Manoel Bonfim (1868-1932), médico sergipano, qualificado pelo gênio Darcy Ribeiro como “o pensador mais original da América Latina”, escreveu em julho de 1928: “O Ocidente, a que pertencemos, depois de ter sido, por milênios, o condutor da ascensão humana, parece não mais saber conduzir-se. Perspectiva de um mundo a esboroar-se, onde não é a crise franca de desorganização, é o manifesto declínio” (“Adsequência”, em O Brasil Nação Realidade da Soberania Brasileira (1931), Topbooks Editora e Distribuidora de Livros, RJ, 1996, 2ª edição).
Ascensões e quedas de impérios, de civilizações, são conhecidas nas histórias do Ocidente e do Oriente. Como superam estes momentos de crise constituem a razão da continuidade ou do naufrágio destas sociedades.
O Brasil passou da colônia formal para a pseudo-independência sob os “Braganças” e destes para a república plutocrata, sem grandes mudanças no poder efetivo sobre os destinos da Nação: marasmo conservador. Economia de exportação de produtos primários, educação para demonstrar erudição em salões de quem possuía palacetes, em país de escravos, físicos e mentais, de revoltados incapacitados, colonizados espiritualmente.
Foram nas Forças Armadas, que se consideraram responsáveis pela operacionalização da mudança do Império para República, que, não vendo alteração por mais de 20 anos, promoveram revoltas, marchas, explícitos desejos de mudança. Obtiveram, sob a liderança civil de Getúlio Dornelles Vargas, em 1930, o governo do País. Logo a reafirmação deste desejo de mudança se torna necessário e se proclamam as Constituições de 1934 e 1937.
Durante 15 anos, o Brasil construiu as bases para se tornar Independente, nação soberana e cidadã. A história denominou o período de 50 anos, que vai de 1930 a 1980, de Era Vargas; justa homenagem ao presidente que, por 19 anos, projetou, organizou e estabeleceu as instituições basilares para edificação do Brasil Independente.
O mundo que Manoel Bonfim via “esboroar-se”, se desfazer, era um mundo que existia desde 1760, durara, grosso modo, 170 anos, quase dois séculos.
Este que é o contemporâneo da Era Vargas, o mundo da industrialização, da mecânica aplicada, de sociedade mais instruída, de maior participação popular, sem escravidões, especialmente as formais, só durará meio século. Ao longo desses “anos gloriosos”, como denominou a Associação Francesa de Economia Política para o período que vai do fim da II Grande Guerra às “crises” do petróleo, haverá a disputa encoberta da industrialização (capitalista e socialista) com as finanças, estas para reconquista do poder.
Mais breve ainda será o poder das finanças, se o tomarmos seu início com as desregulações dos anos 1980 e o esfacelamento observado nesta década de 2020: quarenta anos.
Os 50 gloriosos
Não houve interesse das finanças em se revelar às claras no ataque à industrialização. Forjou-se, pois colocaria a indústria nos campos opostos de combate: a luta ideológica do capitalismo com o socialismo, ambos industriais.
Enquanto se desenvolvia essa disputa, as finanças evoluíam com os recursos da nova ciência, a informática, que ia muito além da robotização industrial, para incluir a pedagogia, a formação da compreensão e a manipulação das mentes pelas comunicações.
Também recrutavam os movimentos preservacionistas, que, desde a revolução industrial com o carvão mineral, clamavam por formas menos poluidoras e mais saudáveis de geração de energia. Esses movimentos, com o auxílio dos capitais e das tecnologias da informação, criaram mundos de pavor e extinção humana com o petróleo, principal energia da indústria e da sociedade industrial.
A organização da sociedade, para fazer a transição do sistema pré-industrial para o industrial, precisou de instituições até então inexistentes, não apenas para treinar mão de obra, mas também para orientar o consumo e desenvolver tecnologias de produção e uso.
Esse movimento abriu a sociedade para um tipo de participação que se reconheceria como democrática, voltando os olhos, erroneamente, para um tempo que nunca existira.
