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Império apaixonado por seu cemitério afegão

Por Pepe Escobar, Asia Times e Vineyard of the Saker

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Impossível não rir do show que é a ‘retirada’ das tropas norte-americanas, do Afeganistão, cujo prazo foi agora ampliado, para máximo impacto de “Relações Públicas”, para 9/11/2021.

Quase duas décadas e espantosos $2 trilhões de dólares depois de essa Guerra Permanente ter sido iniciada por um império hoje imensamente endividado, o fracasso pode com certeza ser interpretado como versão pervertida de “Missão Cumprida”.

“Fazem um deserto e chamam de ‘paz’”, disse Tácito –, mas em toda a vastidão do Pentágono não há um, sequer, daqueles figurantes contratados para falar ‘pela Agência’, capaz de sonhar, que fosse, que a terra afegã devastada estaria pacificada.

Nem a maquinaria burocrática da ONU conseguiu dar adequada conta do número de civis mortos; falam de 100 mil mortes em apenas dez anos. Acrescentem-se a isso incontáveis mortes “colaterais” provocadas pelas vastas consequências econômicas e sociais da guerra.

Treinar e armar o – muito ineficiente – exército afegão de mais de 300 mil membros – custa $87 bilhões. “Ajuda econômica e reconstrução” custam $54 bilhões: hospitais e escolas literalmente invisíveis espalhados pela paisagem afegã. Uma divisão local da “guerra às drogas” custa $10 bilhões – pelo menos com resultados (embora invertidos) tangíveis: o Afeganistão gera agora 80% do ópio do mundo.

Todos esses fatos embaraçosos desaparecem no teatro de sombras da retirada “oficial” das tropas. O que realmente conta é quem fica lá: de modo algum apenas ‘uns poucos’, menos de 17 mil “terceirizados” [ing. “contractors”], mais de 6 mil dos quais são cidadãos norte-americanos.

“Terceirizado” é adorável eufemismo para bando de mercenários que, perfeitamente afinados com o impulso de privatização nas sombras, serão agora misturados às equipes de Forças Especiais e agentes clandestinos de inteligência, para conduzir uma variação que continua a ser letal, de guerra híbrida.

Claro que esse desenvolvimento não replicará aqueles Golden Years à David Bowie, da era imediatamente posterior ao 11/9. Há dez anos, depois da ‘avançada’ [orig. surge] de Obama-Petraeus, nada menos de 90 mil terceirizados dançavam ao ritmo do groove Hindu Kush, prodigamente recompensados pelo Pentágono para explorar tudo, de construção, transporte e manutenção, até “serviços aprimorados de interrogatório”.

Coletivamente, esse exército-sombra, triunfo da empresa privada, muitas vezes mais barato que o modelo patrocinado pelo Estado, embolsou pelo menos $104 bilhões desde 2002, e quase $9 bilhões desde 2016.

Agora, querem que confiemos no comandante do CENTCOM, general Kenneth McKenzie, o mesmo que jurou que “terceirizados norte-americanos sairão, como nós saímos”. Aparentemente não informaram ao secretário de imprensa do Pentágono: “Isso é, nada sabemos exatamente sobre os terceirizados.”

Alguns terceirizados já estão com problemas, como a Fluor Corporation, envolvida na manutenção e construção de acampamentos de não menos que 70 Bases Operacionais Avançadas [orig. forward operating bases, FOB] no norte do Afeganistão. Incidentalmente, nenhum/nenhuma Relações Públicas do Pentágono explica se, ou como, essas FOBs serão completamente evanescidas.

A Fluor foi beneficiada por algo chamado LOGCAP – Logistics Civil Augmentation IV Program [aprox. IV Programa para Aumento de Logística Civil] – esquema fixado pelo Pentágono no início do “apoio logístico militar deslocalizado” [orig. “outsource logistical military support”], no início de Obama-Biden 1.0.” O negócio para os primeiros cinco anos foi coisa de $7 bilhões. A empresa Fluor está sendo processada por fraude.

Estabilidade Permanente reforçada

O governo atual em Cabul é liderado por Ashraf Ghani, não entidade virtual. Como o predecessor Hamid Karzai, de sartorial elegância, Ghani é criatura dos EUA, e governa força militar labiríntica, financiada por Washington, ao ritmo de $4 bilhões por ano.

Assim, claro que Ghani está capacitado para distribuir versão rósea de um processo de paz para o Afeganistão nas páginas de Foreign Affairs.

A coisa fica mais e mais estranha, se se acrescenta a questão incandescente que parecia, de início, ter provocado a Guerra Permanente: al-Qaeda.

Um “ex-coordenador de segurança de Osama bin Laden” anda agora vendendo de porta em porta a ideia de que a al-Qaeda pode estar de volta ao Hindu Kush. Mas fato é que, segundo diplomatas afegãos, não há qualquer evidência de que os Talibãs aceitem que a ‘velha guarda’ da al-Qaeda – reencarnação de Osama/al-Zawahiri – volte a prosperar.

