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Os riscos da democracia

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José Carlos de Assis
José Carlos de Assis
Economista, doutor em Engenharia de Produção pela UFRJ, professor de Economia Internacional na Universidade Estadual da Paraíba e autor de mais de 20 livros sobre economia política.

 

 

            Se eu pudesse dar um conselho aos dirigentes dos movimentos sociais brasileiros, recomendaria menos ênfase nas demandas identitárias, e mais foco nos objetivos de natureza econômica. A democracia política, que bem ou mal já temos, garante direitos básicos aos grupos identitários, principalmente de mulheres, negros, homossexuais, etnias, sindicalistas. Contudo, quem garante a democracia contra os ataques da extrema direita, que são uma ameaça também à liberdade dos grupos identitários?

            Entendo que a única forma de fortalecer a democracia é lhe dar um alicerce sólido em termos de garantias sociais reais, acima de simples idealismo. Uma sociedade de miseráveis e de famintos não tem nenhuma razão para amar a democracia. E a economia é a forma de dar ao povo garantias sociais reais, atendendo demandas básicas de sobrevivência. Este, portanto, deveria ser o foco dos movimentos sociais: fortalecer a economia como um objetivo comum, para fortalecer a democracia política.

            É por isso que são tão importantes os debates que se realizam, hoje, sobre questões econômicas na sociedade. Contudo, apenas uma minoria participa deles. A parte mais rica e informada da sociedade domina as discussões sobre questões econômicas vitais, como política monetária (juros) e política fiscal (orçamento público). É uma tragédia. É que parte bem maior da sociedade, justamente os mais pobres e mais necessitados de políticas sociais a seu favor, não participa desses debates, por falta de educação ou informação, ou porque é manipulada pela grande imprensa.

            O fato é que quanto mais diferenciada é uma sociedade, mais riscos ela enfrenta de instabilidade. Isso decorre de uma contradição básica. Na medida em que os grupos sociais se afirmam e se diferenciam uns dos outros, os objetivos específicos deles arriscam-se a prevalecer em detrimento dos interesses comuns. Nesse caso, a democracia deve ser defendida como uma espécie de mínimo denominador comum da sociedade, como garantia de liberdade para todos. Contudo, como disse acima, não há verdadeira democracia política sem uma economia também democrática.

            O fortalecimento da economia e de sua democratização depende do sistema político. Mas aí nos defrontamos com outra contradição. O sistema político é conduzido, no nosso caso concreto, pela classe dominante, que tem esmagadora maioria no Congresso e que, portanto, tem poderes para impor limites e condicionamentos a um presidente da República, mesmo quando ele é eleito pela maioria do povo. É justamente nesse ponto que estão os limites do presidente Lula para cumprir compromissos sociais de campanha.

            Além disso, em razão de sua hegemonia no Congresso, a classe dominante conservadora estende seus domínios não só à legislatura presente, mas às legislaturas futuras, mediante emendas constitucionais. Estas, para serem derrubadas, exigem quoruns qualificados. É o que vem acontecendo no Brasil desde a Constituição de 88, quando se inscreveram nela, pela primeira vez, travas para o exercício orçamentário. De fato, uma delas estabeleceu a vedação de aplicar sobras do orçamento em execução em quaisquer investimentos, exceto no pagamento da dívida pública. Isso é completamente estúpido.

            Nada, porém, se compara ao que aconteceu nos governos Temer e Bolsonaro, no campo das políticas fiscal e monetária. Ficamos sujeitos de forma absoluta à ditadura do fiscalismo e do monetarismo. O objetivo do governo não é mais atender às prioridades sociais, de investimentos de infraestrutura e de desenvolvimento sustentável, isto é, ao que deveriam ser os objetivos comuns da sociedade, mas ao atendimento dos principais interesses da classe dominante, especialmente a financeira. Esta se beneficia de privilégios fiscais e dos juros reais mais altos do mundo, direta e indiretamente.

            Tudo isso está acontecendo enquanto a maioria da sociedade, desviada por interesses identitários e de grupos, praticamente ignora os temas principais da Economia Política, que determinam em último caso o seu destino. Na verdade, ela sequer sabe exatamente do que tratam as questões econômicas. Fica mergulhada em seu pequeno mundo de interesses específicos, deixando que os interesses da classe dominante passe como um trator por cima dele.

            Por isso entendo que, enquanto o risco de volta ao poder da extrema direita não for afastado definitivamente, seria importante que seja estabelecida uma espécie de moratória das demandas específicas de grupos identitários, de forma a que elas sejam concentradas na busca de objetivos concretos no campo econômico. Só assim uma maioria parlamentar progressista, conquistada por um povo focado nas questões que influem na realidade social concreta, poderia assegurar estabilidade à democracia.

            No contexto das atuais relações internacionais, a dispersão de interesses de indivíduos e grupos sociais num sistema social extremamente fragmentado coloca outro risco. Fica muito fácil para potências intervencionistas, especialmente para a norte-americana e as europeias, usar esses interesses para efeito de suas guerras híbridas e seus lawfares. Foi o que aconteceu com o Brasil no golpe de Dilma Roussef, em 2016, nesse caso a pretexto de combater a corrupção, assim como com vários países africanos e asiáticos, com o pretexto de atacar o autoritarismo.

            À parte o fato de que nenhum país tem mandato para se meter na política de outras nações sob qualquer pretexto, não é fácil impedir uma nova forma de intervencionismo atual que se aproveita da fragmentação das sociedades. Acaso os milhões de cidadãos e cidadãs brasileiros que vivem nas periferias urbanas e no meio rural são capazes de focar a política nacional ao ponto de distinguir acusação de corrupção interna com imposição dos interesses próprios das nações hegemônicas? E isso num contexto em que a grande mídia está claramente dominada pelos interesses externos?

Essa situação tem que ser encarada seriamente neste primeiro momento em que, depois da Segunda Guerra, movimentos fascistas e nazistas renascem em várias partes do mundo, e com crescente vigor no Brasil. Na minha opinião, esses movimentos de extrema direita não podem ser derrotados apenas pela retórica. É preciso ação. E ação com vistas essencialmente aos interesses comuns, não a interesses de grupos específicos.

            Para ser bem objetivo, acredito que os movimentos sociais, na atual situação, deveriam ter como seu principal foco acabar com a fome de 33 milhões de brasileiros e enfrentar pra valer a questão da insuficiência alimentar no Brasil. Foram as principais promessas de campanha de Lula. O instrumento para isso é um programa público-privado de fomento à agricultura familiar, dentro do Plano Safra. Com isso, o governo contribuiria para afastar o risco de instabilidade social e política na sociedade fragmentada, defendendo a democracia não apenas com palavras, mas objetivamente.

            No plano ideológico, é preciso nos preparar para a luta do século, em tempos de internet. Às entidades progressistas da Sociedade Civil compete articular tanto um plano de informação unificado, quando um plano de contrainformação, para reagir à máquina extremamente sofisticada da extrema direita. A informação independente,  depurada de manipulações, é essencial para que se foque nas propostas fundamentais para a economia. E a contrainformação filtraria as fake news e lawfares que se disseminam na sociedade, com o propósito de desestabilizá-la em favor dos privilegiados.

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