Quase meio milénio atrás, O Príncipe de Niccolo Machiavelli descreveu três opções de como uma potência conquistadora poderia tratar os estados que derrotou na guerra, mas que “estavam habituados a viver sob suas próprias leis e em liberdade: … a primeira é arruiná-los, a seguinte é residir lá pessoalmente, a terceira é permitir que vivam sob suas próprias leis, arrecadando um tributo e nele estabelecendo uma oligarquia que manterá amizade para consigo”. [1]
Maquiavel preferia a primeira opção, mencionando a destruição de Cartago por Roma. Foi o que os Estados Unidos fizeram com o Iraque e a Líbia depois de 2001. Mas na Nova Guerra Fria de hoje o modo de destruição é em grande medida económico, por meio de sanções comerciais e financeiras, tal como as que os Estados Unidos impuseram à China, Rússia, Irão, Venezuela e outros. adversários designados. A ideia é negar-lhes insumos essenciais, principalmente em tecnologia e processamento de informação essenciais, matérias-primas e acesso a conexões bancárias e financeiras, tais como as ameaças dos EUA de expulsar a Rússia do sistema de compensação bancária SWIFT.
A segunda opção é ocupar os rivais. Isto é feito apenas parcialmente pelas tropas nas 800 bases militares americanas no exterior. Mas a ocupação habitual e mais eficiente é através de aquisições corporativas americanas da sua infraestrutura básica, possuindo seus ativos mais lucrativos e remetendo sua receita de volta ao núcleo imperial.
O presidente Trump disse que queria confiscar o petróleo do Iraque e da Síria como reparação pelo custo da destruição das suas sociedades. Seu sucessor, Joe Biden, procurou em 2021 nomear Neera Tanden, leal a Hillary Clinton, para chefiar o Gabinete de Gestão e Orçamento (OMB) do governo. Ela instou a que os Estados Unidos obrigassem a Líbia a entregar suas vastas reservas de petróleo como reparação pelo custo da destruição da sua sociedade. “Temos um défice gigante. Eles têm muito petróleo. A maior parte dos americanos escolheria não se envolver no mundo por causa desse défice. Se quisermos continuar a nos envolver no mundo, gestos como fazer com que países ricos em petróleo nos paguem parcialmente não me parecem loucura”. [2]
Os estrategistas americanos preferiram a terceira opção de Maquiavel: Deixar o adversário derrotado nominalmente independente, mas dominar por meio de oligarquias clientes. O conselheiro de segurança nacional do presidente Jimmy Carter, Zbigniew Brzezinski, referiu-se a eles como “vassalos”, no significado medieval clássico de exigir lealdade aos seus patronos americanos, com um interesse comum em verem a economia sujeita privatizada, financeirizada, tributada e transferida para os Estados Unidos pelo seu patrocínio e apoio, com base numa reciprocidade de interesses contra a afirmação democrática local de auto suficiência nacionalista e de manter o excedente económico em casa a fim de promover a prosperidade interna ao invés de enviá-lo para o exterior.
Esta política de privatização por uma oligarquia cliente com sua própria fonte de riqueza baseada na órbita dos EUA foi o que a diplomacia neoliberal americana consumou nas ex-economias soviéticas depois de 1991 para assegurar a sua vitória na Guerra Fria sobre o comunismo soviético. A forma como as oligarquias clientes foram criadas foi uma grabitization [NT] que rompeu totalmente as interconexões económicas que tornam as economias integradas. “Para dizer isto numa terminologia que remonta à era mais brutal de antigos impérios”, explicou Brzezinski, “os três grandes imperativos da geoestratégia imperial são evitar conluio e manter a dependência de segurança entre os vassalos, mantê-los como tributários cordatos, protege-los para evitar que os bárbaros se unam”. [3]
Depois de reduzir a Alemanha e o Japão à vassalagem a seguir à sua derrota na Segunda Guerra Mundial, a diplomacia dos Estados Unidos em 1946 fez o mesmo à Grã-Bretanha e a sua área da libra imperial, seguida no devido tempo pelo resto da Europa Ocidental e suas antigas colónias. O próximo passo foi isolar a Rússia e a China, enquanto evitava que “os bárbaros se unissem”. Se se unissem, advertia Brzezinski, “os Estados Unidos podem ter de determinar como enfrentar coligações regionais que procuram expulsar os EUA da Eurásia, ameaçando assim o status da América como potência global”. [4]
Em 2016, Brzezinski viu a Pax Americana desfazer-se dado o seu fracasso em atingir estes objectivos. Ele reconheceu que os Estados Unidos “não são mais a potência imperial global”. [5] Foi isso que motivou o seu crescente antagonismo em relação à China e à Rússia, juntamente com o Irão e a Venezuela.
TRANSIÇÃO: o problema não era a Rússia, cuja nomenclatura comunista deixou o seu país ser dominado por uma cleptocracia orientada pelo ocidente, mas a China. O confronto EUA-China não é simplesmente uma rivalidade nacional, mas um conflito económico e de sistemas sociais. A razão pela qual o mundo de hoje está a ser mergulhado numa Guerra Fria 2.0 económica e quase militar pode ser encontrada na perspectiva de controle socialista daquilo que as economias ocidentais desde a antiguidade clássica trataram como ativos geradores de renda de propriedade privada: moeda e bancos (junto com as regras que regem a dívida e execução hipotecária), terra, recursos naturais e monopólios de infraestrutura.
O contraste entre dinheiro, crédito, terra e monopólios naturais privatizados e concentrados nas mãos de uma oligarquia rentista ou utilizados para promover a prosperidade geral e o crescimento tornou-se basicamente um contraste entre capitalismo financeiro e socialismo. No entanto, em termos mais vastos, este conflito já existia há 2500 anos, no contraste entre a realeza do Oriente Próximo e as oligarquias grega e romana. Tais oligarquias, ostensivamente democráticas numa forma política superficial e de ideologia hipócrita, lutaram contra o conceito de realeza. A fonte dessa oposição era que o poder real – ou o dos “tiranos” internos – poderia patrocinar o que os reformadores democráticos gregos e romanos estavam a advogar: o cancelamento de dívidas para salvar as populações de serem reduzidas à servidão da dívida e à dependência (e em última análise à escravidão) e a redistribuição de terras para impedir que a sua propriedade se polarizasse e se concentrasse nas mãos de credores e latifundiários.
Do ponto de vista atual dos Estados Unidos, tal polarização é a dinâmica básica do neoliberalismo hoje patrocinado pelo país. China e Rússia são ameaças existenciais à expansão global da riqueza financeirizada rentista. A Guerra Fria 2.0 atual visa dissuadir a China e potencialmente outros países de socializar seus sistemas financeiros, terras e recursos naturais, e manter no domínio público as empresas de serviços de infraestrutura a fim de impedir que sejam monopolizados em mãos privadas para desviar rendas económicas a expensas do investimento produtivo em crescimento económico.
Os Estados Unidos esperavam que a China fosse tão crédula quanto a União Soviética e adoptasse uma política neoliberal que permitisse que sua riqueza fosse privatizada e transformada em privilégios de extração de renda, para ser vendida aos americanos. “O que o mundo livre esperava quando saudou a entrada da China no organismo do livre comércio [a Organização Mundial do Comércio] em 2001”, explicou Clyde V. Prestowitz Jr, conselheiro comercial no governo Reagan, era que “desde a época da adopção de Deng Xiaoping de alguns métodos de mercado, em 1979, e especialmente após o colapso da União Soviética em 1992 … o aumento do comércio e do investimento na China levasse inevitavelmente à mercantilização de sua economia, ao desaparecimento das suas empresas estatais”. [6]
Mas, ao invés de adoptar o neoliberalismo baseado no mercado, queixou-se Prestowitz, o governo da China apoiou o investimento industrial e manteve o controle da dívida e do dinheiro nas suas próprias mãos. Esse controle governamental estava “em desacordo com as regras do sistema global liberal” de acordo com as linhas neoliberais que haviam sido impostas às antigas economias da soviéticas depois de 1991. “Mais fundamentalmente”, resumiu Prestowitz:
“A economia da China é incompatível com as principais premissas do sistema económico global hoje corporificadas na Organização Mundial do Comércio, no Fundo Monetário Internacional, no Banco Mundial e numa longa lista de outros acordos de livre comércio. Estes pactos pressupõem economias que sejam baseadas primariamente no mercado, com o papel do Estado circunscrito e as decisões microeconómicas deixadas em grande parte aos interesses privados que operem sob um estado de direito. Este sistema nunca previu uma economia como a da China, na qual empresas estatais respondem por um terço da produção; a fusão da economia civil com a economia estratégico-militar é uma necessidade do governo; planos económicos quinquenais orientam o investimento para sectores-alvo; um partido político eternamente dominante nomeia os CEOs de um terço ou mais das principais corporações e estabeleceu células partidárias em todas as empresas significativas; o valor da divisa é administrado, dados corporativos e pessoais são meticulosamente coletados pelo governo para serem usados para controle político e económico; e o comércio internacional está sujeito a ser transformado em arma a qualquer momento para finalidades estratégicas”.
