A criação da Eletrobrás é fruto de um longo processo iniciado na década de 1930, com a nacionalização dos serviços de energia elétrica (especialmente a partir do Código de Águas, Decreto nº 24.643, de 10 de julho de 1934) e a progressiva ampliação da atuação do Estado brasileiro na estruturação e prestação de todas as fases dos serviços de energia elétrica. A supremacia da União consolida-se com a instituição da CHESF (Companhia Hidrelétrica do São Francisco), por meio do Decreto-Lei nº 8.031, de 03 de outubro de 1945, e de Furnas Centrais Elétricas, autorizada por meio do Decreto nº 41.066, de 28 de fevereiro de 1957. A proposta de criação da Eletrobrás foi apresentada durante o Segundo Governo Vargas ao lado de outras medidas de reestruturação e nacionalização do setor elétrico, como a criação do Fundo Federal de Eletrificação (Lei nº 2.308, de 31 de agosto de 1954) e a elaboração do Plano Nacional de Eletrificação.
A Eletrobrás e suas subsidiárias foram as principais responsáveis pela expansão do sistema elétrico nacional até o início do desmonte do setor no Governo Fernando Henrique Cardoso. A privatização do Sistema Eletrobrás chegou a ser cogitada, com a inclusão da empresa e suas subsidiárias no Programa Nacional de Desestatização (artigo 5º da Lei nº 9.648, de 27 de maio de 1998), medida revogada pelo artigo 31, §1º da Lei nº 10.848, de 15 de março de 2004, que volta agora novamente ao centro das discussões nacionais. Com o objetivo de promover a privatização da Eletrobrás (Centrais Elétricas Brasileiras S.A.), sociedade de economia mista cuja criação foi autorizada pela Lei nº 3.890-A, de 25 de abril de 1961, o Governo Michel Temer encaminhou ao Congresso Nacional o Projeto de Lei nº 9.463/2018. O projeto não foi analisado antes do final da legislatura e foi arquivado, sendo substituído em 2019 por um outro projeto praticamente idêntico, o Projeto de Lei nº 5.877/2019, encaminhado pelo Governo Jair Bolsonaro. Por sua vez, visando forçar a privatização de qualquer jeito, o Governo Bolsonaro editou a Medida Provisória nº 1.031, de 23 de fevereiro de 2021, que repete praticamente o texto do Projeto de Lei nº 5.877/2019, configurando uma verdadeira fraude à Constituição pela absoluta ausência dos requisitos de urgência e relevância exigidos pelo artigo 62.
A energia elétrica é um insumo básico tanto das diversas cadeias produtivas como do bem estar geral da população, devendo ser gerido de modo sistêmico tendo em vista o conjunto da economia e as necessidades de todo o povo. Não por acaso, juridicamente, os serviços e instalações de energia elétrica, assim como o aproveitamento energético dos cursos de água, na determinação do artigo 21, XII, ‘b’ da Constituição de 1988 são serviços públicos de competência da União. Nos termos dos artigos 21, XII e 175 da Constituição, a sua prestação pode se dar diretamente pelo Estado ou por meio de concessão, permissão ou autorização. Ainda em relação ao aproveitamento dos potenciais de energia hidráulica, o artigo 176, §1º da Constituição reforça a determinação de que este só pode ser efetuado mediante autorização ou concessão da União, salvo nos casos de aproveitamento de potencial de energia renovável de capacidade reduzida (artigo 176, §4º).
O Sistema Eletrobrás conseguiu estruturar no Brasil um sistema de energia elétrica estatal integrado e planejado. A energia elétrica, como bem de essencialidade máxima, não pode ser regulada e administrada sob os parâmetros de mercado, mas deve o setor elétrico ser estruturado de acordo com o disposto na Constituição. A desintegração vertical do setor elétrico, promovida desde a década de 1990 e acelerada com o Projeto de Lei nº 5.877/2019 e a Medida Provisória nº 1.031/2021, não tem nenhum respaldo constitucional, pelo contrário. O resultado do desmonte do setor elétrico será a substituição de um sistema integrado por um conjunto fragmentado de agentes de mercado que depois irá dar lugar à concentração em monopólios privados.
