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Sputnik V: o veto geopolítico vindo do norte

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A escandalosa cortina de fumaça representada pela recusa da Anvisa em recomendar a utilização da vacina russa Sputnik V e o veto “técnico”, minuciosamente detalhado em relatório elaborado por “especialistas imparciais e comprometidos com a ciência”, esconde algo que compreensivelmente foge ao conhecimento do público brasileiro.

Acostumado a aceitar explicações referendadas por “autoridades no assunto” e habituado a compreender a realidade das coisas a partir de um prisma interno, a sociedade brasileira ainda não se deu conta da encruzilhada histórica em que o nosso país se vê envolvido, e que isso muito tem a ver com a disputa maior do grande jogo sistêmico global deste novo século que se descortina violento e sem regras claras (isso para não dizer, sem regra alguma…).

Aprovada e utilizada em mais de 60 países, a Sputnik V, apesar de até o momento não ter apresentado qualquer efeito colateral grave relatado, vem sofrendo imensas dificuldades burocráticas em ter seu uso aprovado em território brasileiro há meses.

Com mais de 400 mil mortes contabilizadas até agora, e uma sociedade dividida e conflagrada em torno de um governo liderado por um radical incendiário de extrema-direita, a recusa à vacina russa Sputnik V representa um reflexo destes tempos estranhos por que passam praticamente todos os países do sistema interestatal, mas que a cortina de fumaça do tempo presente impede que se possa enxergar com mais clareza.

A disputa que vem sendo travada abertamente pelas três potências atuais do sistema, nomeadamente, Estados Unidos, China e Rússia – e também por outras potências intermediárias – e à medida que o aumento da pressão se alastra para além das regiões tradicionais onde a competição costumava se dar, fica mais claro que o que está a ocorrer no sistema difere da lógica convencional em que Hedley Bull chamaria de Sociedade Anárquica.

Ou seja, o consenso mínimo que vigeria numa sociedade de Estados, e que tornaria possível a preservação de um respeito mútuo por determinadas instituições e normas, estaria, neste exato momento em que escrevo, morto.

E não apenas porque os Estados Unidos teriam, na prática, indicado essa morte em sua Estratégia de Segurança Nacional de 2017 – bem como na mais recente estratégia interina de Biden, publicada em março – mas porque, ao que tudo indica, o movimento agressivo revelado por muitos países após o estouro pandêmico nos leva a intuir que o mundo estaria já imerso naquela lógica sistêmica que Robert Gilpin chamaria de estado de Guerra Hegemônica.

Segundo Gilpin, e inspirado em Tucídides, a Guerra Hegemônica se diferiria da guerra convencional por sua capacidade de transformação estrutural. Diante disto, necessariamente, todos os Estados individuais acabariam sendo envolvidos dentro de uma concepção sistêmica onde ninguém estaria imune.

Portanto, para além da notável escalada que o aumento da competição interestatal já vinha proporcionando desde meados da década de 2010, as incertezas e a instabilidade causadas pela pandemia da Covid-19 agravaram ainda mais o problema.

Desta forma, à medida que os Estados Unidos são desafiados em sua hegemonia e perdem terreno para Rússia e China, tanto no Oriente Médio, quanto na Eurásia, mais eles buscarão enquadrar os países que fazem parte de sua zona de influência próxima: a América Latina.

Não por coincidência, ainda na administração Trump, houve uma pressão explícita e já oficialmente revelada para que o Brasil dificultasse ao máximo a aprovação da vacina Sputnik V.

Por mais que se diga que o grande adversário dos Estados Unidos já seria a China, historicamente – e desde os tempos do império britânico – a Rússia cumpre o papel de inimigo necessário e norteador do único consenso fundamental das atualmente tão divididas elites estadunidenses: a expansão permanente e infinita do complexo industrial militar.

Neste contexto, portanto, não seria exagero pensar que o Brasil estaria no olho do furacão de um processo de escalada de guerra hegemônica causada, sobretudo, pela possível mudança de ciclo que o sistema mundial estaria presenciando no momento. No aqui e agora.

A pergunta que fica, portanto, é: o risco de cairmos numa armadilha de Tucídides é iminente para os próximos anos, ou a própria pandemia já seria a armadilha de Tucídides e ainda não nos demos conta disso?

 

Fabio Reis Vianna é escritor e analista geopolítico.

 

Esse artigo foi retirado da publicação feita no site “Monitor Mercantil”, do dia 05 de maio de 2021.

 

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