Acabo de enviar uma carta ao presidente Lula, na expectativa de que ele, ou algum dos assessores influentes sobre ele, a leiam, dando atenção ao que considero o maior desafio estratégico para seu governo. Não se trata, no curto prazo, como muitos imaginam, da questão industrial ou da reindustrialização, ou mesmo da questão tecnológica, entre outros setores cujo atraso comprometem nosso desenvolvimento econômico. É que esses são desafios de longo prazo. Falo do desafio alimentar imediato da produção agrícola.
É um tema não muito visitado por economistas, que preferem questões que não estariam à altura de um curso de pós-graduação em macroeconomia numa grande universidade norte-americana, como as políticas fiscal e monetária, que hoje monopolizam o debate econômico no Brasil. Diante dessas questões, os que não conhecem bem a agricultura brasileira acham que tecnologia só existe na indústria e nos serviços, não no meio rural. E também desconhecem nosso fantástico potencial nessa área em termos de capacidade produtiva com grandes recursos tecnológicos.
Entretanto, esse potencial está sob risco do que está acontecendo atualmente, no plano político, com os financiamentos agrícolas. O Plano Safra, sendo o maior fundo que financia a área rural brasileira, com R$ 340,88 bilhões para investir no ciclo junho 2022 a julho de 2023, está com seus financiamentos virtualmente paralisados neste início de ano. Pode ser medo da liberação, o que acontece sempre que há uma mudança de governo e a nova equipe ainda não está treinada nas suas funções. Mas pode, no nosso caso, ser ação de infiltrados no segundo escalão das instituições de crédito oficiais, que não foram substituídos por gente de confiança do novo governo.
A safra que estamos colhendo neste início de ano foi plantada no último semestre do ano passado, ainda no governo Bolsonaro. Os investimentos em comercialização caíram acentuadamente (17%). Não é teoria conspiratória considerar, se há infiltrados no segundo escalão dos bancos públicos, que as restrições de financiamentos agrícolas que se observam neste ano resultam de uma atitude deliberada deles. A desconfiança vem do fato de que a produção atual aumentou por força dos financiamentos do último ano. Mas se os financiamentos do primeiro semestre deste governo sofrem mesmo restrições políticas, a próxima safra estará comprometida a curto prazo, e com ela a estabilidade social do país.
Além disso, o grande potencial agrícola brasileiro, equivalente ao PIB da Argentina (US$ 500 bilhões), está sob risco do que está acontecendo atualmente, no plano social e político, com os financiamentos agrícolas.
O fato é que o presidente Lula, na campanha eleitoral, concentrou suas principais promessas no compromisso de acabar com a fome de 33 milhões de brasileiros e brasileiras, com a insegurança alimentar de 65 milhões e com a redução do custo de vida. São todos objetivos de curto prazo de importância crucial não só para os pobres, mas, quanto ao custo de vida, para toda a sociedade. Se não forem percebidos como realizáveis pela população, num horizonte visível, haverá imensa frustração social, que se refletirá no plano político e na estabilidade do governo.
Lula construiu a estabilidade política que lhe está permitindo começar a governar numa aliança de partidos, e também numa aliança de grupos identitários, sem precedentes no país. Os elos dessas alianças, porém, são frágeis, se não estiverem apoiados numa forte base sustentada por respostas concretas a promessas de campanha eleitoral que alimentaram as expectativas da maioria da base social . É nesse ponto que considero absolutamente estratégica a política agrícola. Ela é o principal sustentáculo de uma política social que não se apoie apenas na oferta de dinheiro para os miseráveis, mas que garanta também o aumento da produção a fim de equilibrar oferta e demanda de bens e serviços populares no mercado, sobretudo os alimentares, para evitar a fome, a inflação e o aumento do custo de vida.
Assim, considero que a fantástica construção de alianças partidárias e sociais arquitetada por Lula seria corroída pela base se suas promessas fundamentais de campanha não forem realizadas logo na prática. Para isso, ele tem que fomentar decisivamente a produção agrícola, dando-lhe a prioridade que merece qualquer objetivo estratégico. Infelizmente, não vejo isso acontecendo. A dispersão do governo entre 37 ministérios, sem clara hegemonia entre eles da área da agricultura, mesmo que circunstancial, enfraquece objetivamente o governo em lugar de fortalecê-lo.
Uma medida intermediária, que estou sugerindo, é que, uma vez tendo sido criados vários ministérios na área agrícola e agrária pelo lado da demanda e da oferta, o presidente determinasse que se estabelecesse uma articulação entre eles para coordenar essas duas áreas simultaneamente, através do planejamento central. Ao mesmo tempo, seria necessário que os bancos públicos expandissem imediatamente e liberassem logo os financiamentos agrícolas, reduzindo a taxa de juros, conforme está sendo reivindicado pelos ministérios individualmente.
O presidente não tem qualquer restrição para seguir uma política desse tipo. Basta mobilizar os bancos públicos, que já têm comprometidas, no Plano Safra, linhas de crédito especiais suficientes para a agricultura. Banco do Brasil e Caixa Econômica Federal, tradicionais financiadores de pequenos e médios agricultores, podem ser reforçados por linhas de crédito específicas do BNDES, conforme foi compromisso de Lula desde a campanha. Além disso, há agências regionais, como o Banco do Nordeste, que podem ser mobilizadas. Enfim, o que realmente falta é que o presidente Lula eleja a questão do aumento da produção agrícola como questão prioritária, pelo menos neste início de governo. Depois, viriam as prioridades de médio e longo prazos.
É que se as turbas enfurecidas de 8 de janeiro fizeram aquele estrago na Praça dos Três Poderes sob o pretexto de enfrentar a situação social, imaginem o que farão com uma crise alimentar de proporções ainda maiores do que a herdada de Jair Bolsonaro. Temos nas ruas 45% de eleitores brasileiros que ainda se consideram bolsonaristas. É gente demais. Essa turba, se achar que a situação social justifica golpes, se levantará de novo. E não haverá aliança político-partidária que os segure.