A extraordinária confluência entre a assinatura do acordo de parceria estratégica Irã-China (ver port. “Irã-China: Conexão da Rota da Seda do século 21” ) e a saga do cargueiro Ever Given no Canal de Suez deve levar a impulso renovado a favor da Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE) e dos corredores interconectados da integração da Eurásia.
Aí está o desenvolvimento geoeconômico mais importante no Sudoeste da Ásia, em eras – ainda mais crucialmente decisivo que o apoio geopolítico e militar que a Rússia garante a Damasco desde 2015.
Vários corredores terrestres ferroviários por toda a Eurásia, em que se veem trens cargueiros – o mais icônico dos quais é, pode-se dizer, Chongqin-Duisburg – são plataforma chave da ICE. Em poucos anos, todo esse comércio se fará por trens de alta velocidade.
O corredor terrestre chave é Xinjiang-Cazaquistão – e dali até a Rússia, e adiante. O outro cruza a Ásia Central e o Irã, até a Turquia, os Bálcãs e o Leste Europeu. Pode levar tempo para competir com as rotas marítimas em termos de volume, mas a substancial redução no tempo de embarque já está vendo aumentar massivamente o volume de carga que viaja por terra.
A conexão estratégica Irã-China acelerará todos os corredores interconectados que levam até o Sudoeste da Ásia e intercruzam aquela região.
Fator decisivamente importante, os múltiplos corredores comerciais da ICE estão diretamente ligados para estabelecer rotas alternativas de trânsito para petróleo e gás – que desde 1945 são controladas ou “supervisionadas” pelo hegemon: Suez, Malaca, Ormuz, Bab al Mandeb.
Conversas informais com corretores de petróleo no Golfo Persa têm revelado enorme ceticismo quanto à causa principal da saga do Ever Given. Comandantes da marinha mercante são unânimes em afirmar que ventos, de alguma tempestade do deserto, absolutamente não alterariam o estado de um megacontêiner moderníssimo, estado-da-arte, equipado com sistemas complexíssimos de navegação. Mas, sim, se considera o cenário de erro do piloto – induzido ou não.
E há o diz-que-diz predominante nas rodas de conversa: o cargueiro Ever Given que encalhou era propriedade de empresa japonesa, alugado de Taiwan, segurado por seguradora do Reino Unido, com tripulação integralmente de indianos, carregando mercadoria chinesa para a Europa. Claro que os mais cínicos, discutindo todo o caso, perguntam Cui Bono? A quem o encalhe interessaria?
Corretores de petróleo do Golfo Persa sussurram sobre o projeto de Haifa vir a ser, eventualmente, o principal porto na região, em cooperação próxima com os Emirados, com uma ferrovia a ser construída entre Jabal Ali em Dubai e Haifa, contornando Suez.
De volta aos fatos em campo, o mais interessante desenvolvimento de curto prazo é a via pela qual o petróleo e o gás do Irã podem ser embarcados para Xinjiang pelo Mar Cáspio e o Cazaquistão – usando um oleogasoduto Trans-Cáspio ainda a ser construído.
Assim se entra em território clássico da Iniciativa Cinturão e Estrada. Na verdade, mais que isso, porque o Cazaquistão é parceiro não só da China, na ICE, mas também da Rússia, na União Econômica Eurasiana (UEE).
Do ponto de vista de Pequim, o Irã é também absolutamente essencial para o desenvolvimento de um corredor do Golfo Persa ao Mar Negro e dali para a Europa, pelo Danúbio.
Obviamente não é por acaso que o hegemon está em alerta máximo em todos os pontos desse corredor comercial. Sanções de “máxima pressão” e guerra híbrida contra o Irã; tentativa de manipular a guerra Armênia-Azerbaijão; ambiente de pós-revolução colorida na Geórgia e na Ucrânia – às margens do Mar Negro; a sombra da OTAN sobre os Bálcãs; tudo é parte da mesma trama.
Consiga-me lápis-lazúli
Outro capítulo fascinante de Irã-China tem a ver com o Afeganistão. Segundo fontes de Teerã, parte dos acordos estratégicos têm a ver com a área de influência iraniana no Afeganistão e a evolução de ainda outro corredor de conectividade que chega a Xinjiang.
E assim voltamos ao sempre intrigante Corredor do Lápis-lazúli – que foi pensado em 2012, inicialmente para aumentar a conectividade entre Afeganistão, Turcomenistão, Azerbaijão, Georgia e Turquia.
