Dizia Hegel que o principal ensinamento da História é que os homens não aprendem nada com ela.
A julgar pela oposição ao novo governo Lula, Hegel está certo.
Tome-se o exemplo da Venezuela e de suas relações com o Brasil.
Na década de 50 do século passado, a Venezuela já havia se convertido no segundo produtor e no primeiro exportador mundial de petróleo. No entanto, essa notável afluência econômica, obtida numa relação de estreita dependência com os EUA, não se refletia na diminuição de suas graves desigualdades sociais, na diversificação de sua estrutura produtiva e na implantação de um regime democrático estável.
Tal situação mudou parcialmente com a celebração do Pacto de Punto Fijo, em 1958, quando se encerrou o longo período de regimes militares. Mediante tal pacto, alternavam-se no poder a Ação Democrática (AD, de orientação socialdemocrata) e o Comitê de Organização Política Eleitoral Independente (COPEI, de tendência democrata-cristã), gerando um sistema político eleitoral essencialmente bipartidário. Esse sistema assegurou uma estabilidade democrática formal, que contrastava com o resto da América Latina, mas que não propiciava mudanças nas estruturas sociais e econômicas do país.
Esse pacto equivalia, na realidade, à política do “café-com-leite” da nossa República Velha, a qual assegurava a reprodução de um sistema político profundamente oligárquico e excludente.
A estabilidade democrática, ainda que conservadora e formal, a afluência econômica proporcionada pelo petróleo e as relações privilegiadas com os EUA, mesmo que eventualmente contraditórias e tensas, fizeram com que Venezuela se isolasse parcialmente do restante da América do Sul.
Na década de 60, esse relativo isolamento foi exacerbado pela aplicação, no plano das relações externas venezuelanas, da chamada Doutrina Betancourt, criada pelo presidente Rómulo Betancourt. De acordo com essa doutrina, a Venezuela deveria restringir o estabelecimento ou a manutenção de relações diplomáticas apenas a países que tivessem governos eleitos democraticamente conforme regras constitucionais estáveis.
Criada para agradar aos EUA, pois justificava o isolamento diplomático de Cuba, a doutrina Betancourt complicou, porém, as relações com vários vizinhos da Venezuela aliados de Washington.
Assim, a Venezuela suspendeu suas relações diplomáticas com o Brasil, após o golpe de 1964.
Os venezuelanos da época realmente acreditaram que Washington levava a sério a “questão democrática”. Mas não tardou para que o Departamento de Estado passasse a pressionar Caracas a rever suas posições com as ditaduras aliadas dos EUA na região.
Ademais, a suspensão dessas relações levou a um acúmulo de problemas na agenda bilateral, que tinham de ser contornados de alguma forma. Pragmaticamente, a Venezuela abriu, em 1965, um consulado no Rio de Janeiro, para que os assuntos comerciais e econômicos pudessem ser continuados.
Um ano depois, em 1966, a Venezuela normalizou suas relações bilaterais com o Brasil.
A aplicação estrita da Doutrina Betancourt revelou-se, dessa maneira, contraproducente, tanto para os interesses dos EUA quanto para os da Venezuela, e esse país passou a flexibilizar a sua aplicação, já na segunda metade da década de 1960.
Passadas muitas décadas, o governo Bolsonaro, pressionado pelos EUA, rompeu relações com a Venezuela, alegando também a falta de democracia para isolar um regime avesso aos interesses de Washington.
Foi a nossa Doutrina Betancourt. A história se repetiu como farsa.
Como a original, fracassou miseravelmente. Perdemos terreno na Venezuela e perdemos protagonismo regional. Um erro estratégico crasso.
O nosso relacionamento com um governo fictício, o do títere Juan Guaidó, atrasou nossas relações bilaterais em décadas e impediu a solução de problemas comuns.
O Brasil não pode ignorar a Venezuela e seu único governo real, o de Nicolás Maduro. Afinal, trata-se de um vizinho muito importante, com o qual temos uma fronteira de 2.200 km, na estratégica região amazônica.
