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1808, a Corte portuguesa chega à Bahia

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Ceci Vieira Juruá
Ceci Vieira Juruá
Economista, mestre em desenvolvimento e planejamento econômico, doutora em políticas públicas. Foi servidora pública e professora do Departamento de Economia na Faculdade Católica de Brasilia. Atualmente é pesquisadora independente em temas relativos a Finanças Públicas e História Econômica. Integra o Conselho Diretor do Centro Internacional Celso Furtado e o Conselho Consultivo da CNTU-Confederação Nacional de Trabalhadores profissionais liberais Universitários.

2 de julho em Salvador da Bahia[1]

Ceci Juruá[2]

— 1808, a Corte portuguesa chega à Bahia

Em 22 de outubro de 1807, D. João aceitou negociar com a Inglaterra uma Convenção Secreta, acatando a possibilidade da vinda da Corte portuguesa para o Brasil, caso se concretizasse a invasão de Portugal pelos exércitos de Napoleão. Contudo, D. João evitou comprometer-se com a entrega de licença para que cidadãos ingleses ocupassem alguma área litorânea no Brasil, perto da bacia do Prata, para fins de construção de um porto. Pouco depois (em 27 de outubro), França e Espanha assinaram o Tratado de Fontainebleau, retalhando o território de Portugal entre aliados; do lado francês houve a promessa de futuro reconhecimento do Rei da Espanha como Imperador das Duas Américas….

Assim, através de tratados mantidos em segredo entre as três principais potências europeias -França/Espanha e Inglaterra- e Portugal, um aliado sob dependência da Inglaterra desde 1661, foi dada a partida para eventos futuros que trariam o fim do status colonial do Brasil.

D. João, futuro D. João VI, sua corte e familiares embarcaram na esquadra inglesa que bloqueava a barra do Tejo, em 27 de novembro de 1807. Dois dias depois, partiu dali “a esquadra de sete naus, cinco fragatas, dois brigues e duas charruas, além de vários navios mercantes, levando cerca de 8.000 a 15.000 pessoas… , zarparam para o Brasil, pouco antes que as tropas de Junot (…) alcançassem e invadissem Lisboa”. Aqui chegando, seguiram-se: a abertura dos portos do Brasil aos países amigos, o Alvará real autorizando início da industrialização, o Tratado de Livre Comércio Brasil/Inglaterra, a criação do Banco do Brasil, a adoção dos primeiros impostos… E, enfim, um novo status para o Brasil, em dezembro de 1815, quando se adotou nova organização: o REINO UNIDO DE PORTUGAL, BRASIL E ALGARVES.

Quando chegaram os portugueses à Bahia, em 1808, esta província já fora palco de movimento insurrecional importante, visto por alguns historiadores como o início do processo de emancipação política do Brasil. Aquele movimento, a Conspiração dos Alfaiates, foi “sem dúvida mais importante do que a de 1789”, afirma LAMB).

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— 1549, Tomé de Souza organiza o governo-geral / Bahia

Tomé de Sousa fixou-se na Bahia, em busca do Eldorado, há 476 anos (LAMB, p. 121 e seguintes). Designado por Tomé de Souza, governador daquelas terras, como um agregado encarregado da vigilância do litoral baiano, Garcia d’ Ávila recebeu sesmaria de grande extensão, tratou de organizar sua tropa e procurou um local para servir de ancoradouro e para a construção de um porto. Encontrou-o a dois quilômetros ao norte da foz do Rio Pojuca, em costa protegida por cadeia de arrecifes de coral. Ali ergueu, então, a sua base militar e os aposentos residenciais.

Naquele local, que Garcia d´Ávila denominou Torre de São Pedro de Rates, foi iniciada uma criação de gado com animais originários das ilhas de Cabo Verde. Tal atividade foi de grande sucesso pois, na época, vaqueiros não recebiam soldo, sua recompensa consistia em bezerros e terra. Em três anos o gado de Garcia d´Avila somou 200 cabeças, o que lhe permitiu solicitar outras terras em regime de sesmaria. Naquele local, da Torre, ocorreu em 1808 o primeiro contacto da Esquadra Real que transportou a Família Real Portuguesa para o Brasil.
(https://www.bahiaja.com.br/cultura/noticia/2011/05/21/a-torre-singela-de-sao-pedro-de-rates-por-christovao-de-avila,36572,0.html. )

Em 1557, “Garcia d´Avila já era senhor de fato e, em parte, de direito, de quase toda a região que se estendia de Itapoã para além de Tatuapara, onde antes Caramuru predominara.” (LAMB, p. 126). Para este autor, Garcia d’ Ávila foi um herdeiro de Tomé de Souza, proprietário de muitas terras na Bahia e no Espírito Santo. Quando ali chegou Pedro Álvares Cabral, a área era habitada por indígenas, cuja população foi estimada entre 2,5 e 5 milhões por Jorge Couto (cf. A CONSTRUÇÃO DO BRASIL, Lisboa: Ed. Cosmos, 1997).

