Marcelo Zero
A maior parte das vítimas da guerra na Ucrânia, provocada, em última instância, pela política beligerante dos EUA e da Otan, não está naquele país ou na Rússia.
Na realidade, as grandes vítimas são os pobres do mundo, especialmente aqueles que estão em países que dependem da importação de alimentos.
O mercado global de grãos é muito concentrado. Mais de 85% das exportações globais de trigo vêm de apenas sete fontes: União Europeia, EUA, Canadá, Rússia, Austrália, Ucrânia e Argentina. A mesma parcela das exportações de milho vem de apenas quatro países: EUA, Argentina, Brasil e Ucrânia.
A Rússia e a Ucrânia, combinadas, respondem por cerca de 30% das exportações mundiais de trigo, 20% das exportações de milho e 80% das exportações de óleo de girassol, só para citar os produtos mais importantes.
Após o início do conflito, a Ucrânia tomou a decisão de impedir exportações de gêneros alimentícios, como forma de assegurar o abastecimento interno, o que causou um impacto negativo imediato no mercado internacional de alimentos.
A Rússia, por sua vez, vem sendo impedida de exportar, em razão das sanções draconianas, impostas pelos EUA e seus aliados da Otan, e pelos obstáculos logísticos ao uso dos portos do Mar Negro, por onde os principais produtos agrícolas russos são exportados para o mundo.
Além disso, as sanções também vêm afetando a distribuição de fertilizantes, já que Rússia e Belarus, grandes produtores mundiais desses insumos vitais para a agricultura, estão impedidos de exportá-los. Isso tem um impacto enorme da produtividade agrícola. Os preços dos fertilizantes se elevam, a produtividade agrícola cai, o que aumenta, por sua vez, o preço dos alimentos.
Outro fator que agrava o quadro são as sanções ao óleo e gás russos, que estão aumentando, de forma extraordinária, os preços internacionais dessas commodities, contribuindo significativamente para o aumento da inflação no mundo, inclusive a de gêneros alimentícios. A agricultura moderna depende muito desses insumos de energia, tanto para produção de alimentos (tratores, colheitadeiras, etc.) quanto para a sua distribuição (caminhões, trens a diesel, embarcações etc.).
O fato óbvio é que o conflito na Ucrânia está causando muitas vítimas no mundo inteiro, especialmente nas nações mais pobres. As estimativas do Programa Mundial de Alimentos da ONU mostram que os efeitos em cascata da guerra na Ucrânia devem elevar o número de pessoas com fome severa de 135 milhões para 323 milhões, em 2022. Além disso, esse conflito está colocando cerca de 400 milhões a mais de indivíduos em insegurança alimentar, um aumento de 40%, em apenas 5 meses.
Desde que começou o conflito, há pouco mais de 4 meses, 4.253 ucranianos morreram, de acordo com as estatísticas oficiais. Segundo a Oxfam, entre 8 mil e 15 mil pessoas morrem todos os dias por fome e má-nutrição no mundo. Cerca de 11 por minuto.
Mas esse número devastador poderá ser aumentado para cerca de 25 mil, que era a estimativa para o inicio deste século. Todo o progresso que havia sido feito no combate à fome nas últimas décadas está sendo rapidamente revertido pela combinação de crise mundial, pandemia e, agora, pela guerra na Ucrânia. O mundo está à beira de uma grande fome mundial.
Essas vítimas não farão manchetes na mídia ocidental. Não moram na Ucrânia e não servem para fins de propaganda.
Essas vítimas também não parecem comover os EUA e a Otan.
A reunião da Otan em Madrid serviu para demonstrar que os EUA e seus laidos europeus pretendem expandir e intensificar o conflito na Ucrânia, com consequências nefastas para a segurança e economia mundiais.
Com efeito, o Novo Paradigma (ou Conceito) Estratégico da Otan prevê a continuidade da política de expansão da Otan em direção à Rússia, com a próxima adesão de Finlândia e Suécia ao bloco; política essa que é a responsável, em última instância, pelo conflito na Ucrânia.
Ademais, esse paradigma prevê também o aumento das tropas de rápida mobilização da organização de 40 mil para 300 mil efetivos e novos e fortes investimentos em armamentos, tanto defensivos quanto ofensivos. O Pentágono planeja implantar uma grande base militar permanente na Polônia, enviar mais tropas dos EUA para os estados bálticos e Romênia, mais dois destroieres da Marinha para a Espanha e dois esquadrões de caças F-35 para a Grã-Bretanha.
Mas não fica só nisso. EUA e Otan vão intensificar o envio de armamentos para a Ucrânia. Somente os EUA investirão cerca de US$ 40 bilhões em ajuda à Ucrânia, sendo que 60% desse total serão investidos em segurança e armamentos.
O objetivo manifesto dos EUA e da Otan é o de prolongar e intensificar a guerra e neutralizar a “grande ameaça da Rússia”, inclusive mediante novas sanções que a fragilizem cada vez mais e a asfixiem econômica e financeira, tal como ficou acordado também na última reunião do G7.
Entretanto, pela primeira vez na história, a Otan passou a classificar a China como um “desafio sistêmico”. Desafio sistêmico é um eufemismo ridículo para categorizar inimigo. O secretário-geral da Otan, Jens Stoltenberg, foi sincero ao afirmar que a Cúpula de Madrid “tomaria decisões importantes para fortalecer a Otan em um mundo mais perigoso e competitivo, onde regimes autoritários como Rússia e China estão desafiando abertamente a ordem internacional”.
Com isso, a Europa se alinha à política de segurança dos EUA, a qual considera explicitamente a China como seu principal adversário, na disputa pelo poder mundial. Não por acaso, foram convidados para a Cúpula de Madrid os países do Quad (Australia, Japão e Índia), grupo que visa contrabalançar a influência da China na região do Indo-pacífico. A Otan ensaia passos para sua expansão para além da zona transatlântica.
Os EUA e a Otan querem lançar o Ocidente numa cruzada insana e fútil contra Rússia, China, Irã e todos os páises que o Departamento de Estado considera adversários ou inimigos. Na lógica da Guerra Fria 2.0, ou se está com os EUA ou se está contra eles. Não haveria espaço para uma saudável multipolaridade, para a paz e para um mundo mais cooperativo e próspero.
Com isso, as grandes vítimas dos EUA e Otan continuarão a aumentar, inclusive no Brasil.
Como dizia Hegel, a grande lição da História é que os homes não aprendem nada com ao História. Os EUA que o digam.