OS TEMPOS ANTIGOS
Quando eu era jovem, economistas e cientistas sociais dedicavam muita atenção à questão da propriedade, sobretudo nos países mais “desenvolvidos”. Tive uma amiga que foi viver em Londres e praticamente não pagava aluguel, morava em apartamento “social”, de propriedade do Governo, pagando uma taxa mínima, adequada aos menores rendimentos da sociedade inglesa.
Em Paris havia o sistema HML — Habitation à Loyer Moyen, que traduzido para português significa habitação de aluguel moderado, para a população de baixos rendimentos. Era tempo do pós-guerra, anos 1960 e 1970, e os europeus comemoravam três décadas de crescimento econômico. O capitalismo parecia dar certo, frente às dificuldades dos países integrantes da União Soviética e/ou socialistas.
Quando voltei para o Brasil, em 1971, tentei conversar sobre tais modalidades, que visavam permitir que todas as famílias dispusessem de um teto como moradia. Nem pensar. Aluguéis reduzidos e moradia grátis eram vistos como coisa para país desenvolvido…! Entre nós, que precisávamos ainda de crescimento econômico, era proibido tocar em tais assuntos. Se tinha terra para todo mundo, por que pensar em reforma agrária? E quem não tivesse casa própria ou alugada, que fosse morar nas praias, pois, no fim das contas, brasileiros dispunham de litoral extenso. Um país de clima quente, afinal…!
Apenas os presidentes gaúchos, Médici e Geisel, dedicaram algum esforço à questão habitacional e montaram o programa de financiamento que facilitou, por uma década, o acesso da classe média à moradia própria. Foi o sistema nacional de habitação, por conta do BNH/Banco Nacional de Habitação.
Extinto o BNH, durante a década apelidada “maldita”, os anos 1980, nunca mais dispusemos de um programa facilitando a compra de casa própria para os mais necessitados, 40% ou mais da população brasileira.
CONSTITUIÇÃO CIDADÃ / 1988
Durante o processo de elaboração de uma nova Constituição, anos 1980, muito se debateu a questão da concentração da propriedade. Foi assim que se instituíram, através da Constituição Cidadã (de 1988), as seguintes disposições relativas a tributos:
Art.153 – Compete à União instituir impostos sobre:
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III. O imposto sobre renda e proventos de qualquer natureza],
será informado pelos critérios da generalidade, da universalidade e da progressividade, na forma da lei
[e] não incidirá, nos termos e limites fixados em lei, sobre rendimentos provenientes de aposentadoria e pensão, pagos pela Previdência Social
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IV.O imposto sobre produtos industrializados
será seletivo, em função da essencialidade do produto,
será não-cumulativo…
Não incidirá sobre produtos industrializados destinados ao exterior,
terá reduzido seu impacto sobre a aquisição de bens de capital pelo contribuinte do imposto, na forma da lei
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VI. O imposto sobre propriedade territorial rural / IPTR
Será progressivo e terá suas alíquotas fixadas de forma a desestimular a manutenção de propriedades improdutivas
e não incidirá sobre pequenas glebas rurais…
VII. O imposto sobre grandes fortunas, nos termos de lei complementar
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Art. 156- Compete aos municípios instituir impostos sobre:
I- Propriedade predial e territorial urbana/ IPTU.
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Paragráfo 1°. O IPTU poderá:
I- Ser progressivo, em razão do valor do imóvel
II- Ter alíquotas diferentes, de acordo com a localização e o uso do imóvel
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Nos casos acima discriminados evitei tratar do ICMS, o imposto sobre circulação de mercadorias e prestação de serviços, que foi absolutamente destroçado pela lei Kandir. De forma confusa, maneira um pouco traiçoeira, para que não se soubesse o que estava sendo de fato traçado, ou destroçado. Merece estudo à parte.
Penso que até hoje, passados 40 anos, não foi instituído o imposto sobre grandes fortunas.
Como o ICMS foi logo destroçado pela lei Kandir (governo de Collor de Melo), os estados foram prejudicados.
Nos municípios, o IPTU deixou de ser um imposto sobre a propriedade de pessoas físicas, e passou a incidir sobre locatários, isto é, não proprietários.
Sendo assim, passaram a ser absolutamente desrespeitados os critérios de progressividade, instituídos para fins de combate aos latifundiários urbanos. Da mesma forma, não se deu a importância devida ao combate aos latifundiários rurais.
Pior ainda, em tempos recentes, deste século XXI, tudo indica o aumento da propriedade estrangeira em terras brasileiras. Desse fato poderão surgir problemas sérios em futuro próximo, em tempos de cobiça sobre terras e recursos naturais do Brasil.
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PROBLEMATICA ATUAL – CONCENTRAÇÃO DE RENDA E PROPRIEDADE
Durante os anos de luta política em favor da redemocratização, nossa plataforma política (aquela de 1964, com João Goulart/PTB de Vargas na Presidência da República) foi sendo progressivamente abandonada. Nossa plataforma, isto é, as reivindicações dos meus tempos de juventude, com destaque para a reforma agrária e outras reformas de base devidamente explicitadas no histórico comício de 13 de março de 1964, há exatos 59 anos, essas reformas foram sendo paulatinamente colocadas na lixeira da história. Primeiro foi proibido falar sobre elas. Em seguida foram esquecidas. Enfim, ao final da década de 1970, foram colocadas “em um saco único” — as desigualdades sociais.
Durante a década de 1980, surgiu outra plataforma política, as frentes identitárias. Outras invenções institucionais foram se destacando igualmente, um bom exemplo é representado pelo chamado terceiro setor, nem público nem privado, por onde se infiltraram Organizações não Governamentais (ONG’s) de natureza variada.
Ao mesmo tempo era iniciada uma “desmoralização disfarçada” do Congresso Nacional brasileiro, com ataques à democracia representativa, na verdade uma porta aberta para a “estonteante” democracia participativa.
Enfim, chegamos a uma nova categoria de trabalhador, sem salário fixo e sem direitos trabalhistas, o empreendedor. O próximo passo, aqui e em muitos outros países, já em andamento, é o fim da previdência social. Será o enterro final do grande sonho do século XX, o estado de bem-estar social.
Este é o saldo do capitalismo sob leme norte-americano. Bem diziam franceses e ingleses que o capitalismo de lá não era o mesmo de cá. Figurinos diferentes, diziam eles.
No Brasil, continuamos a falar em desigualdades. Mas como efeito de distintas raças, etnias, religiões etc. Nada a ver com capitalismo e com propriedade. Será possível fazer algum progresso no campo das desigualdades sociais? Pessoalmente, acho difícil. Em matéria de desigualdades sociais apenas enxugamos gelo há décadas. Se alguém tem dúvidas, analise este primeiro projeto de reforma tributária apresentado pelo governo atual, sob liderança de pessoas com credibilidade social, um governo que se condói frente à miserabilidade de grande parte de nosso povo. Mas fala pouco, ou quase nada, este mesmo governo, sobre a invasão de estrangeiros em nosso país, estrangeiros ou binacionais que ampliam capital e poder, com base na propriedade sobre nossos ativos, produtivos ou improdutivos, estratégicos ou não.
Aos amigos e companheiros que disponham de dados atuais sobre concentração de propriedade, sobretudo imobiliária, no Brasil, peço a gentileza de compartilhar comigo tais dados. São essenciais a uma nova política, a uma outra reforma tributária, e a uma nova plataforma de política governamental, voltada para soberania e justiça social.
____ RJ, fevereiro 2023
Ceci Juruá é Economista, mestre em Desenvolvimento e Planejamento Econômico, doutora em Políticas Públicas. Ocupou os cargos de Economista Sênior da Cia do Metropolitano do Rio de Janeiro, Assessora-Chefe da Assessoria de Orçamento da Secretaria de Estado de Transportes do Rio de Janeiro, Diretora Geral do DTC-RJ e Presidente do DETRO-RJ, Diretora de Estudos e Pesquisas do Ministério dos Transportes. Foi professora de Economia da Universidade Católica de Brasília, Conselheira do Corecon-RJ por dois triênios, Vice-presidente da Federação Nacional dos Economistas. Atualmente é membro do Conselho Diretor do Centro Internacional Celso Furtado e do Conselho Consultivo da Confederação Nacional dos Trabalhadores Liberais Universitários Regulamentados (CNTU).