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— A Casa da Torre e o morgado dos Garcia d´Ávila

Na região onde se instalou o primeiro Garcia d´Ávila, combates entre índios e portugueses eram permanentes. “Por isto, em carta régia de 20 de março de 1570, o rei D. Sebastião… proibiu seu cativeiro, salvo daqueles capturados em “guerra justa” determinação que nunca foi de fato cumprida (LAMB, p.132).

Garcia d´Ávila teve algumas mulheres. Uma de suas filhas, Isabel, fruto de união com uma índia tupinambá, casou-se com Diogo Dias, neto de Caramuru. Dessa união nasceu o neto e herdeiro de Garcia d´ Ávila instituído como morgado da Casa da Torre de Garcia d´Ávila.

A Casa da Torre, embrião desse morgado sacramentado em cartório quando morreu o primeiro Garcia d´Ávila (fato ocorrido em 1609), era uma espécie de mansão senhorial de estilo manuelino, erguida em 1551 para funcionar como sede dos domínios da família. Suas ruinas ainda existem, na Praia do Forte. Segundo a Wikipedia, “dali partiram as primeiras bandeiras sertanistas que introduziram a pecuária no Nordeste do Brasil. Francisco Dias d´Ávila II (1646-1694), bisneto de Garcia d´Ávila, foi quem dominou os índios Cariris e levou as fronteiras do latifúndio familiar até Pernambuco.”

Foi o terceiro morgado, Garcia de Ávila Pereira, quem mandou construir o Forte de Tatuapara, em substituição ao Forte da Praia. Ali funcionou um regimento responsável pela defesa da costa no trecho entre o rio Real e o rio Vermelho. O último descendente dos Garcia d´Ávila, Garcia de Ávila Pereira de Aragão, faleceu em 1805. A partir dessa data, o morgadio da Torre passou para os Pires de Carvalho e Albuquerque, heróis da resistência que expulsou de Salvador as tropas comandadas por Madeira de Melo, garantindo a adesão da província da Bahia ao novo Império governado por D. Pedro I.

“As propriedades dos Ávila se localizavam, da Bahia ao Maranhão, dentro de uma área de cerca de 800 mil quilômetros quadrados, equivalente a 1/10 do território brasileiro de hoje, o que equivale às áreas, somadas, de Portugal, Espanha, Holanda, Itália e Suíça.” (Wikipedia, www.casadatorre.org.br. Consultado em 15-03-2016 e 20-06-2023).

A extensão das propriedades dos d´Ávila, bem como suas formas de expansão e dominação, foi vista por historiadores brasileiros como estrutura social similar à dos feudos europeus. Daí o entendimento de que, também no Brasil, tivemos um passado feudal extemporâneo ao Feudalismo europeu, em certas áreas de nosso território.

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— 1821/Bahia, Resistência heróica e adesão a D. Pedro

Segundo LAMB, após a derrota de Napoleão, surgiram na América do Sul, e especialmente no Brasil, competidores do monopólio comercial atribuído à Inglaterra. Em Portugal, por outro lado, havia grande descontentamento com as perdas financeiras sofridas pelo comércio local após a saída da Família Real.

Os anos que antecederam a partida de D. João VI, do Brasil para Portugal, foram anos politicamente difíceis nos dois países. Lá e cá, era grande a insatisfação. Reclamava-se, sobretudo, quanto ao poder de fato desfrutado por súditos de Sua Majestade a Rainha Vitória, mas também queixavam-se da perda de receitas em beneficio do local onde se instalara a Corte Portuguesa. No Brasil, desde 1817, Pernambuco e Bahia enfrentaram clima de insatisfação crescente, separatista e pró-liberal, apoiados pela maçonaria e pelos Estados Unidos, dizia-se. Com a Revolução constitucionalista de 1820 em Portugal, cresceram os pedidos de volta à Europa da Corte de D. João VI e a adoção de novo status jurídico para as províncias do Brasil.