E os cidadãos, antes apenas servos e servis, passaram a ter direitos que apenas os poderosos usufruíam e a “mínima classe média”, operadora dos recursos inovadores.
Os 50 gloriosos consolidaram e aumentaram esses direitos: o ensino laico, universal e gratuito; a saúde preventiva e curativa; a mobilidade urbana; a habitação; o saneamento básico; o descanso remunerado; um salário mínimo capaz de suportar o custo de uma existência saudável e digna para toda a família; e o contínuo desenvolvimento gerando emprego, renda e assistência social e pessoal.
Havia, no entanto, uma condição que dificultava a universalização dessas conquistas: as colonizações econômica, ideológica e política.
As nações precisavam ter os mesmos direitos e os recursos naturais eram desigualmente distribuídos, principalmente a energia, fundamental para a vida em qualquer circunstância, e mais ainda na sociedade industrial.
Criaram-se instituições internacionais no sentido de harmonizar os conflitantes interesses de matéria-prima barata para a produção do bem industrial e a vida digna para o país ou região fornecedora dessa matéria-prima, dos produtores e geradores de energia e dos consumidores dessa energia, dos inovadores e usuários das inovações. Porém, tudo sob o manto do mundo bipolar ideológico.
Cada ano dos 50 gloriosos foi um ano de guerra em todas as direções, com armas mortais e com agressões ferinas e poucas vezes honestas. As finanças incentivavam as guerras e se mostravam como solução pacífica, com individualismo exacerbado, ápice da liberdade. O homem voltava a ser espécie individual do liberalismo, deixava de ser social do mundo do consumo de massa.
E assim atingimos as desregulações dos anos 1980 e a nova “bíblia” em 1989, o decálogo “Consenso de Washington”.
Os 40 anos do retrocesso
O “fim da história” foi como as finanças proclamaram sua vitória. Não mais conflitos, um mundo globalizado sob o poder do mercado, das disputas homem a homem, sem olhar pelas diferenças e pelas necessidades, uma igualdade que nenhum comunista aventaria.
É curioso observar o retrocesso filosófico do neoliberalismo. Em 1796, o pensador alemão Johann Gottlieb Fichte escreveu: “se um povo não tem qualquer forma de governação (estabelecida entre o Estado e seus cidadãos), estará completamente destituído de direitos” e poderá ser vítima de imposições dos vizinhos, de terceiros (J. G. Fichte, “Fundamento do Direito Natural segundo os Princípios da Doutrina da Ciência”, Fundação Calouste Gulbenkian, Lisboa, 2012).
A ideia de Estado foi substituída pela de “mercado”.
Foi ainda pior. Sem freios e controles, as finanças incorporaram todas as receitas ilícitas em seu sistema global.
Até 1980, existiam dez paraísos fiscais: cinco na Europa, três no Caribe e dois na Ásia e Oceania. Em 2019, eram 84: em territórios da Commonwealth Britânica, 32; em territórios estadunidenses, 10, sendo quatro estados estadunidenses; em territórios holandeses, quatro; em territórios franceses, dois; e 36 em Estados formalmente independentes. Nestes últimos, encontram-se nove no Oriente Médio e outros tantos na Ásia e Oceania (18, ao todo); sete na Europa; seis na América Central e do Sul e cinco na África.
Como é evidente, os capitais marginais, das drogas, dos contrabandos, crimes de tráfico humano, assassinatos, extorsões, chantagens e muita, muita corrupção passaram a constituir verdadeira atividade financeira, entrando e saindo de mercados, inflando e derrubando bolsas de valores e de mercadorias.
Como analisar a economia e a sociedade que tem sua gestão, a direção criminosa? O Estado deixa de representar uma sociedade determinada para atender às finanças apátridas “globalizadas”.