Ademais, a Venezuela tem uma economia complementar à do Brasil, o que torna imenso nosso potencial de intercâmbio econômico e comercial. De fato, a Venezuela, rica em petróleo, mas com agricultura e indústria pouco desenvolvidas, necessita importar muito do que consome.
O Brasil já soube explorar bem essa complementariedade.
Entre 2003 e 2008, as exportações brasileiras para a Venezuela passaram de US$ 608 milhões para 5,15 bilhões. Em 2009, o Brasil teve com a Venezuela seu maior saldo comercial: US$ 4,6 bilhões dólares, 2,5 vezes superior ao obtido com os EUA (US$ 1,8 bilhão). Além da quantidade, é preciso ressaltar a qualidade desse comércio. Cerca de 72% das nossas exportações para a Venezuela eram de produtos industrializados, com alto valor agregado e elevado potencial de geração de empregos.
A crise venezuelana, muito agravada e prolongada pelas draconianas sanções unilaterais impostas por EUA e aliados, fez esse intercâmbio extremamente positivo para o Brasil minguar consideravelmente. Além disso, a suspensão das relações bilaterais com Caracas provocou perdas consideráveis para o Brasil no mercado venezuelano, as quais estão sendo preenchidas por outros países, como a China, por exemplo.
Em 2021, a China exportou US$ 2,19 bilhões para a Venezuela, mais do dobro que o Brasil conseguiu exportar para lá (US$ 1,08 bilhão).
Mas o imenso potencial para o intercâmbio econômico-comercial, dado por fatores estruturais, permanece. Destaque-se ademais, que a normalização das nossas relações diplomáticas com a Venezuela permitirá que estados do Norte amazônico, como Roraima, possam contar com a barata energia elétrica venezuelana. Atualmente, Roraima tem de pagar por uma energia termoelétrica 6 vezes mais cara que a de origem venezuelana. Não bastasse, a normalização dessas relações propiciará as condições para que a Venezuela pague sua dívida com o Brasil.
Mesmo assim, mal o ex-chanceler Celso Amorim botou os pés em Caracas para normalizar nossas estratégicas relações bilaterais com a Venezuela, surgiram as críticas e as exigências para que o Brasil intervenha nos assuntos internos daquele país. A mesma exigência é feita em relação a outros países, como a Nicarágua, por exemplo.
Ora como já esclareci em artigo anterior (Cuidados ao se Falar em Democracia), o Brasil evita condenações formais a países específicos, que normalmente servem apenas para a defesa de interesses geopolíticos, que nada têm a ver com a promoção efetiva da democracia e com a proteção aos direitos humanos fundamentais.
Na realidade, a posição histórica da diplomacia brasileira tem sido a de evitar as condenações oportunistas, hipócritas e inúteis a certos países que não são do agrado dos EUA e aliados. Assim, o Brasil normalmente vota contrariamente às resoluções que visam condenar e isolar nações como Cuba, por exemplo. Tal posição não foi inventada ou introduzida pelos governos Lula e Dilma, como parecem acreditar alguns. É uma posição já tradicional do Estado brasileiro.
O Brasil, contudo, não se furtará, sempre que solicitado, a contribuir para estabelecer negociações e diálogos entre forças em conflito, com o objetivo de estabelecer a paz. Nosso país já fez isso, com êxito, na Venezuela. Líderes moderados da oposição venezuelana, como Henrique Capriles, chegaram a elogiar bastante o decisivo papel do Brasil, nas negociações entre governo e oposição na Venezuela.
Agora mesmo, Celso Amorim fez questão de se encontrar com os principais grupos da oposição venezuelana entre eles o que chamam de G-4, que representa a oposição no diálogo patrocinado pela Noruega, que tem sede no México.
Esse é o caminho correto: o das negociações, o do diálogo.
Já o descaminho do isolamento diplomático e das sanções só conduz ao sofrimento das populações, especialmente das mais pobres. Não contribui em nada para fortalecer a democracia.
A Doutrina Betancourt fracassou. Não a ressuscitem.