Derrotados em Pernambuco os revolucionários, a sublevação chegou à Bahia, “onde muitos moradores procediam do norte de Portugal” (LAMB, p.428). A notícia da Insurreição baiana e do juramento que ali se fizera de apoio à Constituição elaborada em Lisboa, chegou ao Rio de Janeiro, em 17 de fevereiro de 1821. Durante alguns meses, discutiu-se quem ficaria no Brasil e quem retornaria a Portugal, se o pai ou o filho. Mas também ficou pendente a questão dos laços jurídicos de Portugal e do Brasil. Um só império? Ou a separação?

Após o Dia do Fico (6-01-1822), a nova junta provisória eleita na Bahia, presidida por Francisco Vicente Viana, foi integrada, entre outros nomes, por um membro do morgadio da Casa da Torre: Francisco Elesbão Pires de Carvalho e Albuquerque.

À medida que os combates se desenrolavam, foi ficando cada vez mais evidente a participação dos senhores da Casa da Torre na resistência à dominação de Portugal, bem como sua aliança com o Imperador Pedro I. Já na devassa realizada sobre a Conspiração dos Alfaiates, de 1798, alguns nomes vinculados ao morgadio da Casa da Torre se haviam destacado como ligados à Conspiração. Dentre estes, os nomes de José Pires de Carvalho e Albuquerque, Secretário de Estado e Guerra do Brasil, e José Inácio Siqueira Bulcão, ambos sobrinhos do Senhor da Torre de Garcia d´Avila. Dai a afirmação de LAMB:

“Ao que tudo indicou, a conjuração de 1798 na Bahia configurou uma tentativa da nobreza da terra, visando mobilizar os militares e a plebe, de modo que, respaldada e legitimada por uma insurgência popular, pudesse conquistar a soberania e a autodeterminação… aquela aristocracia rural, encarnada fundamentalmente pelos senhores de engenho, passara a representar uma comunidade de interesses e constituía então a classe social que, a desenvolver a Nationalbevufstsein (consciência nacional) mais rapidamente do que as outras camadas da população, tinha condições de assumir a organização do estado, cujo território se conformara no curso da colonização.” (LAMB, p. 642).

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— 1822, homenagem ao Barão da Torre de Garcia d´Ávila

Em minha tese de doutorado sobre a importância do Estado brasileiro na construção de estradas de ferro pioneiras, destaquei a homenagem prestada por D. Pedro I ao Coronel do Regimento de Milícias e Marinha da Torre, Antonio Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque, ofertando-lhe o título de Barão da Torre de Garcia d´Ávila, durante a cerimônia de sua coroação como Imperador do Império do Brasil (01.12.1822). Na ocasião, o então titulado Barão da Torre de Garcia d´Ávila assim respondeu ao Imperador :

“Nada me resta, Senhor, que de novo possa oferecer à Vossa Majestade, porque honra, vida e fazenda há muito dediquei à defesa da Pátria.” (Ceci Juruá. Tese de doutorado, UERJ/2012 : Estado e construção ferroviária: quinze anos decisivos para a economia brasileira, 1852/1867)

Este gesto de D. Pedro I designando ali o primeiro nobre do período imperial não foi bem recebido por figuras importantes. Foi ainda mal visto por historiadores respeitados como Jose Honório Rodrigues que, percebe-se, não dispunha de informações como aquelas coletadas mais tarde por LAMB. Alguns anos depois, em 12 de outubro de 1826, o coronel Santinho foi elevado a Visconde, e com honras de Grandeza a 18 de julho de 1841, durante a coroação de D. Pedro II.

A homenagem foi muito justa. Tudo indica que sem a adesão da província da Bahia à regência de D. Pedro, ficaria difícil, muito difícil, manter a unidade do território nacional. Mas, já nos primeiros meses de 1822 despontava na província da Bahia um cenário de guerra civil, pois um brigadeiro português, Inácio Luis Madeira de Melo, fora escolhido e nomeado governador das armas daquela província, gesto entendido como sinal das intenções das cortes de Portugal, isto é, a recolonização de províncias do Brasil.

“Sabiam todos que ali, liderados pelo brigadeiro Madeira de Melo, portugueses organizavam uma praça de guerra a fim de resistir à independência. O próprio brigadeiro já comunicara ao rei de Portugal que a cidade da Bahia “pela sua situação geográfica, pelo seu comércio, população e outras particularidades” era um daqueles portos que convinha “conservar…” (LAMB, p. 460).

Em 19 de fevereiro, enfrentaram-se violentamente, em Salvador, brasileiros e portugueses. Enfrentamento que resultou na invasão do Convento de N. Sra da Lapa, onde soldados das forças brasileiras se haviam refugiado. Em perseguição aos brasileiros, soldados das tropa portuguesa invadiram o Convento, e foi então que um soldado da tropa de Madeira de Melo “traspassou a abadessa, soror Joana Angélica, com um golpe de baioneta…” (LAMB, p.441-2).

