Resenha do livro Raging Twenties
Logo na introdução a Raging Twenties, Pepe Escobar aponta na direção da mudança, do rompimento que confronta as Elites Estabelecidas que, por 30 anos, governaram o globo sem qualquer poder que as contivesse: “O Império que aprendemos a aceitar como fato da vida está perdendo, de modo irrecuperável, sua posição de liderança – e terá de lidar com muita dor implícita na aceitação de um mundo crescentemente multipolar.”
O conceito de Escobar que impressiona, para os Raging Twenties é: “Estamos sendo carregados adiante pelas ondas por uma baleia já arpoada, sem qualquer ideia de como, onde ou quando termina nossa jornada. Como o Ishmael de Melville, temos de nos manter frios, enquanto, sem descanso, combatemos contra os ventos da falácia, da ficção, da fraude e da farsa que o sistema moribundo manipula sem parar.”
Essa é a visão do livro Raging Twenties, de Pepe, volume de trabalhos dedicados ao impacto da pandemia Covid-19 sobre pessoas, governos e questões mundiais, especialmente a macroeconomia mundial.
Escobar é homem de muitas jornadas, aventureiro, explorador, mapeador e contador de histórias. Durante décadas viajou pelas capitais do mundo e percorrer trilhas e estradas escondidas dos terceiro e quarto mundos, mais que qualquer outro escritor do tempo que nos foi dado viver.
Sua vocação profissional é compreender a condição humana e transmitir por seus escritos aquela compreensão de fatos, pessoas, eventos e situações. Tem uma qualidade raríssima, de absorver informação que coleta pessoalmente, demonstrando a percepção do contexto geopolítico, filosófico e histórico, do ancestral ao moderno.
Focando nessa década, os Raging Twenties, coletânea da prosa definitiva de Pepe, é uma voz que se ouve por cima dos eventos e que narra a mudança em nosso mundo, de um hegemon unipolar, para uma ordem mundial multipolar, no tempo de uma pandemia. Pepe destrincha as complexidades que tão frequentemente são ignoradas, mal compreendidas ou mal construídas. Sua “voz” é agradável, embora voz de autoridade, mas instantaneamente familiar. Seu estilo é escrita que fala, como trilha de rádio.
“Pela primeira vez em dois milênios, a China consegue combinar o dinamismo da expansão política e econômica, no plano continental e no plano marítimo, coisa que a civilização-estado jamais experimentou desde o curto período expedicionário liderado pelo almirante Zheng He no Oceano Índico no início do século 15. A Eurásia, no passado recente, esteve sob colonização ocidental e soviética. Agora se está convertendo plenamente em multipolar – uma série de permutações complexas, permutas crescentes lideradas por Rússia-China-Irã-Turquia-
Escobar é homem que está confortável em qualquer das cinco civilizações da Terra. Move-se sem dificuldade no Ocidente, na China, Rússia, Índia ou Irã, e em muitas das vizinhanças dessas culturas gigantes. Apresenta suas narrativas, contos de viagens e encontros em cenas e cenários diferenciados. Escobar aprendeu a domar quatro vozes narrativas – a do filósofo, do bobo-da-corte, do místico e do historiador. Move-se sem tropeços de um para outro desses papeis e embeleza a própria escrita com profundidade intelectual e luz artística.
No capítulo 8, “How the Riddler may teach us to fight a disease” [Como (Heráclito) o Enigmático pode ensinar-nos a combater uma doença], Pepe concebe o Filósofo a investigar a natureza de nosso universo pelos olhos de Heráclito, o Enigmático. “No fundo do fundo de si desprezível aristocrata, seu domínio do paradoxo desestabilizava os ditos ‘sábios’ e as multidões que os adoravam. Heráclito foi o precursor definitivo do distanciamento social.”
“Heráclito era taoísta e budista. Se os opostos são, afinal, o mesmo, isso implica a unidade de todas as coisas. Heráclito anteviu até a reação que deveríamos ter ante a Covid-19: ‘Essa doença que faz a saúde tão boa e tão doce; que faz da fome, saciedade; da exaustão, repouso.’ O Tao aprovaria. No quadro da reciclagem cósmica serial de Heráclito, só a doença dá pleno significado à saúde.”
O Bobo da Corte assina o Capítulo 5 “We are all Stoics now” [Agora somos todos estoicos]. Imagine um Bobo da Corte pintando de estoicismo a cultura pop na Grécia Antiga. É o que Pepe traz para você: ele identifica o primeiro punk na História, Diógenes, o Cínico. “É iluminador saber que as classes abastadas do império romano, o 1% lá deles, consideravam bastante confiáveis os insights de Zenon; ao mesmo tempo em que, previsivelmente, zombavam do primeiro punk na História, Diógenes, o Cínico, que se masturbava na praça pública e carregava uma lanterna para ajudá-lo a encontrar um verdadeiro homem.”