De acordo com o artigo 2º do Projeto de Lei nº 5.877/2019 e da Medida Provisória nº 1.031/2021, a União poderá conceder pelo prazo de 30 anos novas outorgas de geração de energia elétrica que estão sob titularidade ou controle da Eletrobrás, inclusive prevendo a prorrogação antecipada do contrato de concessão da Usina Hidrelétrica de Tucuruí, no Rio Tocantins (artigo 2º, IV da Medida Provisória nº 1.031/2021). Nada é previsto sobre os investimentos necessários e sobre a política tarifária, com o conveniente esquecimento sobre a aquisição de plantas geradoras que já foram amortizadas, ou seja, os novos concessionários obterão lucros rápidos sem nenhuma necessidade de investir em geração de energia elétrica.
O Projeto de Lei e a Medida Provisória não levam em consideração que, quando a Administração outorga uma concessão, cabe ao concessionário realizar os investimentos necessários para o aproveitamento da água e a exploração da indústria da energia elétrica. A propriedade das instalações, que existe em função da indústria de energia elétrica, é sempre do poder concedente. O concessionário é indenizado pelo valor de seus investimentos, mas não tem direito real oponível ao poder concedente por ter construído as instalações. Ele exerce seu direito perante terceiros, como titular de um direito de exclusividade administrativa, porém não em causa própria, mas como uma obrigação proveniente da exploração da concessão. A propriedade destes bens é resolúvel, ao terminar o prazo da concessão, eles revertem para o poder concedente.
Não bastasse isso, os artigos 3º, II e 4º, III do Projeto de Lei nº 5.877/2019 e da Medida Provisória nº 1.031/2021 exigem que os beneficiários das novas outorgas de concessão de geração de energia elétrica devem ter seu regime de exploração alterado para o de produção independente, nos termos da Lei nº 9.074/1995. Portanto, o Projeto de Lei nº 5.877/2019 e a Medida Provisória nº 1.031/2021 determinam que não se aplique no caso das outorgas de geração de energia elétrica da Eletrobrás e suas subsidiárias o regime jurídico da concessão de serviço público prevista no artigo 175 da Constituição, com todos os deveres e garantias estruturados na legislação, inclusive a reversão dos bens para o Poder Público ao término do prazo da concessão. Ao invés da concessão de serviço público, busca-se a introdução obrigatória da figura do “produtor independente”, que não tem os mesmos deveres e obrigações do concessionário de serviço público e que atua como se a geração de energia elétrica fosse uma atividade econômica qualquer, e não um serviço público, produzindo energia elétrica para comercialização, por sua conta e risco. Os “produtores independentes” assumem o “risco hidrológico”, mas podem negociar a energia no “mercado livre”, a custos muitas vezes mais elevados do que os da energia contratada no “mercado regulado”.
O Projeto de Lei nº 5.877/2019 e a Medida Provisória nº 1.031/2021 insistem, ainda, em burlar a natureza jurídica de serviço público da energia elétrica ao prever em seus artigos 3º, I, 7º (no caso do Projeto de Lei) e 9º (no caso da Medida Provisória) a instituição de uma nova empresa estatal para manter sob controle da União a Eletronuclear e a construção e operação de usinas nucleares e de Itaipu Binacional. Os motivos seriam a preservação do monopólio constitucional sobre o setor nuclear (artigo 177, V da Constituição) e as determinações do tratado internacional firmado entre o Brasil e o Paraguai para o aproveitamento hidrelétrico dos recursos hídricos do Rio Paraná de 26 de abril de 1973. No entanto, o Projeto de Lei nº 5.877/2019, em seu artigo 7º, §1º, estipula que a criação dessa empresa estatal justificada para atender relevante interesse coletivo, na forma do artigo 173, caput da Constituição, como se os serviços e instalações de energia elétrica fossem uma atividade econômica qualquer, livres ao setor privado. A Constituição de 1988, como vimos, determina expressamente a natureza jurídica de serviço público dos serviços e instalações de energia elétrica (artigo 21, XII, ‘b’), portanto, estão submetidos ao regime do artigo 175 da Constituição, que trata dos serviços públicos, não ao artigo 173. O disposto no artigo 7º do Projeto de Lei nº 5.877/2019 é, deste modo, flagrantemente inconstitucional, buscando alterar pela via da lei ordinária a natureza jurídica de serviço público determinada pela Constituição para o setor elétrico. Por sua vez, em uma das poucas diferenças entre os dois textos, a Medida Provisória nº 1.031/2021 não faz qualquer menção ao artigo 173 da Constituição.