O processo político denominado “redemocratização” no Brasil ocorre neste instante de empoderamento das finanças, das desregulações, do “Consenso de Washington”. E os dirigentes foram impostos pelas falácias e crises criadas pelas comunicações de massa, sob comando das finanças. Introduz-se a novidade da comunicação virtual. Rapidamente o virtual toma o lugar do real, o efetivo, o material não dá a mesma sensação de prazer do ilusório, do imaterial.
Podem-se imaginar as consequências para a vida em comunidade! E para a formação dos Estados Nacionais. Aliás, a palavra “nacional” sai dos vocabulários, tudo é global, universal!
Vivencia-se a formação de um novo e inédito sistema transnacional de poder, capitaneado pelas altas finanças, no qual desaparecem, simultaneamente, tanto a esfera privada consagrada pelo liberalismo quanto a esfera pública consagrada pelo socialismo. Em seu lugar, acentua-se a massificação da sociedade, comandada por invisíveis tecnocracias vinculadas a corporações anônimas.
A lógica de mercado expandiu-se a ponto de transmutar a propriedade privada em sociedade acionária e sugar os indivíduos para o coletivismo manipulatório dos aplicativos, ao mesmo tempo em que submeteu aos imperativos de lucro financeiro as mais básicas funcionalidades públicas, não deixando qualquer espaço, público ou privado, fora de controle tecnocrático-corporativo. Os governos, cada vez mais, tornam-se extensões dessa estrutura imune ao escrutínio popular, tendo eles mesmos suas funções redesenhadas para se tornarem não agentes do bem comum, mas homólogos estatais da tecnocracia corporativa.
O retrocesso é imenso, só não é percebido porque nem mais se trabalha um ao lado do outro. Nem se vive em conjunto na mesma residência. Cada um vive com seu celular.
A prioridade dos governos não é o bem-estar dos cidadãos, o desenvolvimento social, cultural, econômico, político da Nação. É o pagamento dos juros, o que transforma a prioridade de todos em investir em dívidas, não no progresso. Vejam que decadência civilizacional as finanças provocaram.
E, com objetivos tão anti-humanos, as agressões pessoais, os crimes contra a vida, a ausência de vacinas contra pandemias, guerras por procuração passam a constituir eventos que não escandalizam, nem merecem manchetes na imprensa. E esta deixa de ser informativa para ser doutrinária. Nas entrevistas para as últimas eleições, não se inquiriam os candidatos quais problemas da comunidade ou nacionais eles se propunham resolver, mas se garantiriam os pagamentos dos juros e da própria dívida.
Ninguém, que não seja do heroico grupo da Auditoria Cidadã da Dívida, questiona a existência, a formação e o objetivo das dívidas. Parecem surgir como divindades, do espaço sideral!
É imperiosa a revisão da estrutura organizacional do Estado, das suas leis, dos processos de elaboração e de muito mais, depois que este “Veneno Cósmico” passou pela Terra, como intitulado no romance de Conan Doyle, o genial criador de Sherlock Holmes. Agora o veneno é a ideologia neoliberal.
E voltamos à Questão Nacional. O Brasil é imenso e muito rico. Nenhum país se tornou forte e respeitado sem que iniciasse seu desenvolvimento voltado para sua realidade. Nos Estados Unidos da América (EUA), foi o “destino manifesto” o que uniu a Nação para ser grande. Mais recentemente, o surto de desenvolvimento pelo qual passa a República Popular da China (China) é o “socialismo com características chinesas”.
O Brasil formou um pensamento próprio, a partir de diversas matrizes teóricas e da formação de seu povo: é o nacional trabalhismo, sintetizado nas mensagens de Getúlio Vargas, estudado e divulgado por adeptos deste pensamento, como Darcy Ribeiro.
Retomemos nossos estudos, nosso instrumental analítico e nossas proposições para o nacional trabalhismo. Teremos assim, para o debate indispensável, para a refundação civilizacional brasileira, uma contribuição com raízes históricas, mas calcada na desconfortável realidade na qual vivemos.
Felipe Maruf Quintas é doutor em ciência política.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado.