“Blood rack, barbed wire
Politicians funeral pyre
Innocents raped with napalm fire
(Pete Sinfield)
The system broken, and the school’s closed, the prisons open
We ain’t got nothin’ to lose, ma’fucka, we rollin’
Huh? Ma’fucka, we rollin’
(Ye)
Desde que a Guerra começou tenho mantido umas longas conversas com meu grande amigo Domício. Hábito antigo, conversas de horas sobre temas relacionados a história e guerra que acontecem há quatro décadas. Domício é um expert no assunto, tanto que recentemente foi criada a Cátedra Joség Bonifácio de Andrada e Silva no CBAE da UFRJ, da qual ele é titular. O tema da cátedra é “Políticas de Segurança: Prolegômenos para o Réquiem de um Mundo Unipolar”. Aos interessados em explorar o assunto (bem como diversos outros temas bastante interessantes), o Colégio Brasileiro de Altos Estudos da UFRJ é um daqueles lugares com intelectuais formidáveis explorando coisas para lá de interessantes. (Parabéns, Ana Célia!)
Mas voltando às conversas, trago aqui duas ideias que me vieram à tona durante conversas com Domício. Uma recente, outra sistematização de uma percepção que nem me lembro de quando vem. Vamos a esta primeiro.
Contenho Multidões, literalmente
Nada mais paradigmaticamente americano que Walt Whitman, um poeta gay, marombeiro e brilhante do século XIX. E como na “canção de mim mesmo” do Whitman, os EUA se contradizem, os EUA contêm multidões. Posso contar um segredo? Os EUA são apenas uma versão mais acentuada deste problema, acentuada porque praticamente não subordinada por um agente externo.
Há um mito fundador do campo de relações internacionais tal como conhecemos que é o de que o acordo de Vestfália tem de fato a ver com estados modernos. Na sua gênese, ele é um pacto de sobrevivência de uma Europa esgotada por décadas de guerra. E num certo sentido, um pacto de sobrevivência dos príncipes da miríade de estados em que a Europa estava fracionada. A ideia de que por trás de um país há um príncipe, portador de uma vontade, persiste até hoje. Ela já foi bastante válida, bastante explicativa pelo menos do mundo até a revolução francesa. Sob o prisma de uma análise de fundo materialista, a ideia de uma vontade construída em cima de um Interesse Nacional ainda é fé de muitos. Há quem construa mitos baseados numa visão idealista do mundo, e muito do que é discursado pelo/sobre os EUA em sua fase unipolar vai nessa linha. Há quem faça um blend dos dois.
Acho que ambos os lados estão errados. A verdade não está no meio, a verdade está dentro. Os EUA não são um Estado Nacional sendo conduzido segundo seus Interesses (ou uma cabala secreta como no mundo literal das teorias de conspiração): são um caos produzido por incontáveis atores e facções, como pregado e profetizado por Madison, um de seus pais fundadores. As diferentes burocracias do aparato de estado buscam maximizar a tinta de suas canetas e suas portas-giratórias. Os políticos, sua recondução e seus guarda-chuvas dourados para o retorno à vida privada. Os think tanks, as ONGs – bem, esses são formas não-reconhecidas-como de aparato governamental. A isso se acrescente as corporações e o FIRE que concretamente as controla. Há um ou outro bilionário pelo meio do caminho, há iceberg do deep state, mas, ao fim e ao cabo, toda ação externa americana basicamente gira em cima de uma quase soma zero do controle político dos EUA. No topo disso eventualmente há um presidente da república. Não hoje, onde o astuto(e corrupto) senador de Delaware e vice-presidente não existe mais, mas uma consciência demenciada em seu lugar, alguém que mal consegue seguir um script no teleprompter.
Qual seja: a política externa americana é caótica, contraditória. Uma versão esquizo de soberania, como o Domício resumiu meu argumento, do ponto de vista de quem atenta para a coisa. Isto é percebido? Talvez as pessoas devessem ter seguido com mais afinco o perplexo trabalho de Mearsheimer e Walt sobre o lobby israelense, desvendando outras relações complexas e contraditórias. Mas avançar sobre esses temas dentro dos establishments americanos é suicídio, por vezes literalmente.
