Dona Maria é brasileira, filha, irmã, mãe e avó. Hoje, possui 58 anos, está aposentada e doente. Quando jovem, e com muito esforço, Dona Maria conseguiu estudar o suficiente para se tornar Técnica em Enfermagem. Com mais esforço ainda, ingressou no serviço público federal, mediante concurso público, no longínquo ano de 1989, quando passou a trabalhar num hospital universitário.
A aposentadoria foi alcançada após sobressaltos e adiamentos, decorrentes de cada reforma previdenciária implementada. O que consolava a Dona Maria era o processo judicial em que pleiteava o reajuste de 28,86%, devido a partir de janeiro de 1993. Ajuizado naquele mesmo ano, o processo tramitou por todas as instâncias possíveis e imagináveis, entravado pelos sucessivos recursos da outra parte, fundamentados ou não, que visavam modificar as decisões, ou simplesmente retardá-las.
Assim, ano após ano a Dona Maria esperou, esperou e esperou até que o seu direito ao reajuste em questão fosse reconhecido judicialmente em definitivo. Durante os 30 anos em que esperou o Poder Judiciário decidir a questão, Dona Maria teve um filho, que criou sozinha como tantas outras mães, e um neto. Com o filho desempregado desde a pandemia da Covid-19 e a nora exercendo atividade modesta, Dona Maria passou a arcar com o sustento de toda a sua família, situação na qual o endividamento foi inevitável…
No momento em que o direito da Dona Maria foi finalmente reconhecido pelo Poder Judiciário e todos os anos de espera seriam recompensados através do recebimento dos valores atrasados, uma nova surpresa: o Governo Federal decidiu que as dívidas como a da Dona Maria estavam “ocupando” muito espaço no seu orçamento, impondo limites a gastos necessários para a obtenção da votação pretendida nas eleições presidenciais, de modo que a despesa deveria ser limitada através de um critério aleatório qualquer.
E foi assim que, da noite para o dia, o Governo Federal decidiu que não bastava ter atuado em contrariedade com as suas próprias leis para negar o direito da Dona Maria, iria além para “dever, não negar e pagar quando puder”. À Dona Maria, se quisesse receber o que lhe é devido, sobraria aguardar a disponibilidade orçamentária indefinidamente ou, então, “acordar” em renunciar – no mínimo – quarenta por cento (!!!) do seu crédito.
Embora Dona Maria seja uma personagem fictícia para ilustrar este pequeno recorte de uma realidade que é muito mais dura e abrangente, o que o Governo Federal – seja Bolsonaro, seja Lula –, o impiedoso “Deus Mercado” e os grandes veículos de imprensa parecem esquecer com absoluta tranquilidade é que ela poderia ser (e é!) a sua, a minha, a nossa avó, mãe, irmã, esposa ou mesmo filha.
A prova deste esquecimento é que, nas matérias jornalísticas publicadas na última semana, sobre o calote nos precatórios federais, em diversos órgãos de imprensa, não foram feitas quaisquer referências às Donas Marias credoras. Discutiu-se – e muito – os interesses da União Federal, os humores do Deus Mercado, mas sequer foi mencionado o que é prioritário e fundamental: os direitos dos credores e as dificuldades que lhes resultam deste calote proposital. É indiscutível o fato de que autoridades, os oráculos do Deus Mercado e os jornalistas especializados em economia consideram os credores irrelevantes…
E é pelas muitas Donas Marias que se segue lutando e cobrando, com ênfase, do Governo Lula a proposição de uma solução rápida e efetiva para a questão dos precatórios. Afinal, ninguém esqueceu que os partidos que sustentaram a candidatura do Presidente Lula firmaram posição contra as emendas constitucionais que instituíram o calote dos precatórios. A questão, agora, resume-se a uma simples palavra: coerência.
José Luis Wagner
Renata Borella Venturini
Advogados sócios do escritório Wagner Advogados Associados