Isso é uma hipocrisia de cair o queixo – como se a economia civil dos EUA não estivesse fundida com seu próprio complexo militar-industrial e não administrasse sua moeda ou usasse seu comércio internacional como arma a fim de atingir objetivos estratégicos. É o caso de dizer: quem tem telhados de vidro não atira pedras ao vizinho, uma fantasia que retrata a indústria americana como independente do governo. Na verdade, Prestowitz disse que “Biden deveria invocar a Lei de Produção de Defesa para aumentar a produção baseada nos EUA de bens críticos, como medicamentos, semicondutores e painéis solares”.
Enquanto os estrategistas comerciais estado-unidenses comparam a “democracia” americana e o Mundo Livre com a autocracia chinesa, o principal conflito entre os EUA e a China tem sido o papel do governo no apoio à indústria. A indústria americana cresceu fortemente no século XIX com o apoio do governo, tal como agora a China está a providenciar. Afinal de contas, essa era a doutrina do capitalismo industrial. Mas, à medida que a economia dos Estados Unidos se torna financeirizada, ela se desindustrializa. A China tem-se mostrado consciente dos riscos da financeirização e tem tomado medidas para tentar contê-la. Isso a ajudou a alcançar o que costumava ser o ideal estado-unidense de providenciar serviços básicos de infraestrutura a preços baixos.
Aqui está o dilema da política dos EUA: Seu governo está a apoiar a rivalidade industrial com a China, mas também apoia a financeirização e privatização da economia interna – a mesma política que tem usado para controlar os países “vassalos” e extrair seu excedente económico pela busca de renda monopolista (rent-seeking).
Por que o capitalismo financeiro dos EUA trata a economia socialista da China como uma ameaça existencial
O capital industrial financeirizado quer um estado forte para servir a si mesmo, mas não para servir ao trabalho, aos consumidores, ao meio ambiente ou ao progresso social de longo prazo ao custo de erodir lucros e rendas.
As tentativas dos EUA de globalizar essa política neoliberal estão a levar a China a resistir à financeirização ocidental. Seu êxito fornece a outros países uma lição objetiva de por que evitar a financeirização e a busca de rendas monopolistas que aumentam as despesas gerais da economia e, portanto, seu custo de vida e de fazer negócios.
A China também está oferecendo uma lição prática sobre como proteger sua economia e a de seus aliados de sanções estrangeiras e da desestabilização relacionada. Sua resposta mais básica tem sido impedir o surgimento de uma oligarquia independente interna ou externa. Isso tem acontecido sobretudo pela manutenção do controle do governo sobre finanças e crédito, propriedade e política de posse da terra nas mãos do governo tendo em mente um plano de longo prazo.
Olhando para trás no curso da história, foi com esta retenção que governantes do Oriente Próximo da Idade do Bronze impediram a emergência de uma oligarquia que ameaçasse as economias palacianas. Foi uma tradição que persistiu durante os tempos bizantinos, tributando grandes agregações de riqueza para evitar uma rivalidade com o palácio e a sua proteção de uma ampla prosperidade e a distribuição de terras de auto sustento.
A China também está a proteger a sua economia do comércio e das sanções financeiras apoiadas pelos EUA e dos distúrbios económicos, visando a auto suficiência no essencial. Isso envolve independência tecnológica e capacidade de providenciar alimentos e recursos energéticos suficientes para sustentar uma economia que possa funcionar de forma isolada do bloco unipolar dos EUA. Também envolve o desengate do dólar americano e dos sistemas bancários a ele vinculados e, portanto, da capacidade de os Estados Unidos imporem sanções financeiras. Associado a este objetivo está a criação de uma alternativa informatizada interna ao sistema de compensação bancária SWIFT.
O dólar ainda representa 80% de todas as transações globais, mas menos da metade do comércio sino-russo de hoje – e a proporção está a diminuir, especialmente as empresas russas assim evitam que pagamentos ou contas dolarizadas sejam confiscadas por sanções dos EUA.
Estes movimentos de proteção limitam a ameaça dos EUA à primeira opção de Maquiavel: destruir o mundo se ele não se submeter à extração de rendas financeirizadas patrocinadas pelos EUA. Mas, como Vladimir Putin enquadrou as questões: “Quem gostaria de viver num mundo sem a Rússia?”
Kin Chi: Meu comentário rápido: Os EUA certamente gostariam de destruir seu rival, optando pela primeira opção. Mas sabem que é impossível ter êxito, mesmo no caso da Rússia, sem mencionar a China. Assim, espera que o rival se desintegre a partir de dentro, ou por blocos de interesses significativos dentro que sejam cúmplices dos interesses dos Estados Unidos. Portanto, precisamos avaliar como a Rússia e a China estão a reagir a este desafio, uma vez que existem múltiplas forças contestatárias dentro de cada país. E é também por isso que nos temos preocupado muito com os economistas políticos neoliberais pró-EUA e decisores políticos nestes dois países.