Isso, apesar do fato de Washington, para todas as finalidades práticas, já ter descumprido o Acordo de Doha, assinado em fevereiro de 2020, que estipulava que a retirada das tropas teria de ter acontecido sábado passado, dia 1º de maio.

Claro, sempre podemos contar com o Pentágono para “reforçar a segurança e a estabilidade” (ing. “enhance security and stability”) no Afeganistão. Nesse relatório do Pentágono aprende-se que “AQIS [al-Qaeda in the Indian Subcontinent / “al-Qaeda no Subcontinente Indiano”] rotineiramente apoia e trabalha com membros de baixo escalão dos Talibã, nos esforços para minar o governo afegão, e mantém permanente interesse em atacar forças dos EUA e alvos ocidentais.”

Sim, mas… o que o Pentágono não nos conta é de que modo a al-Qaeda antiga, pré-AQIS, converteu-se, por metástase, numa galáxia de “rebeldes moderados”, e está hoje instalada em Idlib, Síria. Nem nos conta como contingentes de jihadistas-salafistas conseguiram acesso a misteriosos corredores de transporte para fortalecer as fileiras do ISIS-Khorasan, no Afeganistão.

“linha de rato” de heroína da CIA

Tudo que se tem de saber, reportado em campo, sobre os primeiros e cruciais anos da aventura imperial no Afeganistão encontra-se no e-book de Asia Times Forever Wars [ainda sem título em português. Talvez…Guerras Permanentes? Guerras Para Sempre], parte 1.

Hoje, duas décadas adiante, o combo político e de inteligência por trás de Biden dedica-se a implantar a ideia de que seria imperativo pôr fim a essa específica Guerra Permanente integrada à mais atualizada Estratégia de Segurança Nacional dos EUA (ing. US National Security Strategy).

Mais uma vez, é tudo o velho teatro de sombras. Fatores condicionantes que pesam sobre a retirada incluem a incompetência e a corrupção dos militares e forças de segurança afegãos; aquele já notório reengajamento da al-Qaeda Talibã; a luta pelos direitos das mulheres; e o reconhecimento do tabu supremo: não acontece retirada alguma, porque parte substancial do contingente de Forças Especiais permanecerá onde está.

Em resumo: para o estado permanente [orig. “estado profundo”[1]] nos EUA, sair do Afeganistão é anátema.

O verdadeiro coração da matéria no Afeganistão tem a ver com drogas e geopolítica – e com a tóxica intersecção dessas forças.

Todos com trânsito no eixo Dubai-Kandahar e suas ramificações sabem que o negócio já globalizado do ópio e da heroína é tema muito próximo do coração da CIA. E bases no Afeganistão e no vizinho Quirguistão garantem segurança para o transporte aéreo.

William Engdahl discrimina de forma concisa os passos do funcionamento da coisa. Nos dias imediatamente posteriores ao 11/9, no Afeganistão, o principal ator no comércio do ópio foi ninguém menos que Ahmed Wali Karzai, irmão presidencial, além de ativo da CIA. Entrevistei-o em Quetta, capital do Baloquistão, em outubro de 2001 (a entrevista pode ser lida em Forever Wars). Obviamente, não fala de ópio.

Ahmed Karzai foi ‘queimado’ num ataque à moda Máfia em casa, em Helmand – que acontece de ser a Central de Ópio do Afeganistão. Em 2017, acompanhando investigações anteriores desenvolvidas por Seymour Hersh e Alfred McCoy, dentre outros, detalhei a operação da linha de rato[2] da heroína da CIA no Afeganistão.

Está rolando o Novo Grande Jogo 3.0

Aconteça o que for daqui em diante envolverá camadas e camadas de teatro de sombras. McKenzie, do CENTCOM, em audiência a portas fechadas na Comissão dos Serviços Armados da Câmara de Representantes dos EUA, disse, basicamente, que ainda estão “definindo” o que farão a seguir.

Com certeza envolverá, na avaliação do próprio McKenzie, “operações de contraterrorismo na região”; “expeditionary basing” (variante linguística que implica que não haverá bases permanentes, pelo menos em tese); e “assistência” às Forças Afegãs de Segurança e Defesa (ing. Afghan National Defense and Security Forces (sem detalhes sobre essa “assistência” e em que consistirá).

Agora comparemos isso e a visão das principais potências eurasianas: Rússia, China, Paquistão e Irã, três das quais membros da Organização de Cooperação de Xangai, OCX (Shanghai Cooperation OrganizationSCO), com o Irã ainda como observador e em breve como membro pleno.

Aí, a prioridade absoluta é impedir que qualquer vírus mutante do jihadismo afegão contamine a Ásia Central. O massivo exercício de 50 mil militares russos e tadjiques realizado em abril passado visava a responder exatamente a essa prioridade.

Ministros da Defesa dos países signatários da Organização do Tratado de Segurança Coletiva, OTSC (Collective Security Treaty Organization, CSTO) reuniram-se em Dushanbe com o objetivo de reforçar ainda mais a porosa fronteira Tadjiquistão-Afeganistão.

