Que economia herdará o futuro presidente? Vamos dizer que seja o Lula. Ele tem dito que pegará, se eleito, um país muito pior do que em 2003, quando chegou à Presidência da República pela primeira vez.
Será verdadeira essa afirmativa para o campo econômico? Para algumas áreas sim, mas não para todas, e em especial não para uma que é de importância estratégica: a situação das contas externas – crucial para definir a vulnerabilidade do País a pressões estrangeiras. Sem levar esse aspecto na devida conta, não se forma uma avaliação realista das opções que se oferecem a um novo governo.
FHC deixou tudo pendurado por barbante
Começo avaliando brevemente o quadro econômico na época em que Lula venceu as eleições de 2002. Fernando Henrique Cardoso deixava a Presidência depois de 8 anos no poder. Os resultados na área econômica foram sofríveis, de modo geral. FHC controlou a inflação, sim, mas deixou tudo mais pendurado por barbante, como já tive ocasião de mostrar (em livro de 2005, O Brasil e a Economia Internacional). No final do governo, até a inflação já escapava do controle.
A fragilidade externa brasileira, durante o período FHC, de 1995 a 2002, decorria de um substancial déficit em conta corrente, da dependência de capitais externos, da liberalização prematura dos movimentos de capital e do nível reduzido das reservas internacionais. A restrição externa era, na verdade um problema crônico desde a década de 1980, nunca superado – e agravado pela apreciação cambial decorrente do Plano Real.
No período 1999-2001, as reservas brasileiras ficaram em torno de apenas US$30 a 35 bilhões. Quando a crise se agravou em 2002, em parte por causa dos receios da vitória de Lula, o Banco Central estava sem bala na agulha. Não aproveitara os períodos de relativa tranquilidade para reforçar o seu caixa em moeda estrangeira. A solução melancólica foi recorrer mais uma vez ao FMI. Em dezembro de 2002, no final do governo FHC, as reservas líquidas, deduzidas as obrigações com o Fundo, eram de apenas US$ 17 bilhões.
Bem, não é preciso ter passado, como eu, 8 anos e meio no FMI para saber o que isso significa. Um país que recorre ao Fundo perde autonomia na condução da sua política econômica. Fica obrigado a seguir os preceitos da instituição, nem sempre adequados e bem adaptados às peculiaridades nacionais. E mais importante: o FMI é um órgão ao mesmo tempo técnico e político. Os países avançados, particularmente dos Estados Unidos, dominam a instituição. Recorrer ao FMI significa, na prática, recorrer aos EUA, com tudo que isso significa. Apesar da redistribuição de quotas e votos que conseguimos fazer quando eu lá estava, em 2008 e 2010, essa afirmativa permanece válida. E, com um pedido de desculpas pela segunda auto citação, remeto a meu livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém, onde se pode encontrar uma discussão da economia política do FMI.
O setor externo da economia brasileira
Mas não quero ficar muito tempo no passado. Como está o quadro hoje? A situação externa do Brasil é muito melhor do que era em 2002. O déficit em transações correntes (balança comercial, serviços e rendas) é pequeno, de 1,7% do PIB em 2021. Isso porque o superávit da balança comercial compensa grande parte das despesas com serviços, juros da dívida externa e a pesada remessa líquida de lucros e dividendos ao exterior (quase US$ 30 bilhões no ano passado). O investimento direto líquido (descontado o investimento de residentes no exterior), que é uma forma mais estável de capital, cobre a quase totalidade do déficit em conta corrente.
O ponto central é o elevado estoque de reservas internacionais, resultado do esforço de acumulação realizado nos governos Lula e Dilma. Com muita demora, as autoridades econômicas brasileiras começaram a fortalecer as reservas de modo expressivo a partir de 2006 (outros países em desenvolvimento, notadamente na Ásia, começaram muito antes, na década de 1990). Pagamos o FMI antecipadamente e nos tornamos depois, pela primeira vez, credores da instituição. Subsequentemente, nos governos Temer e Bolsonaro, o nível de reservas ficou mais ou menos estável. Pelo menos nesse ponto não houve estrago no período pós-golpe. No final de 2021, as reservas estavam em US$ 362 bilhões, crescendo em relação a 2020, graças à alocação de DES (direitos especiais de saque) de US$ 15 bilhões. A situação do Brasil é muito mais confortável do que a de outros países emergentes, a Argentina e a Turquia, por exemplo.
Vulnerabilidades externas
Não quero, leitor, passar a impressão de que a nossa posição externa é invulnerável. Há pontos de fragilidade. Por exemplo: o que aconteceria com o déficit em transações correntes, que mede a dependência líquida de capitais externos, se houvesse retomada do crescimento da economia, especialmente em combinação com apreciação cambial? Em outras palavras, o déficit ajustado para excluir tanto efeitos cíclicos como uma depreciação cambial talvez exagerada é maior do que o déficit observado.
Outro problema potencial: o que aconteceria no caso de uma redução abrupta da liquidez internacional provocada por um endurecimento da política monetária dos Estados Unidos? Com uma conta de capitais muito aberta, o resultado seria uma forte pressão sobre a taxa de câmbio. É verdade que o câmbio flutuante confere alguma proteção, livrando o Banco Central de defender determinada meta cambial. As reservas também são uma garantia contra ameaças externas.
Porém, uma depreciação cambial adicional dificultaria o controle da inflação. E as reservas já não são mais o que foram em períodos anteriores. Elas devem ser avaliadas não apenas em termos absolutos, mas também em relação a outros indicadores relevantes. Desde 2015, elas vêm caindo gradualmente relativamente às importações de bens e serviços, em relação a um agregado monetário amplo (M2) e comparadas à dívida externa de curto prazo (por maturidade residual).
O futuro governo
Apesar dessas ressalvas, o ponto a reter é que o Brasil, em um aspecto crucial, está em posição consideravelmente melhor do que já esteve – não só em 2002, mas em boa parte das décadas de 1980 e 1990.
Isso confere margem de manobra ao governo brasileiro, atual e futuro. O atual governo não sabe o que fazer com isso. O futuro governo saberá?
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Uma versão resumida deste artigo foi publicada na revista “Carta Capital” em 18 de fevereiro de 2022.
O autor é titular da cátedra Celso Furtado do Colégio de Altos Estudos da UFRJ. Foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, começou a circular em março de 2021.
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