Concordo consigo em que a China investiu muito em infraestrutura e indústria. No entanto, estamos preocupados com os movimentos de financeirização da China. Daí, a sua declaração de que “a China tem evitado a financeirização” pode não ser o caso real, pois foram feitos vários movimentos de financeirização, mas podemos dizer que a China parece estar consciente dos riscos da financeirização e tem tomado medidas para tentar contê-la, causando descontentamento por parte dos interesses financeiros dos EUA, que gostariam de ver a China a ir mais longe nesse caminho.
É interessante que ontem a Casa Branca exprimiu preocupação com o uso do RMB digital pela China e o Iraque para liquidar contas de petróleo, pois isto estaria além do monitoramento das transações pelos EUA.
15/Abril/2021
[1] Niccolo Machiavelli, O Príncipe (1532), Capítulo 5: “A respeito da maneira de governar cidades ou principados que viviam sob suas próprias leis antes de serem anexados”.
[2] Neera Tanden, “A Líbia deve pagar-nos?” memorando para Faiz Shakir, Peter Juul, Benjamin Armbruster e NSIP Core, 21 de outubro de 2011. O Sr. Shakir, para seu crédito, respondeu: “Se acharmos que podemos ganhar dinheiro com uma incursão, o faremos? Isso é um sério problema de política / mensagem / moral para nossa política externa, acho eu”. Como presidente do Center for American Progress, Tanden apoiou uma proposta de 2010 para cortar os benefícios da Previdência Social, reflectindo o objectivo de longo prazo de Obama-Clinton de austeridade orçamental interna e externa.
[3] Zbigniew Brzezinski, The Grand Chessboard: American Primacy and its Geostrategic Imperatives (New York: 1997), p. 40. Ver a discussão de Pepe Escobar, ” For Leviathan, It’s So Cold in Alaska “, Unz.com, 18 de março de 2021.
[4] Brzezinski, ibid., P. 55.
[5] Brzezinski, “Towards a Global Realignment,” The American Interest (17 de abril de 2016). Para uma discussão, consulte Mike Whitney, “The Broken Checkboard: Brzezinski Gives Up on Empire,” Counterpunch, 25 de agosto de 2016.
[6] Clyde Prestowitz, “Blow Up the Global Trading System, Washington Monthly, 24 de março de 2021.
[NT] Grabitization: “A palavra russa para privatização depois de Boris Yeltsin ter dissolvido a União Soviética em 1991 e aceite o conselho americano para entregar empresas e recursos naturais existentes a diretores vermelhos e aos bancos que eles se apressaram a organizar. Os neoliberais da Guerra Fria aplaudiram isto como um mercado livre, reconhecendo que o único meio pelos quais os apropriadores pós-soviéticos poderiam transformar suas conquistas em cash e mantê-las livres de impostos futuros e restituições (clawbacks) era vender suas ações a compradores dos EUA e europeus, mantendo a maior parte das suas receitas em Londres e outros centros de hot-money.
“A narrativa neoliberal de encobrimento era que administradores a atuarem no seu próprio interesse tornariam a indústria mais produtiva do que no caso de propriedade estatal. Na prática o resultado foi o despojamento de ativos e operações de iniciados (insider dealing) (ver Cleptocracia ). Os novos proprietários das fábricas deixaram de pagar benefícios aos empregados e ficaram longos períodos sem lhes pagar de todo. Isto transformou a Rússia e outras economias pós-soviéticas em oligarquias financeiramente polarizadas, com muito menos tributação progressiva do que a aplicada no ocidente – tipicamente um imposto uniforme (flat tax) que incidia só sobre o trabalho e os consumidores, não sobre a propriedade e o rendimento financeiro ou ganhos com preços de ativos. As ações russas listadas nas bolsas de valores de Nova York e Londres tornaram-se as principais ganhadoras o que levou à crise financeira russo-asiática de 1997, mas entre 1997 e 2015 a Rússia sofreu fugas de capital e perdas da ordem dos US$25 mil milhões por ano – mais de 500 mil milhões de dólares”.
in J is for Junk Economics: A Guide to Economic Survival in an Age of Deception , Michael Hudson, Islet, 2017, p.110.
Esse artigo foi retirado da publicação feita no site The Saker, do dia 15 de abril de 2021.
Tradução: Resistir.infor