O lápis-lazúli, maravilhosamente evocativo, nos devolve ao passado da exportação de pedras semipreciosas pelas antigas Rotas da Seda para o Cáucaso, a Rússia, os Bálcãs e o Norte da África.
Agora, o governo afegão vê o ambicioso remix do século 21 partindo de Herat (área chave de influência persa), seguindo para Turkmenbashi, porto do Turcomenistão no Mar Cáspio, via um duto trans-Cáspio até Baku, dali para Tblisi e para os portos georgianos de Poti e Batumi no Mar Negro, e finalmente conectado a Kars e Istanbul.
É assunto realmente sério; uma trilha que potencialmente ligará o Mediterrâneo Oriental ao Oceano Índico.
Rússia, Irã, Azerbaijão, Cazaquistão e Turcomenistão assinaram a Convenção sobre o Status Legal do Mar Cáspio (ing. Convention on the Legal Status of the Caspian Sea) em 2018, no porto cazaque de Aktau. Interessante é que as principais questões lá discutidas estão sendo discutidas agora na Organização de Cooperação de Xangai (OCX), da qual Rússia e Cazaquistão são membros plenos; o Irã logo também será; o Azerbaijão é parceiro de diálogo; e o Turcomenistão é convidado permanente.
Um dos principais problemas de conectividade a serem tratados é a viabilidade de um canal a ser construído do Mar Cáspio até as costas do Irã no Golfo Persa. Custaria, no mínimo, US$7 bilhões. Outra questão é a transição, imperativa, para transporte de contêineres no Mar Cáspio. Em termos da OCX, assim se aumentará o comércio da Rússia com a Índia, via Irã; e também se cria um corredor extra para comércio da China com a Europa.
Com o Azerbaijão impondo-se sobre a Armênia no conflito do Alto Carabaque, ao mesmo tempo em que firma um acordo com o Turcomenistão relativo ao status de cada país no Mar Cáspio, o ímpeto a favor da parte ocidental do lápis-lazúli já está nas cartas.
A parte oriental é questão bastante mais complicada, envolvendo questão absolutamente crucial que já está sobre a mesa, não só para Pequim mas para a OCX: a integração do Afeganistão ao Corredor Econômico China-Paquistão, CECP (ing. China-Pakistan Economic Corridor, CPEC).
No final de 2020, Paquistão, Afeganistão e Uzbequistão concordaram em construir o que o analista Andrew Korybko chama de ferrovia PAKAFUZ. PAKAFUZ será passo chave para expandir o CECP para a Ásia Central, via Afeganistão. A Rússia está mais que interessada.
Pode vir a se converter em caso clássico do cadinho em que se fundem ICE-UEE. O momento de decisão – com graves decisões incluídas – acontecerá nesse verão, quando o Uzbequistão planeja acolher uma conferência chamada “Ásia Central e Sul da Ásia: Interconectividade Regional. Desafios e Oportunidades” (ing. Central Asia and South Asia: Interconectedness. Challenges and Opportunities)”.
Assim sendo, tudo estará caminhando em interconexão: um link Trans-Cáspio; a expansão do CECP; o Af-Pak conectado à Ásia Central; um corretor extra Paquistão-Irã (via Baloquistão, incluindo a conclusão afinal possível do gasoduto IP) até o Azerbaijão e a Turquia; e China profundamente envolvida em todos esses projetos.
Pequim construirá estradas e oleogasodutos no Irã, inclusive um para embarcar gás natural iraniano para a Turquia. Irã-China, em termos de investimento projetado, é arranjo quase dez vezes mais ambicioso que o CECP. Chamem de CECI (Corredor Econômico China-Irã).
Em resumo: os estados-civilização chinês e persa meteram o pé na estrada para emular o relacionamento muito próximo que já mantiveram durante a dinastia Yuan na era da Rota da Seda, no século 13.
CoTINS (INSTC) ou morte!
Peça extra do quebra-cabeças tem a ver com o modo como o Corredor de Transportes Internacional Norte-Sul, CoTINS (ing. International North-South Transportation Corridor, INSTC) se interligará à Iniciativa Cinturão e Estrada e a UEE. Ponto crucial, o CoTINS também é alternativa a Suez.