Não bastasse isto, tanto o Projeto de Lei nº 5.877/2019 como a Medida Provisória nº 1.031/2021 não definem se essa empresa estatal a ser criada seria uma sociedade de economia mista ou uma empresa pública. Essa indecisão em definir qual será a espécie de empresa estatal é, no mínimo, pitoresca e contrária à toda boa técnica legislativa.
A proposta de privatização da Medida Provisória nº 1.031/2021 é a da emissão de novas ações para reduzir a participação da União no capital da Eletrobrás para menos de cinquenta por cento, abrindo mão do controle. A única “compensação” seria a emissão da chamada golden share, isto é, da ação preferencial de classe especial que permite à União exercer o poder de veto em decisões estratégicas da empresa (artigo 1º e artigo 3º, III, ‘c’ da Medida Provisória). Ainda em relação ao papel do Estado no setor elétrico, o Projeto de Lei nº 5.877/2019 e a Medida Provisória nº 1.031/2021 proíbem a União de deter a maioria do capital votante e o poder de controle da Eletrobrás e suas subsidiárias (artigos 1º, 3º, 8º e 16, I do Projeto de Lei e artigos 1º, 3º, 10 e 17, I da Medida Provisória). Há aqui, portanto, um veto explícito e sem fundamento constitucional à atuação do Estado brasileiro em um setor que é de sua competência e titularidade, tendo em vista que se trata da prestação de serviços públicos constitucionalmente determinados.
O Projeto de Lei nº 5.877/2019 e a Medida Provisória nº 1.031/2021 não tratam em nenhum de seus dispositivos da questão central do uso da água, ignorando a profunda vinculação existente entre a gestão do setor elétrico e a gestão dos recursos hídricos. A atual legislação sobre recursos hídricos (a Lei nº 9.433/1997), mantém a perspectiva trazida pelo Código de Águas e determina o uso múltiplo da água, ou seja, o aproveitamento integral e a gestão racional dos recursos hídricos, priorizando o abastecimento humano em casos de escassez. Portanto, é imperativo legal a adequada articulação entre os múltiplos usos possíveis da água, de forma racional e visando o melhor atendimento possível ao interesse público, evitando, em especial, que seja prejudicado o abastecimento humano. O setor elétrico, mesmo reformulado nos anos 1990, deve seguir esta determinação.
A política adotada pelo Projeto de Lei nº 5.877/2019 e pela Medida Provisória nº 1.031/2021, no entanto, prevê o progressivo abandono da política de desenvolvimento das bacias hidrográficas do país. O projeto estipula que o adquirente das concessões de geração de energia elétrica da bacia do São Francisco tem a obrigação de desenvolver um programa de revitalização dos recursos hídricos apenas pelo prazo de dez anos, com o aporte de trezentos e cinquenta milhões de reais anuais, a partir da assinatura dos novos contratos de concessão (artigos 3º, V e 6º do Projeto de Lei e da Medida Provisória). A Medida Provisória nº 1.031/2021 ampliou essa injeção de recursos por dez anos para a revitalização das bacias hidrográficas vinculadas às usinas hidrelétricas de Furnas (duzentos e trinta milhões de reais) e de Tucuruí (duzentos e noventa e cinco milhões de reais), conforme estipulam os artigos 3º, V, 7º e 8º da Medida Provisória. Ou seja, passado o período determinado de dez anos, não há necessidade de o concessionário privado continuar a investir no desenvolvimento das bacias hidrográficas, em nítida contraposição à política desenvolvida pela CHESF, por Furnas e pela Eletronorte sob controle estatal.
