo”. Sim, sim, você leu bem: combater intervenções RUSSAS.
Ao mesmo tempo, o Exército britânico planeja estabelecer uma nova Brigada de Operações Especiais para atuar em áreas de “alta ameaça” no ultramar, ao módico preço de £ 120 milhões (US$ 165 milhões). Em diálogo com o Daily Telegraph, alto chefe militar informou que a nova Brigada intervirá em “áreas inimigas e de alta ameaça junto com aliados regulares e irregulares, formais e informais” – quer dizer: junto com mercenários e terroristas.
A notícias apareceu em momento em que o Ministério da Defesa está a ponto de publicar o Documento de Mando da Defensa, como parte da revisão integral da política exterior, de defesa, de segurança e de desenvolvimento. Espera-se que o Exército receba 3 bilhões de libras a mais, no orçamento público (4,126 bilhões de dólares), embora também se anunciem cortes significativos. O governo propõe reformar o Exército para adaptá-lo à modalidade das guerras do século 21, com menos infantaria e mais operações especiais.
Esses comunicados de fato só oficializam operações que já estão em execução. Dia 8 de março passado, por exemplo, o historiador Mark Curtis e o jornalista Matt Kennard expuseram, num informe sobre a derrubada de Evo Morales (ver matéria ing. aqui) publicado na webpage Declassified UK (com sede na África do Sul, desde que foi alvo da censura militar britânica), o modo como aquele golpe de Estado foi executado por ordem do Foreign Office e de alguns departamentos da CIA, dos EUA, sem ter passado pela administração do governo do presidente Trump.
A participação britânica no golpe teve por alvo o lítio boliviano. O golpe foi executado aproveitando-se da conexão que os britânicos têm, desde a Guerra Fria, com uma minoria croata que vive em Santa Cruz de la Sierra, descendente direta dos ustachas pro-nazistas que, depois da 2ª Guerra Mundial foram relocalizados no Leste da Bolívia.
Mark Curtis e Matthew Kennard assinalam em seu informe, que EUA não participaram oficialmente no golpe contra Evo Morales, mas que vários funcionários da CIA ajudaram a orquestrar aquele golpe. O pessoal encarregado de preparar a operação era predominantemente britânico. Os autores asseguram também que a embaixada britânica na Bolívia proporcionou à OEA os dados utilizados para ‘provar’ a suposta fraude na eleição presidencial. Fatos recentes estão confirmando a pesquisa do historiador britânico.
Noutro cenário, em novembro passado, depois de 44 dias de guerra no Alto Carabaque, a Armênia teve de firmar um cessar-fogo com o Azerbaijão e aceitar a perda de grande parte dos territórios em disputa. O que aconteceu foi que Londres aproveitou a confusão criada pela eleição presidencial nos EUA para extrair vantagens a favor de Washington, tratar de excluir a Rússia do jogo no sul do Cáucaso. Com isso, voltou-se ao “Grande Jogo” do século 19, quando os britânicos eram aliados do Império Otomano contra a Rússia czarista.
Mas Moscou percebeu o movimento e impôs o cessar-fogo aos lados em disputa, com o que freou um possível novo massacre de armênios.
Boris Johnson
Para voltar ao “Grande Jogo”, o primeiro-ministro britânico Alexander Boris De Pfefel Johnson nomeou o diretor-geral do Ministério do Exterior, Richard Moore (sobre ele, matéria da Reuters, aqui. NTs), para dirigir o MI6. Esse novo chefe da Inteligência Militar foi embaixador em Ancara, fala turco fluente e é amigo pessoal do presidente Recep Tayyip Erdogan, da Turquia.
Richard Moore, além do mais, é amigo pessoal do príncipe Charles, o qual, por sua vez, preside o Centro de Estudos Islâmicos de Oxford (Oxford Centre for Islamic Studies) onde, já há 25 anos, formam-se os intelectuais da Fraternidade Muçulmana, FM, origem de grande parte dos grupos fundamentalistas islamistas. Como embaixador britânico em Ancara de 2014 até 2017, Richard Moore ajudou Erdogan a se converter em protetor da FM. Já em 2014, Richard Moore havia cooperado na organização da retirada dos britânicos da Síria, depois que Londres, que até ali havia apoiados os islamistas com vistas a fazer avançar seus próprios objetivos coloniais, descobriu que a guerra conta Al-Assad convertera-se em operação dos EUA para dividir e dominar o Oriente Médio.
O Príncipe Charles
Em outra publicação, dia 25/2/2021, também em Declassified UK, circulou a informação segundo a qual o Príncipe Charles atua na Península Árabe como “representante de alto nível das empresas britânicas de armas, para fortalecer a os regimes autocratas do Golfo”. No informe, há relatos de 95 encontros, ao longo da última década, do herdeiro da Coroa britânica com famílias reais no Oriente Médio, mas a soma total de encontros entre membros da realeza britânica e seus congêneres na região sobe a 217. O artigo destaca que todas as viagens de Charles aos países da Península Árabe foram feitas a pedido expresso do Foreign Office e chama atenção para o quanto ajudaram o Príncipe de Gales a cimentar suas relações com aquelas monarquias, promovendo vendas de equipamento militar que chegam a 14,5 bilhões de libras esterlinas (19,870 bilhões de dólares).
Como se vê na denúncia italiana sobre o sequestro de milhões de doses da vacina de AstraZeneca escondidas num depósito no norte do país, para serem exportadas ilegalmente para a Grã-Bretanha, num momento em que os países europeus reclamam as doses que lhes foram prometidas para combater o Covid-19 e jamais chegaram, o Reino Unido não tem qualquer escrúpulo na luta para restaurar sua hegemonia.
A monarquia britânica não se conforma com a decadência em que se vê tombada, nem se envergonha de arrastar os EUA a novo ciclo de guerras de grandes proporções.
Aproveitando-se da própria origem aristocrática, da educação em Eton e Oxford, da militância em clubes conservadores e a amizade estreita com ‘a realeza’ Boris Johnson postula-se como o restaurador da “grandeza” britânica. Para se livrar da hegemonia franco-alemã, tira o reino da União Europeia. Para garantir para si o controle sobre os recursos petroleiros, contudo, cimenta sua aliança com Turquia e Azerbaijão e com as monarquias árabes, enquanto mantém vivas as guerras na Líbia e no Iêmen. Para apropriar-se das novas fontes de energia (o lítio), por sua vez, dá impulso ao golpe de estado na Bolívia. E finalmente, para garantir para si mesmo um lugar na partilha do poder mundial, reinicia o “Grande Jogo” do século 19 contra a Rússia, fortalece seu controle sobre o Oceano Atlântico Sul (Malvinas, de frente para a conquista da Antártida), o Oceano Índico e apoia o cerco norte-americano contra China no Mar do Sul da China.
Obviamente, não há recursos para tudo isso, mas o Reino Unido usa suas alianças de outrora com as elites coloniais no Sul Global e sua experiência em intrigas e conspirações, para abusar da incapacidade e da cegueira da elite norte-americana. Às vezes até avança, cria conflitos e obriga os EUA a tirar suas batatas das brasas; outras vezes, engorda à sombra do aliado maior. Mas sempre é Império caduco que, apesar da própria debilidade, nega-se a pôr fim à sua atitude daninha. Há muito tempo a anciã delirante já deveria ter sido presa num hospital neuropsiquiátrico. O filho mais velho não se atreve. Mas enquanto continue livre, não haverá paz no mundo.*******
Esse artigo foi retirado do site “InfoBaires24” , do dia 25 de março de 2021.
Tradução: Coletivo Vila Mandinga