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Digam “Oi!” ao novo timoneiro multilateral

Por Pepe Escobar

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Em tempos de grave perturbação geopolítica, cabe a um verdadeiro estadista assumir o palanque global e diluir a atmosfera tóxica de Guerra Fria 2.0. O presidente Xi Jinping cumpriu esse dever, com discurso notável ao Fórum Boao em Hainan de 2021.

Em China Daily (ing.) lê-se a íntegra do discurso. Aqui, comecemos com um parágrafo:

Com a pandemia de Covid-19, povos em todos os países deram-se conta com mais clareza de que é preciso abandonar a mentalidade de Guerra Fria e o jogo da soma zero, e opor-se a qualquer modalidade de nova guerra fria e confronto ideológico.”

O público do Fórum Boao, espécie de reunião de Sino-Davos, não reunia só convidados pan-asiáticos. Significativamente, Elon Musk, da Tesla; Tim Cook, da Apple; Stephen Schwarzman, da Blackstone; e Ray Dalio, da Bridgewater, dentre outros, lá estavam, prestando total atenção a Xi.

Em discurso relativamente compacto, Xi mais uma vez expôs a arquitetura do multilateralismo – e o modo como a China, agora de volta ao status de superpotência, encaixa-se nela. A mensagem pode ter sido sutilmente dirigida ao hegemon, mas sobretudo se dirigia a uma Eurásia em rápida integração, e a todo o Sul Global.

Xi enfatizou o multilateralismo como espaço de justiça – não de hegemonia –, mostrando “ampla consulta”, grandes países atuando “de modo adequado ao respectivo status e com maior senso de responsabilidade”, e tudo isso para alcançar “benefícios partilhados”, não o bem-estar do 0,001%.

Pequim vê uma economia de mundo aberto como via para o multilateralismo – o que implica nada de “muros” e nada de “desacoplamento”, com a China abrindo progressivamente a própria economia e estimulando a interconexão de cadeias de suprimento, economia digital e inteligência artificial (IA).

Em resumo, eis Made in China 2025 em ação – sem referência à terminologia tão furiosamente demonizada durante a era Trump.

Multilateralismo e economia aberta são componentes chaves da Iniciativa Cinturão e Estrada (ICE) – que não é só vasto modelo comercial/de desenvolvimento, mas é também o conceito que abarca toda a política exterior da China.

Assim, Xi mais uma vez teve de destacar que a Iniciativa Cinturão e Estrada é “estrada pública aberta a todos, não trilha privada que pertencesse a um só partido”. Tem a ver tanto com redução da pobreza, crescimento econômico e infraestrutura de “conectividade hard”, como tem a ver também com “conectividade soft – o que inclui “cooperação no controle de doenças infecciosas, saúde pública, medicina tradicional e outras áreas”.

Bastante significativo que, ao mencionar a adoção de vacinas chinesas, Xi tenha citado dois exemplos do Sul Global: Brasil e Indonésia.

Como seduzir o Sul Global

A abordagem chinesa de um novo padrão de relações internacionais carrega muito de Confúcio e muito do Tao. Daí a ênfase na “comunidade de destino partilhado”, que se aplica globalmente, e a recusa à “mentalidade de Guerra Fria e soma-zero, e ao “confronto ideológico, sob quaisquer formas”.

O que se enfatiza é “a igualdade, o respeito mútuo e a mútua confiança” à frente das relações internacionais, e “trocas e aprendizado mútuo entre civilizações”. A vasta maioria do Sul Global com certeza capta a mensagem.

Mas no pé em que estão as coisas, a realpolitik que ainda dita a Guerra Fria 2.0 já está operante, posicionando Washington contra a parceria estratégica Rússia-China. A área chave, onde o jogo é jogado é, de fato, todo o Sul Global.

Assim, Xi deve estar consciente de que cabe a Pequim o ônus de provar que o mapa do caminho a escolher doravante é “um novo tipo de relações internacionais”.

O Sul Global verá muito claramente os esforços da China “para fazer mais para ajudar países em desenvolvimento a derrotar o vírus” e para “honrar seu compromisso de converter as vacinas em público global.”

No plano prático, cumprir essa promessa será tão crucialmente decisivo quanto a China cumprir também a promessa de que o estado-civilização “jamais buscará a hegemonia, a expansão ou alguma esfera de influência, não importa quanta força venha a acumular”. Fato é que grandes porções da Ásia são natural esfera de influência econômica da China.

A União Europeia será focada diretamente para “cooperação multilateral em comércio e investimento” – referência à ratificação e assinatura ainda em 2021, do acordo comercial China-União Europeia. Businesses dos EUA que tenham acompanhado atentamente o discurso de Xi ter-se-ão interessado muitíssimo por outra promessa tentadora: “Todos são bem-vindos para partilhar as vastas oportunidades do mercado chinês”.

As relações internacionais estão agora totalmente polarizadas entre dois sistemas de governança. Mas para a ampla maioria dos atores no Sul Global, especialmente as nações mais pobres, o teste crucial para cada sistema – como os especialistas chineses sabem tão bem – é a capacidade para fazer avançar a sociedade e melhorar a vida do povo.

Especialistas e políticos chineses privilegiam o que definem como planos de desenvolvimento específicos, mensuráveis, viáveis, relevantes, com prazo marcado para entrar em operação (ing. “specific, measurable, achievable, relevant, time-bound, na sigla, SMART).

Esse conceito traduziu-se, na prática, em confiança dos cidadãos chineses no próprio modelo político da China – sejam quais forem as interpretações que o Ocidente invente. O que realmente interessa é como Pequim conseguiu controlar a Covid-19 no menor tempo, dentre todas as nações do planeta; como a economia chinesa já voltou a crescer; como o alívio da pobreza foi sucesso descomunal (800 milhões de chineses tirados da miséria, em três décadas; 99 milhões de camponeses e 128 mil vilas rurais, no período recente); e como está sendo alcançada a meta oficial de chegar a ser “sociedade moderadamente próspera”.

Pequim, ao longo dos anos, manteve a narrativa de sua “ascensão pacífica” baseada no próprio imenso legado histórico e cultural.

Na China, a interação entre ressonância histórica e sonhos futuros é extremamente complexa para que estrangeiros a decodifiquem. Sempre há ritmos vindos do passado que ecoam no futuro.

O que isso significa, afinal de contas, é que o excepcionalismo chinês – bem óbvio ao longo de séculos de história – baseia-se essencialmente no confucionismo, que define a harmonia como virtude suprema e abomina o conflito.

Eis por que a China não seguirá o beligerante e colonialista passado recente do ocidente hegemônico: mais uma das mensagens chaves do discurso de Xi no Fórum Boao 2021. Se Pequim conseguir implantar essa narrativa de “missão histórica” por todo o Sul Global, – com atos tangíveis, não só retórica –, nesse caso estaremos entrando num outro jogo, completamente novo.*******

Tradução: Vila Mandinga

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