E há então a fronteira Turcomenistão-Afeganistão (vide mapa), da qual a trilha do ópio/heroína alcança o Mar Cáspio e divide-se para Rússia, Cazaquistão e Azerbaijão. Moscou, ainda mais que a OTSC, está particularmente preocupada com esse trecho da trilha.

Os russos sabem perfeitamente que perigo ainda maior que diferentes trilhas que floresçam para a distribuição de ópio e heroína, é algum novo fluxo de jihadistas-salafistas para dentro da Comunidade de Estados Independentes, CEI (Commonwealth of Independent StatesCIS).

Apesar de analisarem a partir de perspectivas completamente diferentes, norte-americanos e russos parecem igualmente focados naqueles jihadistas-salafistas – e em o que seus chefes e chefetes inventem para o Afeganistão pós-11/9, em 2021.

Voltemos então a Doha, onde se desenrolam eventos realmente intrigantes.

Dia 30 de abril, uma dita troika estendida – Rússia, EUA, China e Paquistão – distribuiu declaração conjunta em Doha sobre suas discussões com vistas a um acordo negociado no Afeganistão.

troika estendida reuniu-se com o governo de Cabul, os Talibã e o anfitrião, Qatar. Concordaram, pelo menos, em que não deve haver “solução militar”.

E a coisa outra vez fica cada vez mais curiosa: a Turquia, apoiada pelo Qatar e pela ONU, apronta-se para hospedar uma conferência que visa a construir um elo entre o governo de Cabul e os Talibã. Cínicos da Realpolitik podem dedicar-se a adivinhar o que Erdogan está arquitetando.

troika estendida, está a favor, pelo menos retoricamente, de um Afeganistão “independente, soberano, unificado, pacífico, democrático, neutro e autossuficiente.” É dizer quase nada. Ainda é preciso ver como alguma “neutralidade” do Afeganistão pode ser defendida, nesse ninho de cobras especialistas em Novo Grande Jogo.

Pequim e Moscou não alimentarão ilusões de que o experimento norte-americano, das Forças Especiais Afegãs-Norte-americanas recentemente privatizadas dispensará os serviços de jihadistas-salafistas, de uigures radicalizados ou de outros agentes de ocasião, para desestabilizar o que, de fato, será a incorporação do Afeganistão ao Corredor Econômico China-Paquistão (CECP), à Organização de Cooperação de Xangai (da qual já é observador) e ao projeto mais amplo de integração da Eurásia.

Peça extra intrigante do quebra-cabeças é que uma Rússia muito pragmática – diferente da Índia, sua aliada histórica – não se opõe a que os Talibã sejam incluídos num acordo afegão. New Delhi terá de acompanhar. Quanto a Islamabad, a única coisa que interessa, como sempre, é ter governo amigo em Cabul. Aquela boa velha obsessão com “profundidade estratégica”.

O que os grandes players – Rússia e China – veem no quadro de um Afeganistão minimamente estabilizado é um passo a mais para consolidar a evolução das Novas Rotas da Seda, em paralelo com a parceria da Eurásia Expandida. Essa é exatamente e mensagem que Sergey Lavrov, ministro de Relações Exteriores da Rússia levou ao Paquistão em recente visita.

Comparemos então tudo isso com o objetivo estratégico jamais explicitado, do estado profundo norte-americano: manter algum tipo de Bases Operacionais Avançadas [orig. forward operating bases, FOB], no nodo absolutamente crucial entre Ásia Central e Sul da Ásia, e próximas – ah, tão, tão, tão próximas! – de Rússia e China, as tais “ameaças” à segurança nacional dos EUA.

O Novo Grande Jogo 3.0 está só começando, no cemitério de impérios.*******

[1] Orig. Deep State (lit. “Estado Profundo”). Já há algum tempo temos optado por traduzir a expressão por “Estado Permanente”. Depois de muito discutir, chegamos a um consenso: “Afinal de contas, o tal Deep State (i) não é ruim por ser profundo: é ruim por ser eterno, permanente, imutável, inalcançável pelas instituições e forças da democracia; e além disso, (ii) nem ‘profundo’ o tal Deep State é: ele vive à tona, tem logotipos, marcas e nomes na superfície, é visível, portanto; mesmo assim, se autodeclara “profundo”. Não. Ele que se autodeclare o que queira. Nós o declaramos “Estado Permanente” (e anotamos nossos motivos, aqui, em nota dos tradutores (NTs).

[2] A expressão original rat line é corrente no jargão militar e da espionagem-inteligência, em inglês. Adiante, nesse artigo, o autor retoma e explica a expressão, aqui, como lá, traduzida como “linha de rato” (NTs).

 

Esse artigo foi retirado da publicação feita no site “Vineyard of the Saker”, do dia 06 de maio de 2021.

Tradução: Coletivo Vila Mandinga 

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