No dia 22 de novembro de 2019, a Petrobrás, em continuidade ao comunicado divulgado em 30 de agosto de 2019, informou o início da fase vinculante referente à venda da Refinaria Landulpho Alves (RLAM), localizada no Estado da Bahia, e seus ativos logísticos correspondentes.
Segundo notícia divulgada na mídia, entre os possíveis candidatos a
compradores da RLAM estariam o fundo soberano dos Emirados Árabes Unidos, Mubadala Investment Co e a gigante de refino chinesa Sinopec[1].
Em 24 de junho de 2020, a Petrobrás informou, com relação a notícias divulgadas na mídia, que a data para recebimento de propostas vinculantes do projeto de desinvestimento da RLAM foi 25 de junho de 2020[2].
A Petrobrás, em 24 de março de 2021, comunicou que assinou o contrato
de venda da RLAM e de seus ativos logísticos associados para a Mubadala
Capital pelo valor de US$ 1,65 bilhão[3].
A RLAM possui capacidade de processamento de 333 mil barris por dia (14% da capacidade total de refino de petróleo do Brasil), e seus ativos incluem quatro terminais de armazenamento e um conjunto de oleodutos totalizando 669 km.
Segundo o Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), as refinarias da Petrobrás foram construídas com grande escala de produção, para minimizar o custo de abastecimento e para assistir regiões específicas do território nacional, complementando-se entre si na produção de derivados necessários ao atendimento de cada região[4]
Nessa lógica, algumas refinarias, ou um conjunto delas atuando complementarmente, configuram uma situação de monopólios regionais para o fornecimento de seus produtos aos mercados a que atendem. O monopólio regional da RLAM e seus ativos logísticos é evidente, bastar analisar a Figura 1, que mostra a localização da Refinaria e a infraestrutura de transporte, além das bases de distribuição primárias e secundárias.
Figura 1: A RLAM, a malha de transporte e as bases de distribuição
Conforme mostrado na Figura 1, o Estado da Bahia conta com três bases primárias: São Francisco do Conde, onde está localizada a RLAM; Jequié; e Itabuna. Essas bases primárias estão interligadas à RLAM por meio de polidutos, que transportam os derivados para tais bases.
A existência do monopólio regional, apontada pelo BNDES, é confirmada, ainda, por estudos da Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro (PUC-Rio) e da Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis (ANP).
De acordo com Estudo da PUC-Rio, o processo de abertura do mercado de refino, por meio da venda de oito refinarias da Petrobrás, que respondem por cerca de 50% da capacidade de processamento de petróleo do país, pode criar nova distorção no mercado[5].
Segundo esse Estudo, há alta possibilidade de formação de monopólios privados regionais nas áreas de influência da maioria das refinarias à venda, sem garantia de aumento de competitividade que possa se refletir em redução de custo aos consumidores finais.
A primeira etapa do levantamento indicou que, das seis refinarias analisadas, quatro delas têm potencial elevado para a formação de monopólios regionais, entre elas a RLAM. Nesses casos, a falta de infraestrutura de modais de alta capacidade que interligue os mercados restringe a possibilidade de competição.
Em Estudo enviado ao Ministério de Minas e Energia, a ANP defende venda separada de terminais e refinarias[6]. A Agência ressalta que organização física de ativos em desinvestimento nem sempre favorece a competição.
De acordo com o Estudo da ANP, os terminais aquaviários incluídos no acordo assinado pela Petrobrás e o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) para desinvestimentos em refino e ativos de logística associada, devem ser operados por empresas separadas do refinador, mesmo que constituídos pelos adquirentes das refinarias. A avaliação da Superintendência de Infraestrutura e Movimentação (SIM) da ANP foi enviada, como contribuição, ao programa federal “Novo Cenário Downstream: Infraestrutura”.
No caso da RLAM, a situação atual atende às exigências da ANP. Os Terminais de Candeias, Itabuna, Jequié e Madre de Deus, e os dutos Becan 6”; Becan 8”; 21 oleodutos de petróleo e derivados ligando a RLAM ao Terminal Madre de Deus; ORSUB, que liga a RLAM aos Terminais de Jequié e Itabuna; ORPENE L1/14”, ORPEN 12”; e ORPENE 8”, que liga a RLAM ao Complexo Petroquímico de Camaçari, já são operados por empresa separada do refinador, que é a Petrobrás Transportes S.A. (Transpetro). A Figura 2 mostra o enorme conjunto de ativos que está sendo vendido.
Figura 2: A RLAM e seus ativos de logística
Em linha similar aos Estudos da PUC-Rio e da ANP, manifestou o Conselho Nacional de Política Energética por meio da Resolução CNPE nº 9/2019, art. 1º, IV. Esse inciso estabelece que a transferência de ativos de movimentação de insumos e produtos por parte do refinador deve ocorrer preferencialmente para grupos econômicos desverticalizados, considerando o mercado relevante, observada a regulação da ANP para o acesso de terceiros.
