Editorial de Global Times avaliava que as conversações China-EUA em Anchorage foram um “marco histórico”. Pela primeira vez, a hegemonia dos EUA foi tratada com desdém; pela primeira vez, o ‘direito’ que os EUA teriam de proclamar universalmente aplicáveis os próprios valores – aquele ‘estilo’ de democracia lá deles –, foi publicamente e diretamente desqualificado e contraditado. Até a pose de quem falaria ‘de uma posição de força’ foi desmascarada; a pressão dos EUA sobre um sistema de aliança esvaiu-se, deu em nada. E o que os EUA ouviram foi-lhes dito em tom de quem não teme ‘punição’, tipo ‘os EUA precisam mais de nós, que nós dos EUA’. Muito forte. Não estranha que Blinken lá estivesse, parado, com ar abobalhado.
Mas não foi cena única. Anchorage, na prática, foi peça em vários atos. Bem antes da ‘Noite de Estreia’, um elenco de apoio já havia sido mobilizado como torcida organizada, para se manifestar no momento do clímax: o Quad (EUA, Japão, Austrália e Índia) estava aquecido; a OTAN ativada e os europeus cooptados.
Mas ainda antes de o público ter-se sentado na plateia, um pequeno drama, um preâmbulo, seria mostrado em Moscou. Prepararia o cenário para o ato-clímax então previsto para Anchorage. A Alta Representante da União Europeia, que viajara especificamente para ler in loco a ‘Acusação’ contra Moscou, pelo modo como tratara manifestantes e, incluso, o próprio Alexei Navalny, foi surpreendida com a inesperada e completa virada de mesa. E foi a União Europeia, UE quem acabou arrastada à calçada e castigada por criminalizar líderes catalães como sediciosos; e presenteada com vídeos em que se via a polícia europeia espancando violentamente manifestantes espanhóis. Ali se viu a primeira rachadura na camada-de-gelo-escudo do ‘ocidente’.
O ministro Lavrov, de Relações Exteriores da Rússia, logo fez saber com inescapável clareza que Moscou estava mais do que levemente incomodada com a Europa. A UE, disse ele, havia “destruído” toda a capacidade da Rússia para manter qualquer relação com Bruxelas: “Não há relações com a UE como organização. Toda a infraestrutura dessas relações foi destruída por decisões unilaterais de Bruxelas”.
Conforme se aproximava o dia da ‘peça’ teatral principal, antes de a cortina subir, um ator (no papel de Tio Sam) caminhou para o proscênio, para ‘aquecer’ o público com uma recitação das vilanias perpetradas pelo anti-herói (China). Sua tarefa ali era ‘orientar’ as emoções do público – cruciais para a encenação que se seguiria. Tinha um documento na mão, mas não o mostrava ao público. Só se conseguia entrever o título: O Telegrama (ainda) mais Longo (ing. The Longer Telegram).
Aahh! O público entendeu a dica e fez a conexão: O Longo Telegrama foi ‘peça’, escrita em formato de coluna de correspondente estrangeiro (dita, então, ‘telegrama’, porque viajava por telégrafo), de 1946, assinado, aquele, por George Kannan, em que o autor ‘detona’ a URSS e alerta que nunca mais se deverá permitir que a Rússia alinhe-se ao lado da China. Mas o Telegrama (ainda) mais Longo, semana passada, identificava a China, não a Rússia, como a vilã principal, e atacava o presidente Xi e o Partido Comunista da China, vendo aí as linhas mais frágeis de divisão, a serem aprofundadas e, se possível, quebradas. Mas, sim, a conclusão dos dois Telegramas não mudava: Rússia e China jamais poderiam ser deixadas livres para unir forças.
O que tornou tão excitante aquele primeiro telegrama foi que ninguém sabia quem o escrevera – a identidade do autor ou autora foi ocultada pelo Atlantic Council: “O autor dessa coluna pediu que lhe preservássemos o anonimato, e o Atlantic Council respeita o pedido por razões que consideramos legítimas, mas que permanecerão confidenciais. É a primeira vez que o Council toma decisão desse tipo, mas houve por bem tomá-la agora, dado o extraordinário significado dos insights e recomendações do autor, no momento em que os EUA enfrentam o principal desafio geopolítico de nossa era” [falava da Rússia – mas a frase soa familiar, não?].
Quase com total certeza, pensou-se no teatro, o autor do neotelegrama seria alguém do governo Biden. Mas… e se fosse da lavra do próprio Blinken? Ninguém sabe. Mas fato é que Pequim também lera o Telegrama (ainda) mais Longo.
Então, conforme caiu a noite e a cortina começou a subir, o ator-narrador preparou o público para o desfecho, dizendo que antecipar o confronto com o anti-herói Yang, seria duelo definitivo, de uma vez por todas, não algum ‘começo de algo’; e acrescentou que o duelo que se avizinhava também seria oportunidade para “expor as agressões” relacionadas ao abominável comportamento da China.
Mas… quando afinal chegou mesmo a cena principal, tudo deu errado. Blinken, tendo obedientemente lido a acusação que trouxera pronta, com suas denúncias de “agressões”, viu que o anti-herói, Yang Jiechi, em vez de se dar por açoitado e castigado e calar-se, revidou. (Havia lido os cartazes do teatro, e chegou preparado). Foi total desastre. The End of Act (intraduzível). A camada-de-gelo-escudo do ocidente estava partida.
