Que navios da Marinha dos EUA entrem no Mar Negro e aspirem a sobreviver, no caso de, Deus nos proteja, qualquer tipo de conflito com a Rússia – sim, sim, vocês leram corretamente, essa ideia andou por aí! – é delírio, é fantasia, ou, para ser ainda mais preciso – é ficção anticientífica.
Esse grupo, para nem falar de um solitário destróier da classe Arleigh Burke (são os tipos mais ativos na Marinha dos EUA), que entra periodicamente no Mar Negro para “mostrar bandeira” e presença dos EUA/OTAN naquele corpo de água crucial, sabe perfeitamente que o Mar Negro, para todos os planos e objetivos, é lago da Rússia.
Todos recordarão boato muito disseminado (disseminado, muito provavelmente por super zelosos, mas não muito letrados, “patriotas” russos) sobre o destróier DDG-75 USS Donald Cook, que teria tido todo seu equipamento eletrônico “torrado” por um par de intrépidos Su-24s russos em abril de 2014, os quais teriam forçado – rezam os boatos – essa nave norte-americana a retornar às pressas para Constanta, Romênia, onde, consta, parte da tripulação teria manifestado desejo de abandonar o barco. O NYT e outros veículos da mídia norte-americana declararam, não sem alguma razão, que os boatos não passariam de “propaganda” russa. Alguma razão, sim, até que têm.
A realidade dos eventos com o USS Donald Cook pouco teve a ver com Su-24s ou algum tipo de contramedidas eletrônicas (ing. electronic countermeasure, ECM). A razão para encurtar tão drasticamente a viagem do destróier norte-americano, como o presidente Vladimir Putin da Rússia destacou, ele mesmo, mais de uma vez, foi que o Donald Cook foi detectado, rastreado e, quando a necessidade impôs-se, foi cercado no campo de visão do radar – de fato, dos radares – dos complexos costeiros de mísseis cruzadores antinavios K-300P Bastion e Bal localizados no litoral da Crimeia, os quais, claro, fizeram muito barulho, literalmente, quando os detectores de radiação passiva do Donald Cook puseram-se a gritar que o destróier já era presa da mira de uma das armas mais temidas do arsenal russo – um lançador de mísseis P-800 Oniks (Onyx). Esse míssil supersônico de longo alcance Mach=2,5 é que torna tão mortífera a primeira linha de defesa da Frota Russa do Mar Negro, porque é precisamente um tipo de armamento projetado e construído para supersaturar a defesa aérea das naves dos EUA equipadas com o Aegis Combat Control System e com o radar Spy-1. Oficiais navais norte-americanos são bem adestrados na qualificação de baterias e capacidade de mísseis, incluindo tetos de saturação de seus sistemas de Defesa Aérea embarcados; sabem que é absolutamente impossível qualquer defesa contra um salvo de mísseis P-800 Oniks 4+ ou de X-35 8+ subsônicos, no ambiente de contramedidas eletrônicas ativas no Mar Negro. Rússia pode repetir esse salvo e até salvos muitas vezes maiores, com a frequência e a densidade desejáveis.
Mas essas são só as capacidades de uma 15ª Brigada Independente de Artilharia de Mísseis da Defesa da Costa [ing. 15th Independent Costal Defense Missile-Artillery Brigade] em Sevastopol, que pode deslocar seus lança-mísseis para qualquer ponto da Crimeia, inclusive para áreas super defendidas pela Frota do Mar Negro e também pelas forças da Defesa Aérea na Crimeia, locações que ocultam o lançamento. Os sistemas de Inteligência, Vigilância e Reconhecimento, IVR [ing. Intelligence, surveillance and reconnaissance, ISR] da Rússia garantem atualizações para situação operacional e distribuem alvos para qualquer receptor do lado russo, em tempo real.
Claro, é preciso não esquecer que dois esquadrões (24+ aeronaves de combate) de SU-27SM/SU-30SM também estão instalados na Crimeia e que cada uma dessas aeronaves pode transportar vários tipos de armas de ataque, incluindo o míssil antinavios X-31A Mach=3.5 e o míssil antirradiação X-31P. E o Regimento de Aviação em Simferopol, que aloca 22 Su-24Ms está sendo reequipado com SU-30SMs.