Quanto ao valor de venda informado pela Petrobrás, de US$ 1,65 bilhão, ele pode ser considerado extremamente baixo. A indústria de refino requer altos investimentos. Seus custos são de cerca de US$ 10 mil para refinar um barril de cru[7]. Assim sendo, estima-se que para refinar 333 mil barris por dia, o custo de capital seria de US$ 3,33 bilhões.
A fato de algumas das instalações da RLAM serem antigas poderia ser compensado pelo elevado Índice de Nelson de 7[8]. Dessa forma, o valor de US$ 3,33 bilhões é compatível com o custo de capital das unidades da RLAM.
Além disso, a RLAM e os terminais têm capacidade de estocagem de 4,1 milhões de barris de petróleo; capacidade de estocagem de produtos de 4,3 milhões de barris; e de 0,4 milhões de barris para o gás de cozinha (GLP). É importante destacar, ainda, que o Terminal Madre de Deus conta com vários pontos de atracação: PP-1, PP-2, PP-3, PP-4, PS-1 e Píer de barcaças.
O custo de capital dessa capacidade de estocagem é de cerca de U$ 130 milhões, sem considerar as facilidades marítimas e de GLP. Com essas facilidades, o custo de capital poderia chegar a US$ 300 milhões.
No caso da rede de dutos de 669 km, admitindo-se um “diâmetro médio de 10 polegadas”, o custo de capital seria US$ 300 milhões, incluindo-se as estações de bombeamento.
Dessa forma, apenas o custo de capital da RLAM e seus ativos logísticos, composto por refinaria, terminais e dutos seria de US$ 3,93 bilhões.
Mas o valor desses ativos é ainda maior, pois permitirá ao comprador exercer uma atividade de quase monopólio na Bahia e contar com vantagens comparativas para abastecer outros Estados da Região Nordeste e, inclusive, da Região Norte.
Além disso, o “comprador” terá toda uma infraestrutura operacional, comercial e de recursos humanos desenvolvida pela Petrobrás para o exercício da atividade.
Assim sendo, o “preço justo” para venda do “ativo RLAM” seria de, no mínimo, US$ 4,2 bilhões. Admitindo-se uma vida útil do conjunto de ativos mostrado na Figura 2 de 25 anos e uma taxa de desconto de 10% ao ano, apenas para recuperar o valor investido, seria necessária uma receita anual adicional de US$ 462 milhões.
Admitindo-se um fator de utilização de 90%, a RLAM produziria, por ano, 109 milhões de barris de derivados a um custo de operação e manutenção de US$ 275 milhões. Se a RLAM for privatizada, a esse custo deve ser somado o valor anual de US$ 462 milhões, apenas para recuperar os custos de investimento. Dessa forma, o custo de refino anual da RLAM privada passaria a ser de US$ 737 milhões, o que representa um aumento de 168% no custo médio de refino. A privatização da RLAM e seus ativos logísticos representaria, então, um monopólio privado de alto custo, o que impactaria os preços dos derivados.
Conclui-se, então, que a venda da RLAM não atende aos interesses do órgão regulador, dos consumidores e da sociedade brasileira.
Desse modo, não se considera adequada a decisão do CADE, de 11 de junho de 2019, de homologar um Termo de Compromisso de Cessação (TCC) com a Petrobrás, no qual a estatal se comprometeu a alienar oito de suas treze refinarias, inclusive a RLAM[9].
Além disso, é flagrante a ilegalidade da venda, sem licitação, da RLAM e seus ativos logísticos.
As licitações foram uma das grandes preocupações do estatuto jurídico da empresa pública e da sociedade de economia mista, a Lei nº 13.303/2016, que dispensou 56 dos seus 97 artigos a deste assunto.
Em afronta a essa Lei, a Petrobrás decidiu que a venda da RLAM e seus ativos logísticos seria conduzida de acordo com a “Sistemática de Desinvestimentos da Petrobras”, alinhada ao regime especial de desinvestimento de ativos pelas sociedades de economia mista federais, previsto no Decreto nº 9.188/2017.
O Decreto nº 9.188/2018 regulamenta a dispensa de licitação pública, tendo em vista o disposto no art. 28, § 3º, inciso II, e § 4º, e no art. 29, caput, inciso XVIII, da Lei n º 13.303/2016.
No entanto, a dispensa de licitação prevista no art. 29, caput, inciso XVIII, da Lei nº 13.303/2016 não diz respeito a alienação de ativos de refino e logística, pois essa própria Lei exige licitação pública para esse tipo de alienação.
