“Políticos brasileiros
Não pensem que vocês nos enganam
Porque nosso povo não é besta”
(Braulio Tavares / Ivanildo Vilanova)
Fosse Voltaire vivo, Zema seria personagem de uma comédia. Um personagem talvez caracterizado por uma fé inabalável na incel-ência do Mercado, pela sinceridade com que fala em público algumas coisas que… francamente, um político não fala coisas dessas de público! Talvez porque ele seja uma daquelas aberrações que períodos de mudança abrupta na ordem política produzem e, portanto, sem habilidades aprendidas para operar a política de fato. Talvez pelo típico destempero de quem, como patrão há tempo, desconhece medida no ato de falar (como Donald Trump, segundo Taleb).
Quando eu vi uma inundação de mensagens falando do discurso separatista de Zema, pensei logo numa piada que fazíamos nos 80: a linha Elba Ramalho. Diz a lenda que numa das apresentações dela nos 80, após cantar Nordeste Independente (Imagine o Brasil), um empresário em SP levantou-se na plateia, disse para uma constrangida Elba que topava e que assinava um cheque ali mesmo para custear a iniciativa. A música, que abre com um discurso, aparece como última faixa de um álbum lançado em novembro de 84. Nessa mesma época, um ex-governador de São Paulo e o ex-governador de Minas disputavam a eleição presidencial indireta. O primeiro tendo por vice o então presidente da Câmara, que um dia fora governador do Ceará; o outro, um senador, ex-governador do Maranhão. Curioso como a política e a Federação eram tão relevantes e visíveis naquele momento em que se traçava o caminho a tomar depois da Ditadura. Curioso que o ex-governador do Maranhão acabou sendo o presidente, e este é um daqueles detalhes para entender uma época cínica, sem alternativas e com poucas esperanças, uma época em que analisar o mundo através de piadas perversas como essa era possível. Os oitenta.
Qual a linha que separava o subdesenvolvimento industrializado do Sul Maravilha do subdesenvolvimento raiz do qual o Nordeste era o estereótipo? Esse o cerne da piada. Lembro que um cientista político mineiro, numa digressão a respeito, sugeriu que a linha ficaria uns dez quilômetros acima de Montes Claros. Lembre-se, querida leitora, que este era um momento de efervescente discussão legislativa, quando uma das questões mais complexas da Constituinte foi subir a representação de São Paulo de 60 para 80 deputados (proporcionalmente, ela deveria ser bem maior que isso – e eu acho que os constituintes foram muito sábios em deixar um limite como deixaram). Mas se há um lugar que seria cortado por essa linha, Minas seria certamente esse lugar.
E aí, atrasado, pois eu tento consumir o mínimo de PIG, corri para entender qual a bobagem que o Zema falou. Afinal, prontamente o lacrador-geral da república respondeu contra esse ato de traição, Eduardo Leite tentou mais uma malfadada terceira via, havia uma explicação muito sensata do Reinaldo Azevedo que, na minha opinião… está errada.
Zema é governador de Minas e, partindo da premissa que o Partido do EB não seja burro de lançar Tarcísio a outra coisa que não à reeleição, é o grande nome para ser o candidato da direita. Alguém com toda a sinceridade burra de Bolsonaro, mas sem o trogloditismo. Portanto, há que se tratar suas declarações como declarações políticas e não com o macartismo de ocasião que (tomou a política americana e, por tabela) está tomando a política brasileira. Políticos, em mandato ou não, não têm que ficar alinhados com governo. Quem tem que ficar é a máquina pública. Gente graúda do Banco, ocupando então importantes cargos comissionados, que desfilou a favor do golpe contra a presidente Dilma, esses são o problema. Zema é oposição, tão oposição quanto o PT em quem votei em 82, que dois anos depois expulsou seu único deputado eleito pelo Rio pois este desobedeceu ao partido e votou em Tancredo contra Maluf.
Qual o problema de Zema, então? O problema do que Zema fala é que ele traz a nu a insuficiência eleitoral do entorno de Lula. O presidente Lula em si, este é imbatível. Mas a sua coalizão de primeiro turno tem alguns problemas. O grosso dos postos executivos mais significativos da República não estão nessa coalizão. Dos cinco maiores estados, só Bahia. Das cinco maiores cidades… bem, Fortaleza tem um prefeito do Partido Onde Ciro Está; Belo Horizonte, o suplente do cara que, apoiado por Lula, foi derrotado por Zema, um cara cujo currículo é basicamente tucano. Tirando o voto do Nordeste, o país teria sucumbido ao incumbente Bolsonaro. Esta é a realidade, a dura realidade.
Essas canetas importantes estão, na maioria, nas mãos da direita. Claro que uma direita muito mais diversa: desde o libertário Zema, antipetista até a alma, até o governador Castro, típico perfil de Centrão que adere a qualquer governo civilizado que conversar com carinho e obras. Não há essa unidade política que Zema e a imprensa de esquerda querem ver, mas há uma articulação política significativa que pode acontecer.
Uma situação: governo Dilma, uma discussão no Banco de assuntos regionais do Sul, um monte de gente de fora, gente de boa formação e cargos relevantes na máquina pública e na universidade. Um cara de Santa Catarina reclama que o crescimento do estado estava abaixo da média nacional. Ora, se há por objetivo reduzir desigualdades regionais, é mais do que óbvio que Santa Catarina deveria crescer abaixo da média nacional. O figurão em questão, creio eu, não entendia direito o que médias querem dizer.
Mas o eleitorado também não entende direito. E quando o eleitorado vê que outros lugares estão recebendo benefícios que seu estado não tem, o eleitorado começa a se entender não mais conforme seus interesses de ideologia/classe, mas com seus interesses concretos de geografia/coletividade. Quando você mantém elementos de uma política essencialmente neoliberal, acrescentando uma série de medidas não universais, focalizadas, para resolver problemas de desigualdade, você acaba minando com essas mesmas políticas de redução de desigualdade. Há limites do que você possa trabalhar sentimentos de culpa e piedade num momento em que o bolso das pessoas está estagnado.
O questionamento posto pelo Zema, portanto, é algo que o governo Lula tem que prestar atenção. Fazer com que o crescimento nas regiões mais ricas do país fique entregue aos sabores do Mercado é garantir que essas regiões, na qual Lula perdeu, se tornem bastiões dessas novas forças políticas de direita e centro que se rearticulam a partir da implosão do PSDB, que era o não tão grande outro do PT na política nacional desde a eleição de FHC. Um exemplo do que pode ser um descaso desse tipo foi, por exemplo, fazer-se uma política de expansão da indústria naval no pré-sal que, ao invés de reativar em grande estilo a base instalada no Rio, promoveu uma diversificação regional, o que levou o processo a ser mais lento, mais caro, e ajudou a manter uma trajetória de decadência do terceiro estado mais populoso do país. Isso é uma decisão, tem um custo político, e vir com o papinho de chamar separatistas aos outros, acreditem, não vai funcionar com o eleitorado dos estados abandonados.
Sob Dino, que se mete em tudo, com sua notável inteligência e seu objetivo oportunista de se tornar um player na esfera nacional, uma das hecatombes continuadas deste país segue firme e forte. A polícia de São Paulo continua matando no atacado, a polícia do Rio matando crianças aleatórias, a polícia da Bahia mostrando que um governo continuado do PT não resolve assim essas coisas. O momento em que ele zoa com o Zema é o momento em que essas questões, das quais ele deveria estar tratando, são substituídas por mais um confortável fla-flu entre direita e governo. Se ele quer essas questões escamoteadas pela imprensa, foi muito bem-sucedido.
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