O Projeto de Lei nº 5.877/2019 e a Medida Provisória nº 1.031/2021 invertem de vez toda a lógica do sistema elétrico estruturado a partir da compreensão das atividades energéticas como tarefas ou competências públicas, entendendo a energia elétrica como um bem essencial da coletividade, não como uma simples mercadoria (commodity). Os objetivos de manutenção e permanência do serviço público de energia elétrica serão definitivamente substituídos por interesses comerciais de curto prazo. A privatização da Eletrobrás e suas subsidiárias consolida um modelo em que há a transferência de subsídios para os setores mais favorecidos, com o potencial aumento, proporcional e quantitativo, das tarifas. Além disso, haverá redução de investimentos em segurança e manutenção e congestionamento das redes.
A Eletrobrás é a gestora da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), instituída pelo artigo 13 da Lei nº 10.438, de 26 de abril de 2002. Com a sua proposta privatização pelo Projeto de Lei nº 5.877/2019 e pela Medida Provisória nº 1.031/2021, há o risco de descontinuidade dos programas de extensão da eletrificação rural e de universalização do acesso à energia para os setores mais carentes da população, como o Programa Nacional de Universalização do Acesso e Uso de Energia Elétrica – Luz para Todos. Neste sentido, a 180ª Assembleia Geral Extraordinária da Eletrobrás, ocorrida em 28 de janeiro de 2021, alterou os estatutos da empresa no sentido de praticamente eliminar sua função pública. As alterações determinam que a Eletrobrás só pode assumir obrigações de política pública que estejam de acordo com as “condições de mercado” e cujos custos excedentes devem ser repassados à União. Outra alteração foi retirar a obrigação da estatal de financiar o CEPEL. A alteração dos estatutos da Eletrobrás não só carece de qualquer fundamento legal como viola expressamente a legislação societária, particularmente os artigos 117, §1º, ‘a’ e 238 da Lei nº 6.404, de 15 de dezembro de 1976.
Em suma, tendo em vista a estrutura constitucional e legal do setor elétrico no Brasil, o Projeto de Lei nº 5.877/2019 e a Medida Provisória nº 1.031/2021 são absolutamente incompatíveis com o modelo de serviço público universal pretendido pela Constituição de 1988. O texto constitucional exige uma maior geração de energia elétrica com menos custos para a sociedade, observados a sustentabilidade, o princípio da modicidade tarifária e o menor impacto socioambiental. A Administração Pública deve promover o aumento de oferta e do acesso à energia elétrica. A ampliação do acesso à energia elétrica é essencial para a garantia de uma vida digna e o combate à exclusão. Deste modo, toda política do setor de energia elétrica tem como preocupação a universalização do acesso à energia, concepção esta diametralmente oposta ao desmonte do setor elétrico promovido pelos governos de Michel Temer e Jair Bolsonaro.
1 A estruturação jurídica das subsidiárias da Eletrobrás está prevista na Lei nº 5.899, de 05 de julho de 1973. Além da CHESF e de Furnas, foram criadas outras subsidiárias, sendo as principais a Eletrosul Centrais Elétricas S.A. (Decreto nº 64.395, de 24 de abril de 1969) e as Centrais Elétricas do Norte do Brasil S.A. – Eletronorte (Lei nº 5.824, de 14 de novembro de 1972). Por sua vez, Itaipu Binacional foi constituída a partir do tratado internacional firmado entre os governos do Brasil e do Paraguai em 26 de abril de 1973 e a Eletronuclear é fruto da reestruturação da política nuclear brasileira após a Constituição de 1988.
2 A ojeriza do Projeto de Lei nº 5.877/2019 e da Medida Provisória nº 1.031/2021 ao planejamento é tanta que não preserva sequer o Centro de Pesquisas de Energia Elétrica (Cepel), cuja manutenção por quem adquirir o controle da Eletrobrás só está garantida pelo prazo de 4 anos a partir da desestatização (artigo 3º, IV do Projeto e da Medida Provisória). Ou seja, mais um núcleo de pesquisas estratégicas para o país será desestruturado e provavelmente extinto por puro preconceito ideológico dos idealizadores da privatização da Eletrobrás.
Esse artigo foi retirado da publicação feita no site “A revolução Industrial Brasileira”, do dia 10 de maio de 2021.