Acabo de voltar do supermercado. Não se tratava da área Leblon/Ipanema nem Lagoa Rodrigo de Freitas, consideradas “nobres” (local de residência dos mais ricos …). Foi na Gávea, bairro de classe média atualmente, porém na origem um bairro operário vinculado à indústria de tecidos.
Comprei frutas e legumes para a alimentação de 1 só pessoa durante 1 semana. À exceção de 2 peras portuguesas, só havia produtos brasileiros na sacola. A nota foi de R$ 150,00. Antes eu havia ido à única padaria da zona da Gávea próxima ao shopping. A nota foi de R$ 50,00. Como o salário mínimo 2022 é de R$ 1.212, os R$ 200 que gastei representam 17% do salário mínimo. Se houvesse carne vermelha ou frango, eu poderia gastar o dobro.
Fique bem claro para todos que o preço atual dos alimentos, no Rio de Janeiro, extrapola os rendimentos disponíveis da classe média brasileira. É mais claro ainda o fato de termos um salário mínimo insuficiente para a alimentação saudável de um casal de aposentados. Mas é isto que recebe a imensa maioria dos aposentados – um salário mínimo !
E ainda se diz que a terra brasileira será o celeiro do mundo !
Por entender bem esta realidade, vigente há algum tempo, os economistas do Rio de Janeiro, reunidos no seu sindicato profissional, desfraldaram uma belíssima bandeira por ocasião da Constituinte de 1988 – passe livre no transporte urbano para os aposentados maiores de 65 anos. Para quê? porquê?
Porque havia sido observado, no universo dos “velhinhos”, enorme desequilíbrio entre receitas da aposentadoria e as despesas mínimas, essenciais a uma vida saudável. A grande maioria não era proprietária, pagava aluguel ou morava em algum puxadinho em terreno de parentes. Em Copacabana e em outras zonas do Rio de Janeiro havia quitinetes mínimas, de 35/50 m2, abrigando velhinhos aposentados.
Essa gente – que nos havia criado, alimentado, educado – não tinha o direito de visitar a família, os amigos, os locais bonitos e agradáveis do Rio de Janeiro (como o Jardim Botânico, a Floresta da Tijuca, o centro histórico, etc), por uma simples razão : não dispunham de recursos financeiros para comprar duas passagens de ônibus… !!! Seria isto justo? Perante qual tribunal ?
Daí a idéia de desfraldar a bandeira do passe livre para idosos maiores de 65 anos, em horários fora do pico, isto é, quando os ônibus trafegam com ociosidade de lugares. Uma bandeira humanista, humanitária, de gratidão para com aqueles a quem devemos vida e educação.
Além do mais não haveria prejuízo para as empresas de transporte urbano nem para o Estado. Isto é, verificou-se que o passe livre não iria gerar externalidades negativas, na linguagem dos néo-classicos. Tratava-se assim de ideia oportuna, generosa e inteligente, sem custos para o mercado.
Por isto, escutei com assombro (!) no jornal das 22 hs da Globo News, há um ou dois dias atrás (desse mês de fevereiro de 2022), um comentarista da emissora afirmar que esta gratuidade, para idosos, contribui para o aumento das desigualdades sociais em nosso país. Justificou-se ele, o comentarista, com a afirmação de que outros indivíduos, com menos recursos, estão obrigados a pagar a passagem no transporte público urbano ..
Não vou comentar nem adjetivar tamanha “estupidez”. Deixo aos meus leitores a réplica. Digo, no entanto, que esta gratuidade para os velhinhos foi uma conquista dos que desfraldaram a bandeira “Transporte, direito do cidadão, dever do Estado”, sob a liderança de figura impar na política brasileira – o Dr. Ulysses Guimarães.
Esta gratuidade, contra a qual se levanta agora um comentarista da Globo News, foi uma conquista de brasileiros que lutaram pela redemocratização do Brasil. Economistas e sindicalistas daquele tempo de luta democrática.
Na mesma ocasião, li eu entrevista com o presidente do BACEN/Banco Central do Brasil, louvando a autonomia e a independência de que desfruta a entidade frente aos ciclos da política brasileira, duas medidas que permitem ao Bacen – no entendimento de seu presidente – captar o significado e acompanhar as manifestações dos mercados através das variações de preços. Francamente !
Faltou dizer que pode haver uma variedade de leituras frente aos movimentos de preços do mercado. Quando o arroz dobra de preço, quando o preço do gás aconselha cozinhar com lenha porque o preço do botijão de gás não cabe no salário mínimo, e quando os famintos e sem teto se amontoam nas ruas do Brasil, qual adjetivo deve ser dado aos mercados ? “genocida” ou “assassino” ? A qual tribunal conduzir este mercado desumano, ávido por dinheiro e nada mais ?
Como explicar a nossas populações famintas, sem teto, que a falta de comida a preços razoáveis para os brasileiros, deve-se à preferência dos capitalistas por mercados externos, onde os preços variam conforme manipulações as mais variadas ? Como justificar perante os brasileiros a ausência de impostos sobre operações comerciais dessa natureza, em decorrência de uma única lei, a Lei Kandir ?
E ainda se diz que a terra brasileira será o celeiro do mundo !
Não devemos, não podemos mais permanecer passivos frente a discursos falaciosos, que encobrem responsabilidades. Sei que houve mudança de métodos e de ideologias nas nossas lideranças sindicais. Sei que a luta democrática por melhores condições de vida está sendo desviada para outras bandeiras, muitas vezes bandeiras importadas. Mas precisamos reagir rápida e corajosamente.
Estamos sendo escalpelados. Devemos dizer NÃO,NÃO e NÃO! QUEREMOS O TRANSPORTE COMO DIREITO DE TODOS E DEVER DO ESTADO.
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*Ceci Juruá – Economista, mestre em desenvolvimento econômico, doutora em políticas públicas, foi diretora do Sindicato de Economistas do Rio de Janeiro e conselheira do CORECON-RJ por dois triênios. É membro do Conselho Consultivo da CNTU e do Conselho Diretor do CICEF.