Na linha da resistência portuguesa, chegou a Salvador, em fins de março, o navio S. José Americano trazendo, em reforço, tropas que haviam sido expulsas do Rio de Janeiro. A partir daí, as ruas de Salvador passaram a ser patrulhadas por tropas de Portugal, ficando a Câmara de Vereadores impedida de reunir-se.

Pelos dados apresentados na obra O FEUDO, justifica-se a convicção de LAMB “que foi a partir do Recôncavo, onde os senhores de engenho dominavam, que se firmou e cresceu a resistência às tropas portuguesas(…)”. Por outro lado, fica igualmente claro que coube às milícias da Casa da Torre de Garcia d´Avila o papel decisivo no cerco de Salvador (p. 636), [pois]

“o coronel Santinho, Joaquim Pires de Carvalho e Albuquerque , foi o primeiro baiano que efetivamente mobilizou um batalhão de nacionais, para os quais arregimentou, entre os seus soldados, índios seminus, armados de arco e flechas, com experiência de emboscadas, e em 18 de julho acampou em Pirajá, bloqueando a estrada das Boiadas por onde o gado, que abastecia Salvador, descia do sertão até do Piauí, para a Feira do Capuame, e de lá desencadeou as operações de guerrilha contra as forças portuguesas.” (p.636-7).

A obra O FEUDO, que utilizei como fonte principal, quase exclusiva, para este texto com o qual quero, simplesmente, prestar homenagem à grandiosidade da terra e da gente da Bahia, deveria ser de leitura obrigatória em nossas escolas. Ele é preciso nas informações, apresenta as fontes utilizadas, enaltece o Brasil e os brasileiros de todas as cores, religiões e etnias, mostra a importância da unidade do povo de todas as classes, frente às ambições estrangeiras de usufruto em proveito próprio daquilo que nos pertence – o território, com seus distintos climas e um solo rico em água, florestas e minerais.

Enfim, a data de 2 de julho é motivo de festa e de orgulho, para os baianos e para os brasileiros, pois foi a data em que o general Madeira de Melo abandonou Salvador, acompanhado de suas tropas, resultando da vitória do povo brasileiro.

Nas comemorações do primeiro centenário (1922), o bairro de Ipanema (RJ) homenageou, merecidamente, os baianos que passaram à História do Brasil como heróis da Independência, dando seu nome a ruas do bairro. Surgiram assim as ruas Barão da Torre, Visconde de Pirajá, Barão de Jaguaripe, Garcia d´Ávila, Joana Angélica, Maria Quitéria (Brasil Gerson/História das ruas do Rio).

Entre os que se opuseram à continuidade da dominação de Portugal sobre terras brasileiras, na Bahia, destacaram-se os senhores de engenho do interior do Recôncavo Baiano, os grandes proprietários agrícolas, pois eram os que “compunham a única classe em condições de deter o poder e construir a nação (…) qualquer que fosse a forma pela qual a separação de Portugal se processasse, conforme Celso Furtado salientou (FEB/1961)” (LAMB, p.461).

Mais adiante, e praticamente concluindo, lemos:

“Os descendentes da Casa da Torre que detinham na Bahia, a maior força política e militar entre os proprietários de terra e senhores de engenho, empenharam-se na sustentação da monarquia e da unidade territorial do Brasil. Entre eles, o visconde de Pirajá foi o que mais se destacou… em 1837 o visconde de Pirajá combateu ainda a insurreição separatista, a célebre Sabinada… Tal como em 1822 acontecera, não houvessem os senhores de engenho e outros proprietários da terra, desde o início, tomado as primeiras medidas (…) difícil, ou mesmo impossível seria, para a regência, ao mesmo tempo que empregava todos os esforços para tentar destruir a República Riograndense, sufocar o levante separatista deflagrado naquela cidade da Bahia. (…)” (LAMB, p. 642-643).

“Os senhores de engenho e outros proprietários da terra, no entanto, possuíam a consciência da nação (natio), da sua integridade territorial, e não defendessem eles a realeza que a unificava, a implantação da república na Bahia implicaria a fragmentação do Brasil, uma vez que o governo imperial não teria aí condições de impedir a secessão do Rio Grande do Sul e outras províncias seguir-lhe-iam o exemplo.” (LAMB, p. 643).

 

__ Rio de Janeiro, 23 de junho de 2023

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