Não pense leitora que, deixada por si só, a política externa de qualquer país, como o nosso, por exemplo, se moveria por outra coisa que não política interna. Seja em salivação da base, como a insanidade do governo Jair com os países socialistas da América Latina, mesmo causando prejuízo ao país; seja no atendimento dos interesses econômicos de sua base agro no ano da eleição, negociando com a Rússia para garantir fertilizantes, mesmo que interessado na OCDE e não nos BRICS. Só que, no nosso caso, a insanidade americana conforma parte de nossas ações. E dos europeus também. E da OCDE como um todo.
E em função disso, temos o segundo ponto.
Vencer e vencer
Um hábito que nós desenvolvemos nos 80, quando tínhamos tempo para jogar, foi eventualmente discutir como faríamos um wargame daquela situação. Neste sentido, Domício me perguntou tem pra mais de mês qual a condição de vitória que eu daria para um jogo desse conflito.
Duas. Distintas.
Ao jogador russo, um conjunto de condições clauzewitzeanas:
– Vitória simples: o controle das oblasts de maioria russa, incluindo Odessa. O restante da Ucrânia desmilitarizado (Costa Rica ou finlandização).
– Vitória: as condições acima e a remoção do aparato “defensivo” que possa servir para um first strike nuclear na Romênia e na Polônia.
– Vitória total: as condições acima e o fim da OTAN. Pontos adicionais com um Nuremberg sobre alguns dos cidadãos europeus que operaram a guerra.
Ao jogador americano (sim, porque não existe jogador ucraniano, ou mesmo jogador europeu), o confuso conjunto de regras que creio simularia sua ação. Chamemos o jogador americano de Joe para abreviar:
– Pontos de heroísmo são somados a cada ação militar positiva da Ucrânia que puder ser manchete nos veículos do Partido da Imprensa Global. Por exemplo, suponha que a contraofensiva ucraniana retomou um campo de várzea numa área que fora tomada antes pelos russos. Isso será primeira página nos órgãos do PIG. Baixas na operação não importam, fracassos noutras também não. Raciocine como uma operação de lavagem de dinheiro em que você declara que ganhou 3600 reais jogando 100 na roleta no 22. Os 3500 que você jogou nos outros números, ninguém sabe. Esses pontos de heroísmo justificam desembolsos extraorçamentários para ajuda à Ucrânia, gastos militares e outras gracinhas do gênero no âmbito americano. Ka-ching!
– Se Joe conseguir que até o final de 2024 ainda exista Ucrânia – e que esta tenha feito ações heroicas o bastante de forma que Joe possa ter continuado enviando dinheiro e equipamento, e empenhando dotações extra orçamentárias nesta guerra – quem sabe ele ganhou a eleição americana. Isso é a vitória. Joe, no caso, é alguém que não seja chamado Trump. Pode até ser um republicano.
– Mas Joe de fato não está sozinho no mundo. Portanto, há uma segunda etapa importante: a eleição alemã um ano depois, final de 2025. Se algum partido que existia antes do neoliberalismo ganhar, Vitória. Se o AfD (Alternativa para a Alemanha) for necessário para uma coalizão governante, macule sua vitória. Na impensável hipótese de AfD e Die Linke resolverem brincar de Cinco Estrelas e Liga, como na Itália em 2018, fazendo uma coalizão contra o establishment neoliberal da Comunidade Europeia, aí Joe deixou de ganhar.
Perguntará a leitora: e regime change na Rússia, que parece ter sido (e ser ainda) o objetivo dos neocons que controlam o teleprompter? Menos provável no momento do que algum tipo de colapso que leve à suspensão das eleições americanas de 2024. Acima de qualquer dessas hipóteses, como bem observado pelo ex-presidente Trump, paira uma ameaça maior que a do aquecimento global: o aquecimento nuclear.
A loucura não parou no ato terrorista de destruir a represa. A dita contraofensiva ucraniana de fato começou tem poucos dias. Mas ela tem sido um fracasso retumbante. Não sei até que ponto isto é parte da equação. Não sei o quanto as histórias que rolam de que Polônia, por exemplo, mandaria “forças de proteção” para a Ucrânia, se concretizarão. Mas semana que vem há um mega exercício militar da OTAN. Vamos torcer para que nenhum ato adicional de estupidez aconteça.