É importante ressaltar ainda que, em razão de dispositivos da Lei nº 9.478/1997 e da Lei nº 9.491/1997, a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de dispensa de autorização legislativa e licitação para venda de controle acionário de subsidiárias, proferida em 6 de junho de 2019 no âmbito da ADI 5624, não se aplica à RLAM e seus ativos logísticos.
Nos termos do art. 64 da Lei nº 9.478/1997, a Petrobrás está autorizada a criar subsidiárias para o estrito cumprimento de atividades de seu objeto social, como refino e transporte. Essas subsidiárias, no entanto, somente podem ser constituídas, nos termos do art. 173 da Constituição Federal, por imperativos de segurança nacional ou de relevante interesse coletivo.
O art. 64 da Lei nº 9.478/1997 é, na realidade, o reconhecimento pelo Congresso Nacional de que as atividades de refino e transporte, quando exercidas pela Petrobrás, atendem às condições exigidas pelo art. 173 da Carta Magna.
Assim, a administração da Petrobrás pode criar ou extinguir subsidiárias para realizar essas atividades apenas para descentralização administrativa. Não pode, contudo, alienar o controle acionário de subsidiárias criadas por mera decisão administrativa, pois o legislador considera que as atividades da Petrobrás, ainda que exercidas por subsidiárias, atendem às condições exigidas pela Constituição Federal. Desse modo, se extintas as subsidiárias por decisão administrativa, seus ativos e atividades devem à controladora, como estabeleceu o Congresso Nacional.
A Lei nº 9.491/1997 também veda, em seu art. 3º, a desestatização da Petrobrás e suas subsidiárias que desempenham as atividades previstas no art. 177 da Constituição Federal, que incluem as atividades da RLAM e seus ativos logísticos.
É importante ressaltar, contudo, que a Petrobrás, apesar da menção feita à consideração de um modelo de venda de participação de 100% em uma empresa (subsidiária integral) que englobaria a RLAM e seus ativos logísticos associados, isso ainda não ocorreu.
Dessa forma, a Petrobrás, em afronta à Lei nº 13.303/2016 está vendendo ilegalmente, sem licitação, por US$ 1,65 bilhão um ativo com valor superior a US$ 4,2 bilhões. Dessa forma, deve-se buscar a imediata suspensão da alienação da RLAM e seus ativos logísticos.
Ressalte-se, por fim, que, em razão da ausência do processo licitatório exigido pela Lei nº 13.303/2016, essa alienação está ocorrendo sem a devida transparência, como já ocorreu em outras privatizações no Sistema Petrobrás. Nunca se saberá, por exemplo, o valor do ativo estimado pela Petrobrás, as empresas que participaram do “processo” e os valores das ofertas. Isso é uma evidente ofensa ao princípio constitucional da publicidade, de que trata o art. 37 da Carta Magna.
Paulo César Ribeiro Lima, PhD
Consultor Legislativo Aposentado da Câmara dos Deputados
Ex-Consultor Legislativo do Senado Federal
Ex-Engenheiro da Petrobrás
[1] Disponível em https://br.reuters.com/article/topNews/idBRKBN23V2WR-OBRTP. Acesso em 26 de junho de 2020.
[2] Disponível em https://mz-prod-cvm.s3.amazonaws.com/9512/IPE/2020/182fd236-164c-4a5a-b05a-35ab55e2d2d6/20200624231652640891_9512_771261.pdf. Acesso em 26 de junho de 2020.
[3] Disponível em https://petrobras.com.br/fatos-e-dados/nosso-conselho-de-administracao-aprova-venda-da-refinaria-landulpho-alves-rlam-na-bahia.htm. Acesso em 31 de março de 2021.
[4] Disponível em https://web.bndes.gov.br/bib/jspui/handle/1408/16041. Acesso em 26 de junho de 2020.
[5] Disponível em https://www.biodieselbr.com/noticias/biocombustivel/negocio/venda-de-refinarias-pode-criar-monopolio-privado-260520. Acesso em 26 de junho de 2020.
[6] Disponível em https://petroleohoje.editorabrasilenergia.com.br/anp-defende-venda-separada-de-terminais-e-refinarias/. Acesso em 26 de junho de 2020.
[7] Disponível em https://www.dawn.com/news/1058291. Acesso em 31 de março de 2021.
[8] A presença de unidades de conversão e tratamento contribui para maior complexidade das refinarias. A medida usual de complexidade das refinarias é o Índice de Nelson.
[9] Disponível em https://www.jota.info/opiniao-e-analise/artigos/o-curioso-caso-do-tcc-da-petrobras-no-cade-03072019. Acesso em 16 de julho de 2019.