Desde 2002, Irã, Rússia e Índia discutem intrincados detalhes desse corredor comercial (marítimo/ferroviário/
Para grande júbilo de analistas indianos, o CoTINS reduz o tempo de trânsito da Índia Ocidental até a Rússia Ocidental, de 40 para 20 dias; e reduz os custos em 60%. Já operacional – mas ainda não como ligação de fluxo ininterrupto, contínuo, por mar e por ferrovia.
Nova Delhi já gastou $500 milhões num projeto crucial: a expansão do porto de Chabahar no Irã, o qual se esperava que viesse a ser seu ponto de entrada para uma Rota da Seda made in Índia até o Afeganistão e dali adiante, para a Ásia Central. Mas então tudo desandou, quando Nova Delhi pôs-se a flertar com a proposta, derrotada, do Quad.
A Índia também investiu $1,6 bilhão de dólares numa ferrovia entre Zahedan, cidade chave no sudeste do Irã, e Hajigak centro de mineração de ferro e produção de aço na região central do Afeganistão. Tudo isso se reúne num possível acordo de livre comércio Irã-Índia, negociado desde 2019 (no momento, a discussão está suspensa). Irã e Rússia já firmaram acordo semelhante. E a Índia quer o mesmo, com toda a UEE.
Depois da parceria estratégica Irã-China, o presidente da Comissão de Segurança Nacional e Política Exterior do Parlamento iraniano, Mojtaba Zonnour, já indicou que o passo seguinte deve ser um acordo de cooperação estratégica Irã-Russia, que privilegie “serviços ferroviários, rodovias, refinarias, petroquímicas, automóveis, petróleo, gás, meio ambiente e empresas baseadas em conhecimento”.
Moscou já considera seriamente construir um canal entre o Mar Cáspio e o Mar de Azov, ao norte do Mar Negro. Enquanto isso, o já construído porto de Lagan no Mar Cáspio já está mudando o jogo.
Lagan conecta-se diretamente com vários nodos da ICE. Conecta-se por ferrovia à Trans-Siberiana, até a China. Pelo Cáspio, a conectividade inclui Turkmenbashi no Turcomenistão e Baku no Azerbaijão, de onde parte a ferrovia BTK até o Mar Negro e da Turquia para a Europa.
No trecho iraniano do Cáspio, o porto de Amirabad conecta-se ao CoTINS, ao porto de Chabahar e dali para a Índia. Não por acaso, várias empresas iranianas, bem como o Poly Group chinês e o Energy Engineering Group International da China, querem investir em Lagan.
O que se vê aqui é o Irã no centro de uma rede cada vez mais interconectada com Rússia, China e Ásia Central. Quando o Mar Cáspio estiver afinal conectado a águas internacionais, teremos corredor de comércio/transporte de fato alternativo a Suez.
Pós-Irã-China, já não é fantasioso considerar a emergência possível, e em futuro não muito distante, de uma Rota da Seda do Himalaia, que una China e Índia, países BRICS (considerem, por exemplo, o potencial do gelo do Himalaia convergindo para um Hydropower Tunnel partilhado).
Como estão hoje as coisas, a está muito focada nas ilimitadas possibilidades no Sudoeste da Ásia, como o Ministro de Relações Exteriores Sergey Lavrov disse claramente na 10ª Conferência do Oriente Médio no Valdai club. Comparadas a essas possibilidades, as ameaças do hegemon contra múltiplos fronts – Ucrânia, Belarus, Síria, Nord Stream 2 – empalidecem.
A nova estrutura da geopolítica do século 21 já está tomando forma, com a China provendo vários corredores comerciais para desenvolvimento econômico non-stop; e a Rússia é fornecedora confiável de energia e bens de segurança, além de ter conceitualizado uma Eurásia Expandida, lar comum, com a “parceria estratégica” sino-russa fazendo o jogo de longo alcance.
O Sudoeste da Ásia e a Eurásia Expandida já viram para que lado sopram os ventos (do deserto). Sem demora, os masters do capital internacional também verão. Rússia, China, Irã, Índia, Ásia Central, Vietnã, Indonésia, Península Coreana, todos conhecerão uma avançada dos capitais – inclusive os abutres financeiros. A Eurásia assistirá ao último combate contra o evangelho da ‘Boa Ganância’.*******
Esse artigo foi retirado da publicação feita no site “The Vineyard of lhe Saker”, do dia 04 de abril de 2021.
Tradução: Coletivo Vila Mandinga