De tempos em tempos reacende-se o debate acerca da “tributação sobre grandes fortunas”. Seus defensores, em geral, amparam-se em um princípio, moralmente incontestável, de justiça social: os mais ricos, os que mais se beneficiam do sistema econômico, devem pagar mais para financiar os investimentos públicos em benefício da maioria menos ou nada afortunada.
Esse argumento, contudo, é em sua maior parte equivocado e é superficial no que acerta. Como bem demonstra a Moderna Teoria Monetária (MMT, em inglês), a tributação não é uma operação de financiamento do ente público emissor de moeda. Como os gastos públicos constituem, imediatamente, uma emissão monetária, sendo, assim, anteriores aos impostos, eles são autofinanciados, prescindindo de uma tributação prévia.
O governo federal, portanto, não precisa “taxar os ricos” para financiar política social. Caso o país tenha soberania monetária, isto é, tenha a sua própria moeda, e o governo seja responsável por sua administração, ele pode – e deve – tomar a iniciativa de investir o que for necessário para solucionar os problemas sociais existentes.
Então, para que servem os impostos? Entre outras funções, para remover renda/liquidez dos consumidores, equilibrando a demanda com a oferta e evitando, desse modo, uma escalada inflacionária, e, também, para criar incentivos e desincentivos a certas atividades, “punindo” com uma maior tributação os setores indesejados e “premiando” com uma menor tributação os setores favorecidos.
Deixemos de lado, por enquanto, a primeira função mencionada, pois, no Brasil de 2021, com recordes históricos negativos de demanda, a questão central é ou deveria ser como aumentá-la, não como enxugá-la.
Concentremo-nos na segunda função. Ela indica a centralidade da tributação, e, portanto, da política (já que todo imposto é uma decisão política) para a definição do perfil econômico do país. Se o objetivo político for o de desenvolver as forças produtivas nacionais e priorizar a economia física/real, a tributação deve incidir preferencial e punitivamente sobre o capital especulativo e ser o mais reduzida possível para o capital que produz e emprega. Dessa forma, incentiva-se o investimento na economia física/real e, mais ainda, o reinvestimento, de modo que os lucros privados retornem ao setor produtivo e não sejam extraviados para fins especulativos dentro ou fora do país. Como o objetivo de toda aplicação de capital pelo setor privado é obter uma remuneração, o governo, ao vetar tributariamente o rentismo e isentar a indústria, a agricultura e os serviços técnicos, canaliza os fluxos de capital para atividades úteis do ponto de vista do desenvolvimento e do pleno emprego.
À medida que o país consolidasse o pleno-emprego e, assim, elevasse os ganhos do trabalho, aumentando a demanda e pressionando a inflação, seria necessário e desejável, então, redesenhar os impostos para “enxugar” o poder de compra e equilibrar a demanda com a oferta disponível. Cuidando, evidentemente, que a oferta de bens, serviços e mão de obra capacitada continuasse a se expandir, ou seja, que o desenvolvimento prosseguisse.
Alguém poderia arguir que, nesse caso, a tributação serviria ao desenvolvimento mas não à redução das desigualdades, o que poderia provocar insatisfações sociais que comprometeriam a estabilidade política necessária ao desenvolvimento. Correto. Entretanto, para corrigir as discrepâncias socioeconômicas, melhores do que a tributação, são os chamados “direitos trabalhistas”, a serem alcançados tanto por meio de legislação quanto por acordos coletivos, que, por sua vez, dependem de uma forte organização do trabalho e do capital em sindicatos e federações. As garantias trabalhistas, em um contexto de desenvolvimento e, portanto, de geração de empregos, promovem a redistribuição de renda no âmago do processo de trabalho e de produção, antes dos lucros, dispensando, para fins redistributivos, a tributação, por definição posterior aos lucros.
Como bem sabia Adam Smith, as regulações pró-trabalhistas, ao permitirem maior remuneração e descanso aos trabalhadores, e, portanto, uma mão de obra mais rica e saudável, mais produtiva e apta a comprar os bens e serviços multiplicados pela divisão do trabalho, agem a favor da indústria e dos lucros privados, harmonizando o crescimento material com a justiça social, isto é, realizando a riqueza das nações.
Uma ilustração histórica de tudo abordado até aqui é a Suécia social-democrata no século XX. O país escandinavo era, dentre os da OCDE, o que menos tributava as corporações e, ao mesmo tempo, o mais socialmente igualitário. Como a taxação sobre os dividendos era proibitiva e o governo exercia forte controle sobre as finanças, a especulação praticamente inexistia e toda a economia era física/real, com o predomínio de grandes corporações industriais. A ampla legislação trabalhista, a política salarial governamental e o vigor do sindicalismo, que chegou a incorporar 95% dos assalariados, elevaram sobremaneira a remuneração do trabalho, que estava entre as maiores do mundo. A priorização da tributação indireta, que ocupava a maior parte da carga tributária total, destinava-se, assim, não a financiar políticas sociais, mas evitar a inflação e, assim, possibilitar a continuidade dos eficientíssimos mecanismos de planejamento público-privado que tornaram a Suécia um dos países desenvolvidos de maior crescimento econômico no século passado.
Ainda mais para o Brasil, um país subdesenvolvido e cada vez mais carente de capital produtivo, a questão central não pode ser “taxar os ricos” em abstrato, como se a riqueza, em si, fosse um pecado a ser corrigido pelos impostos progressivos. Deve-se, pois, utilizar a tributação como instrumento do desenvolvimento e da formação de capital, junto a uma política de recomposição da seguridade trabalhista, ampliando, assim, as oportunidades de emprego e as bases materiais do Estado de bem estar social.
Mas, para isso, é preciso, antes de tudo, que se recupere o controle governamental sobre o Banco Central e se restrinja ao máximo possível os fluxos de capital para o exterior, sobretudo os ilegais, de modo que a moeda nacional volte a ser controlada pela política eleita pelo povo e não pela política eleita pelas altas finanças transnacionais. Somente assim ela poderá ser manejada de acordo com os interesses nacionais.
1 Para uma exposição mais ampla e didática, recomendo o livro Finanças Funcionais e a Teoria da Moeda Moderna – MMT, de Gustavo Galvão.
2 Escrevi mais detalhadamente sobre a Suécia em artigo publicado no portal da RIB em 13/01/2021: https://rib.ind.br/suecia-o-capital-se-faz-em-casa/
Esse artigo foi retirado da publicação feita no site “A revolução Industrial Brasileira”, do dia 13 de maio de 2021.