Um dos editores de EUA Spectator escreveu: “Os EUA” – disse Yang, numa das respostas diplomáticas mais carregadas de desdém que jamais ouvi – “não têm as qualificações que se exigem para falar à China ‘de uma posição de força’. F*da-se, caro Blinken”.
Então, foi a cena subsequente, na qual se descobre que os dois anti-heróis não são ‘anti-heróis’, são irmãos-em-armas. Fica-se sabendo que o patrão do anti-herói russo já foi condenado como ‘matador’ sem alma. Lavrov e Li selaram um pacto em Pequim depois das conversações. E China avisa que ator regional que se alinhe com Tio Sam – contra qualquer dos irmãos-em-armas – ‘não conseguirá manter-se nem contra qualquer dos irmãos separadamente; e pôr-se contra ambos os aliados é e será inimaginável. “Quem quer que faça fé nos EUA sairá desapontado. Os EUA enfraquecem a olhos vistos”.
A camada-de-gelo-escudo do ocidente está em cacos – e Rússia e China uniram-se.
Começa o Último Ato (ao fundo, ruídos de tempestade): O ‘Bloco’ ataca: EUA, Canadá, Reino Unido e UE agem em ataque coordenado aos ‘irmãos’, por infringir direitos humanos de muçulmanos na Província de Xinjiang (acusação furiosamente desmentida). Poucos minutos depois de as sanções da UE serem impostas a funcionários do Partido em Xinjiang, Pequim retalia com sanções impostas a parlamentares europeus, ao Conselho político e à Comissão de Segurança da UE, a professores e à subcomissão de Direitos Humanos). (É a vez de a UE ficar estarrecida).
Desqualificando o movimento da UE (“baseado exclusivamente em mentiras e desinformação”), um porta-voz do Ministério de Relações Exteriores da China disse que “o lado chinês exige que o lado da UE reflita sobre si mesmo, encare diretamente a severidade do erro que cometeu e corrija-se. Que cuide de parar de dar lições de Direitos Humanos a outros e de interferir em assuntos internos de outros países. A UE deve pôr fim à prática hipócrita dos padrões duplos, e parar de avançar pela trilha dos erros. Ou a China tomará, sem vacilar, outras medidas”. Ouch … Mais uma ‘convenção’ aí jaz, estraçalhada.
EUA e UE não são habituados a ser tratados com pouco caso, nem a ver suas sanções ignoradas e descartadas com um curto “A China não liga para as ‘pressões’ de vocês”.
Ainda mais surpreendente para a mente irremissivelmente mercantilista da UE: a China claramente aceita perder o January Investment Pact (CAI) assinado com a UE, mas não ratificado pelo Parlamento, e agora, quase com certeza já perdido para os dois lados. E também Moscou não dá sinais de preocupação com o maior risco que hoje parece cercar o gasoduto Nordstream. Líderes da UE perderão o sono, agora que o ‘mercado de 400 milhões’ que tinham para vender, parece não ser o ás-na-manga que supunham que fosse.
A UE enfrenta um dilema: Muito gritou por uma volta ao chamado ‘multilateralismo’. Conseguiu – o Bloco sancionou funcionários de Xinjiang, Putin foi impugnado, a Rússia, sancionada. Mas agora, paradoxalmente, a UE autossanciona-se… Suas relações exteriores com as grandes potências da Eurásia aí jazem, afundadas na lama. E perdas econômicas acontecerão pela frente, no que tenha a ver com o China Investment Pact, e no comércio com a Rússia.
O cenário agora muda, então, pela última vez: vê-se ao fundo o quartel-general da OTAN. O ator-narrador outra vez avança para o proscênio, para dizer que, por mais que uma resposta coletiva ao comportamento abominável da China “que ameaça nossa segurança e prosperidade coletivas” fosse, antes, o cerne do roteiro de toda a encenação, “não significa que os países não possam trabalhar com a China, onde possível. Os EUA trabalharemos. Não estamos em condições de fazer diferente… Os EUA não forçaremos nossos aliados a uma escolha de tipo ‘nós-ou-ela’ em relação à China”.
O Bloco já não se aguenta. O cristal rachou, num estalo agudo. A peça teatral só visava a relegitimar (um ritual, uma atualização) o mito norte-americano segundo o qual alguma qualidade moral inata garantiria aos EUA a liderança sobre o mundo, e o direito, só dos EUA, de mobilizar seus aliados contra quaisquer países… (E aqui o tom é de alguém – Blinken – chocado com o que está a um segundo de dizer) que não partilham nossos valores: “Eles na verdade desafiam e minam a ordem internacional baseada em leis”.
Desce a cortina. O roteiro fracassou. A peça recebe péssimas críticas. Paradoxalmente, só fez revelar que ‘o mito’ que o roteiro visava a reatualizar, num ritual de exorcismo pós-Trump… de fato expirou, perdeu a validade. É passé. O mundo é muito diferente, hoje, quatro anos depois.*******
Esse artigo foi retirado do site “Strategic Culture Foundation” , do dia 26 de março de 2021.
Tradução: Coletivo Vila Mandinga