Pepe acompanha a transição da Grécia para Roma, conforme as ideias dos estoicos migravam ao longo dos séculos e encaixavam-se melhor nas mentes romanas de Sêneca, Epiteto e Marcus Aurelius, o trio que vemos como modelos de estoicismo.
“Os estoicos foram gigantes da ataraxia [capacidade para se libertar de qualquer tipo de perturbação], como estado mental ideal. O homem sábio jamais seria perturbado, porque a chave da sabedoria está em saber ser indiferente a tudo.”
Alguém de vocês algum dia viu esse tipo de ‘aproveitamento’ de estoicos, cínicos, epicureus, humanistas e céticos? Pepe conecta-os ao impacto da pandemia.
“Talvez o mais perfeito segredo estoico seja a distinção estabelecida por Epiteto entre coisas que estão sob nosso controle – nossos pensamentos e desejos – e o que não está: nosso corpo, nossa família, nossa propriedade, o tempo que nos é dado viver, todos esses elementos que a expansão da Covid-19 agora põe em xeque.”
“O que o mundo pós-moderno retém dos estoicos é a noção de aceitação resignada – o que faz total sentido, se o mundo realmente trabalha conforme os insights deles. Se os fados – mais uma vez, Zeus, não o Deus Cristão – governam o mundo, e praticamente tudo que acontece está fora de nossas mãos, nesse caso “realpolitik” significa “aceitar que tudo aconteça como realmente acontece” – na frase imortal de Epiteto. Assim sendo, não faz sentido nos excitarmos por coisas que não podemos mudar. Nem faz sentido nos apegarmos a coisas que fatalmente perderemos. Sim, mas tente vender essa noção aos Masters of the Universe do capitalismo financeiro.” A risada de Pepe ouve-se daqui.
“Assim sendo, A Via – segundo os estoicos – é possuir o essencial e viajar sem bagagem. Lao Tzu aprovaria. Afinal, tudo que se possa perder já está mesmo mais ou menos perdido – e assim já estamos protegidos contra os piores golpes da vida.”
A partir de qualquer das personae de Pepe que se veem nessa seleção de seus trabalhos, ele muda em pleno voo, de uma persona a outra. O Bobo-da-Corte pode ser visto e sentido em todos os Raging Twenties. Dê uma passeada pelos títulos dos capítulos e pelos subtítulos. Pepe faz ginástica de solo, de barra, planta bananeira, dá ‘estrela’, faz saltos carpados, mortais de frente e de costas com a terminologia e os rótulos. Vê-se em cada linha o grande sorriso de Escobar e aquele sua gargalhada de fundo de peito: “Remember Pax Mongolica” [Lembrem da Pax Mongolica], “The Sirens and La Dolce Vita” [As sereias e La Dolce Vita], “The Westlessness Myth” [??], “East is East, West is More” [Oriente é Oriente, Ocidente é Mais], “Barbarism With A Human Face” [Barbarismo com face humana], “Enter The Triad” [Entra a Tríade], “The City In A Time of Plague” [A cidade em tempos de praga], “Show Me Your Fragility” [Mostre-me sua fragilidade], “Barbarism Begins At Home” [O barbarismo começa em casa], “Flying Dragon, Crashing Eagle” [Dragão Alado, Águia em Pane], “Blake Meet Burroughs” [Blake encontra Burroughs].
O Místico moderno está conosco no capítulo 10, “How Confucious, Buddha and The Tao Are Winning This War” [Como Confúcio, Buda e o Tao estão vencendo essa guerra”] e no capítulo-âncora, “Eurasia, The Hegemon and the Three Sovereigns” [“Eurásia, o Hegemon e os Três Soberanos”]. O Místico surge mais definidamente no capítulo 25, em coluna retrospectiva, em que Pepe escolheu explorar o éter digital em que foram mergulhados os nossos miolos. “Kim No-Vax Does DARPA” é viagem de volta aos primeiros dias da Inteligência Artificial financiada pela Defense Advanced Research Projects Agency (DARPA), a teta na qual praticamente todos os cientistas de computação dos EUA queriam mamar. Ler essa nostalgia joga luz sobre os muitos becos sem saída da tecnologia norte-americana que levaram ao atual pervertido feudalismo High-Tech do Vale do Silício.
Embarquem com o Místico, para Veneza, Capítulo 3, “The Sirens and La Dolce Vita” [“As Sereias e La Dolce Vita]. Pepe flutua pelos canais de Veneza para re-caminhar com Ezra Pound alguns passos seletos. Em “The Cantos”, encontramos As Sereias, esculturas que representam, para Pound, a bela cultura, tempo e lugar dos melhores que precederam um tempo (o presente) de barata vulgaridade. O Místico suavemente desliza em silêncio para “La Dolce Vita”, o filme de Fellini que expõe a feiura reluzente que se aproximava com os anos 60s. Período de cultura lixo, essa que hoje tomou conta do mundo, antevista por Pound, exposta em alto relevo por Fellini e absorvida por nós.
