Diários de bordo e cartas dos navegantes e dos evangelizadores não cessam de referir-se às novas terras falando da formosura de suas praias imensas, da grandeza e variedade de seus arvoredos e animais, da fertilidade de seu solo e da inocência de suas gentes que “não lavram nem criam (…) e andam tais e tão rijos e tão nédios que o não somos nós tanto, com quanto trigo e legumes comemos”, como se lê na “Carta de Pero Vaz de Caminha a El Rei Don Manuel Sobre o Achamento do Brasil”. É dessa carta a passagem celebrada: “Águas são muitas; infindas. E em tal maneira graciosa que, querendo-se aproveitar, dar-se-á nela tudo, por bem das águas que tem”. Quando se examinam relatos aparentemente descritivos, não se pode deixar de notar que certos lugares-comuns se encontram em todos eles. O Brasil é sempre descrito como imenso jardim perfeito: a vegetação é luxuriante e bela (flores e frutos perenes), as feras são dóceis e amigas (em profusão inigualável), a temperatura é sempre amena (“nem muito frio, nem muito quente”, repete toda a literatura e Pero Vaz de Caminha), aqui reina a primavera eterna contra o “outono do mundo”, o céu está perenemente estrelado, os mares são profundamente verdes, e as gentes vivem em estado de inocência, sem “esconder suas vergonhas” (diz Pero Vaz), sem lei e sem rei, sem crença e pronta para a evangelização. Esses lugares-comuns literários possuem um sentido preciso que não escaparia a nenhum leitor dos séculos 16 e 17: são os sinais do Paraíso Terrestre reencontrado. Nascido sob o signo do Jardim do Éden, o mito fundador não cessará de repô-lo. Três exemplos podem ajudar-nos a perceber a permanência dessa, muito depois de encerrada a exegese mítica da descoberta-conquista. Praticamente quase todas as bandeiras nacionais, criadas nos vários países durante o século 19 e início do século 20, são bandeiras herdeiras da Revolução Francesa. Por isso são tricolores (algumas poucas são bicolores), as cores narrando acontecimentos sócio-políticos dos quais a bandeira é a expressão. A bandeira brasileira é a única não-tricolor produzida nesse período. Possui quatro cores. Ora, quando se pergunta qual o significado dessas cores, não se responde que o verde, por exemplo, simbolizaria lutas camponesas pela justiça, mas sim que representa nossas imensas e inigualáveis florestas; o amarelo não simboliza a busca da Cidade do Sol, utopia de Campanella da cidade ideal, mas representa a inesgotável riqueza natural do solo pátrio; o azul não simboliza o fim da monarquia dos Bourbons e Orléans, mas a beleza perene de nosso céu estrelado, onde resplandece a imagem do Cruzeiro, sinal de nossa devoção a Cristo Redentor; e o branco não simboliza a paz conquistada pelo povo, mas a ordem (com progresso, evidentemente). A bandeira brasileira não exprime a política nem a história. É um símbolo da Natureza: floresta, ouro, céu, estrela e ordem. É o Brasil-jardim, o Brasil-paraíso terrestre. O mesmo fenômeno pode ser observado no Hino Nacional, que canta mares mais verdes, céus mais azuis, bosques com mais flores e nossa vida de “mais amores”. O gigante está “deitado eternamente em berço esplêndido”, isto é, na Natureza como paraíso ou berço do mundo, e é eterno em seu esplendor. E, terceiro exemplo, a poesia ufanista que toda criança aprende a recitar na escola, como o poema do conde Afonso Celso, “Porque Me Ufano de Meu País”, ou os sonetos parnasianos de Olavo Bilac: “Ama com fé e orgulho a terra em que nasceste!/ Criança, jamais verás país como este!/ Olha que céu, que mar que floresta!/ A natureza, aqui perpetuamente em festa,/ É um seio de mãe a transbordar carinhos”. Essa produção mítica do país-paraíso nos persuade de que nossa identidade e grandeza se encontram predeterminadas no plano natural: somos sensíveis e sensuais, carinhosos e acolhedores, alegres e sobretudo somos essencialmente não-violentos. O primeiro elemento da construção mítica nos lança e conserva no reino da Natureza, deixando-nos fora do mundo da História.
O texto completo está no artigo “O mito fundador do Brasil”