Vale lembrar, lateralmente, que esses venerandos combatentes (Su-24Ms) também carregam X-31As, os quais, levados a sério, garantem o primeiro salvo (multiplique por 0,5) que consiste de 30-40 mísseis, só por unidade militar. Acrescentem-se aqui os mísseis dos complexos costeiros, e estamos olhando para 60-70 mísseis, só no primeiro salvo, pelo menos. É suficiente para afundar vários Grupos de Combate (um porta-aviões e respectiva escolta), mesmo que todos os aviões embarcados e todos os respectivos sistemas Aegis-Spy-1 funcionem adequadamente.
E, claro, ninguém deve esquecer que a Frota do Mar Negro também inclui navios e esses, mesmo considerando um cruzador, punhado de fragatas e SSKs [submarinos convencionais?] ligados ao Esquadrão Mediterrâneo em torno da Síria, ainda reúnem vários mísseis 3M54 da família Kalibr que aceleram a Mach=2,9 e efetivamente não são interceptáveis no salvo de 2+. Todos esses mísseis aqui nomeados são guiados por inteligência artificial em salvo e têm resistência muito alta contra ‘mistura de sinais’ [ing. jamming] (alguns deles até podem, eles mesmos, ‘misturar’ os sensores do inimigo). E isso, claro, ainda não é tudo.
A Frota do Mar Negro é apoiada pelas forças do Distrito Militar do Sul, das quais faz parte. E como se as notícias e informes acima já não fossem suficientemente ruins para qualquer combinação de forças navais de EUA/OTAN que entrem no Mar Negro, aqui as coisas ficam realmente ainda mais deprimentes para o Pentágono.
A 4ª Força Aérea e Exército de Defesa Aérea da Rússia, que é parte desse distrito, conta com aqueles tão incômodos MiG-31Ks (a base original deles é o Distrito, e continuam a voar missões de lá, desde 2017) armados com mísseis supersônicos Kinzhal Kh-47M2, cuja velocidade Mach=10+, cuja violenta capacidade de manobra e cujo incrível alcance de 2.000 quilômetros os tornam inalcançáveis por qualquer tecnologia de defesa aérea que exista nos EUA e possa vir a existir em futuro próximo (e que não existirá antes de 7-10 anos). Na verdade, há muitas dúvidas de que esses mísseis sejam efetivamente detectáveis.
Esses aviões de combate são capazes de afundar não só qualquer coisa no Mar Negro, mas também no Mediterrâneo Ocidental, sem sequer entrar na Região do Krasnodar[1] ou Crimeia. Obviamente, a Rússia não diz onde estão baseadas essas aeronaves, a cada momento. Quem sabe?
Ora… a inteligência dos EUA talvez saiba, mas é caso clássico de contenção para o bem. Assim, a probabilidade de o Kinzhal acertar qualquer alvo no Mar Negro não depende da habilidade do alvo para responder, mas da probabilidade de o próprio míssil estar em plenas condições de combate.
Assim, como todos podem ver, há muita bondade subsônica, supersônica e hipersônica a distribuir, disponível para a Frota da Rússia no Mar Negro (porque dessa se trata aqui!). O pessoal competente no Pentágono sabe disso.
Por isso se pode dizer que a aparição daqueles dois destróiers no Mar Negro é, literalmente, ‘só para aparecer’, e para tentar colher alguma inteligência relacionada à probabilidade – que hoje já diminui a olhos vistos – de confronto no Donbass.
Escrevo frequentemente que muita gente nos EUA – e falo aqui dos políticos – não têm como perceber a escala da diferença de qualidade que põe os EUA muito atrás da Rússia em poder de fogo e em todos os domínios. Não é diferença só quantitativa; é qualitativa; e a distância só faz aumentar. E há quanto tempo estou avisando, não é mesmo?*******
[1] Krasnodar é capital da Região Kuban russa, do rio Kuban e do Mar Negro, e a 90km do Mar de Azov. A região também é chamada “a pérola da Rússia”, por seus solos particularmente férteis. É também uma das regiões de mais rápido crescimento econômico da Rússia (vide mapa) [NTs].
Esse artigo foi retirado da publicação feita no site “Saker Blog”, do dia 11 de abril de 2021.
Tradução: Coletivo Vila Mandinga