Pepe o Historiador aparece praticamente em todas as páginas de “Raging Twenties”. Num muito lúcido capítulo 13, “Siren Call of A ‘System Leader’” [Canto de sereia de um ‘Líder do Sistema’], Pepe viaja pela era mongol de Genghis Khan, até a morte de Kublai Khan e o fim daquele Império, e de lá diretamente para o século 21, quando o Império Norte-americano, como o último grande Khan, encara a China. Contudo, a China é parte da Eurásia, o vasto recurso de nações soberanas multipolares, China, Rússia, Irã, Índia, respectivos vizinhos e amigos, a postos para construir um novo mundo baseado em quatro civilizações, não uma ideologia, como os EUA, império falhado.
O Historiador colhe desde Tucídides, além de outros que conheceram pragas e pestes. Pertinentemente, Escobar comenta uma conexão entre a queda de impérios, e pragas e pestes como causa. “Considerando o já entrevisto Declínio e Queda do Império Norte-americano, já ruge sério debate acadêmico em torno de uma hipótese de trabalho trazida pelo historiador Kyle Harper, segundo a qual vírus e pandemias – especialmente a praga Justiniana no século 6º – teriam levado ao fim do Império Romano.”
As raízes jornalísticas de Escobar mantêm-se firmes na realpolitik, ao mesmo tempo em que apontam consistentemente para o fosso que separa as almas pervertidas que sentem necessidade de mentir, trair e matar para alcançar seus objetivos. Escreve com tinta ácida: “Eram os dias em que a OTAN, com plena impunidade, podia bombardear a Sérvia, perder miseravelmente uma guerra no Afeganistão, converter a Líbia num inferno de milícias e conspirar para criar incontáveis intervenções em todo o Sul Global. E, claro, nada disso tinha qualquer coisa a ver com os bombardeios e as invasões que geravam tantos refugiados na Europa.”
O interesse econômico de Pepe na Iniciativa Cinturão e Estrada e a parceria estratégica de ampla coordenação China-Rússia para uma nova era abre nossos olhos para as reais mudanças geopolíticas. A pandemia fraturou o comércio mundial. “Logo estaremos diante de três grandes debates interligados: a gestão da crise, em muitos casos apavorante; a busca por modelos futuros; e a reconfiguração do sistema-mundo.”
Espiando por cima de nossas máscaras anti-Covid, lemos o capítulo 12, “How To Think Post-Planet Lockdown” [Como pensar pós-lockdown-do-Planeta]. O insight principal de Pepe permanece válido: o estado de exceção foi completamente normalizado. E ainda fica pior: “Um novo despotismo, o qual, em termos de controle generalizado e cessação de toda atividade política, será pior que os totalitarismos que conhecemos até aqui.”
“Com distopia e paranoia de massa parecendo já operar como a lei da terra (estupefata), as análises de Michel Foucault, da biopolítica, jamais foram tão oportunas, à medida em que estados em todo o mundo assumem o biopoder – o controle sobre a vida e o corpo das pessoas.”
Pepe nos dá, dentre muitos, Giorgio Agamben, que desdobra suas análises da ciência como a religião de nosso tempo: “A analogia com a religião é tomada literalmente; teólogos declararam que não conseguem definir claramente o que é Deus, mas em seu nome ditaram regras de conduta aos homens e não hesitaram em queimar hereges. Virologistas admitem que não sabem o que, exatamente, é um vírus, mas põe-se a decidir como devem viver os seres humanos.”
Na seção “Entra a tríade”, Capítulo 10, Pepe postula: “Ofereço, como hipótese de trabalho, que a tríade da Ásia, Confúcio, Buda e Lao Tzu, foi absolutamente essencial para modelar a percepção e a resposta serena à Covid-19, de centenas de milhões de pessoas em várias nações asiáticas – comparada à doença, a maior alegria é ser.” Também ajuda saber que “a vida é uma série de escolhas naturais e espontâneas. Não resista a elas – resistir só gera sofrimento. Que a realidade seja a realidade. Que as coisas fluam naturalmente adiante, pela via que queiram.” O budismo anda paralelo ao Tao: “Tudo que é condicionado é impermanente – quando alguém vê isso com sabedoria, dá as costas ao sofrimento.” E para manter nossas dificuldades em perspectiva, ajuda saber que “melhor viver um dia vendo o subir e o descer das coisas, que viver cem anos sem ver o subir e o descer das coisas.”
Quo Vadis? Para onde caminhas?
Pepe mostra-nos a via, os caminhos pelos quais vamos. Oferece também um panteon de “viajantes” que opinam das altas nuvens da história, de livros de prateleiras empoeiradas de bibliotecas, de blogs e vídeos em plataformas digitais, tudo arrancado por seu pensamento de espadachim, para tecer suas ideias e análises que tanto afirmam. Em resumo, um festim à espera do leitor, que se pode tomar como banquete, ou degustar capítulo a capítulo. Aproveitem.
Esse artigo foi retirado da publicação feita no site “The Saker”, do dia 08 de abril de 2021.
Tradução: Coletivo Vila Mandinga