Arqueólogos identificam, na China, 3 mil anos antes da Era Cristã, uma civilização refinada, com sistema político bem elaborado, correspondendo à dinastia, um tanto mítica, dos Xia. Seguiu-se, até o século 8 a.C., o que se denomina a “cultura arcaica” dos Shang e dos Zhou, dando a ideia de que o fluxo civilizacional não é de contínuo aperfeiçoamento, mas sequências de avanços e recuos.
Por volta do século 3 d.C., um autor romano anônimo deixou gravada esta mensagem:
Oriente e ocidente construíram seus primeiros passos como distintas civilizações pelas invasões das civilizações vizinhas, quase sempre qualificadas como bárbaras, tendo resultados, como os percebemos, bastante diferentes.
Os territórios da China e da Europa, excluindo a Rússia, ocupam, respectivamente, 9.596.961 km² e 6.630.000 km². Ou seja, uma Argentina separa a Europa (sem a Rússia) da China no espaço territorial. Quanto à população, a Europa (também excluída a Rússia) possui (dados da Organização das Nações Unidas (ONU) para 2023) 605 milhões de habitantes, enquanto a China é povoada por 1.425 milhões de pessoas.
No entanto, a maior desigualdade é a civilizacional. Europa e China caminharam para lados opostos. A Europa submeteu-se ao Consenso de Washington (1989) e retrocede desde o final do séulo 20. A República Popular da China encontrou seu socialismo com características chinesas e, a partir de então, transformou-se no país mais avançado deste século 21.
As grandes guerras da primeira metade do século 20 deram poder às civilizações industriais, quer no campo capitalista, quer no socialista, parecendo fazer surgir universalmente um novo conceito de sociedade.
No entanto, a sociedade fundiária financeira, que era preponderante desde o final da Idade Média até o início do século 20, inconformada com sua derrota, iniciou a reconquista do poder, utilizando os recursos tecnológicos que então despontavam, fortemente calcados na materialidade do tratamento da informação, que se denominou cibernética – comunicação e controle nos animais e máquinas – e nas emergentes fontes primárias de energia – o petróleo, desde o final do século 19, e a termonuclear, criada na 2ª Grande Guerra.
Reflexões civilizacionais
A longevidade encontrada na frase citada no início deste artigo, do romano anônimo do período de Diocleciano, pode estar na argúcia com que percebeu que a “natureza dos lugares” era a origem das diferenças que moldavam e fortaleciam Roma. E concluímos que a destruiu ao se homogeneizar numa ideologia: o cristianismo, que superou a repartição do Império e se impôs a ambas as metades.
As civilizações crescem, se desenvolvem, na medida em que processam e incorporam diversidades. O grande malefício trazido pelo Consenso de Washington foi o “fim da História”, a globalização ideológica do neoliberalismo.
E esta ideologia levará à decadência do ocidente e à resposta nacionalista encontrada pela China para o seu desenvolvimento.
Essas reflexões poderiam se espalhar por diversos nichos de pensamento e diversas ciências, mas iremos nos restringir à comunicação e à energia, que o Consenso de Washington buscou dominar e unificar.
A comunicação vai além da transmissão de informações; ela cria mecanismos de raciocínio que denominamos “pedagogia colonial”. O mesmo fato, materialmente apresentado em foto, filme, dissertação ou qualquer modo de transmissão, pode ser entendido de maneiras diferentes, conforme a base de raciocínio que encontre para sua tradução. Essa construção é mais profunda do que a ensinada no processo educacional. Ela se forma nas convivências sociais, nos alimentos e nos afetos, nas relações impostas ou induzidas, nos comportamentos desejados, esperados e permitidos. Assim, o pobre apoia quem o mantém pobre, o escravo apoia aquele que o escraviza e todos, ao final, se acomodam na incapacidade da autonomia.
A energia impulsiona a vida e as sociedades. O principal indicador de uma nação, de uma civilização, é a quantidade de energia que aplica; a energia per capita não carrega as deformações do produto interno bruto, que pode ser inflado pela especulação, pela exportação de produtos primários, por gerar renda para fora e não para o país.
A reconquista do poder pelas finanças teve a compreensão de que só teria sucesso se dominasse as fontes de energia. E desencadeou, sem que houvesse carência ou abundância de energia, as falsas crises dos anos 1970 (crises do petróleo de 1973 e 1978), imputando aos países árabes suas responsabilidades. Estariam já seus planejadores e estrategistas prenunciando a farsa do terrorismo islâmico?
O ocidente é a Europa colonizadora e sua colônia que se tornou potência industrial-militar, os Estados Unidos da América (EUA). O oriente é a milenar civilização chinesa, que soube evitar a sujeição ideológica religiosa e, mesmo colonizada, manteve o idioma e a identidade. As Américas, excluindo os EUA, a África, todo o restante da Ásia e a Oceania colocaram-se no balcão das colônias, perderam seus deuses, suas origens, suas individualidades.
Decadência ocidental
A Rússia, excluída territorialmente e em termos de população, não poderia ser afastada das disputas civilizacionais. Primeiro, por ser o maior país do mundo, participando tanto do ocidente quanto do oriente. Porém, mais relevante ainda, é ter desenvolvido, a partir da revolução de 1917, sua própria tecnologia e modelo de industrialização, ou seja, pela contingência histórica de ter sido o primeiro país socialista, foi obrigada a caminhar com seus próprios pés. E sem poder falhar!
A Europa, fragilizada por 30 anos de submissão ao Consenso de Washington, cometeu o erro monstruoso de excluir a Rússia dos parceiros econômicos, de fornecedor de energia e dos diálogos com a União Europeia, impondo-lhe as sanções desejadas pelos EUA, na guerra que estes travam, sob o manto da Otan, contra a Rússia no território da Ucrânia.
Recente fórum, realizado na França, mostrou um tipo de arrependimento com as reestatizações na sensível área da energia. Porém, ainda que importante, é apenas um vetor. É indispensável retomar a soberania, a capacidade decisória com foco no interesse e na cultura nacional. E teriam as empobrecidas administrações da Alemanha, da França e do Reino Unido, em meio a greves, manifestações e enfrentamentos com a população, capacidade de se contrapor aos poderosos “gestores de ativos”, donos de todas as economias nacionais?
O futuro do ocidente é sombrio. O rico/pobre Níger tira o francês do idioma oficial do país, cessa a exportação de urânio para a França e esta antiga potência colonial europeia pede ajuda aos EUA. E os autoritários “donos do mundo” só não estão piores porque ainda possuem recursos naturais. Porém, não se atrevem a enfrentar, frente a frente, nem a euroasiática Federação Russa, nem a oriental China, que se prontificaram a apoiar o Níger.
O mundo unipolar propugnado pelo Consenso de Washington se esfacela. Coloca em dúvida o real valor de seus ativos, nas mãos de gestores nos 84 paraísos fiscais, ou seja, não sujeitos ao domínio das leis e acordos internacionais.
Como reaver? Em que fórum discutir? E ressurge o princípio da territorialidade, do poder local, e a China assume a liderança com sua multipolaridade, respeitando as autonomias locais, a começar por sua própria estrutura de Estado Nacional, com as Assembleias Populares Provinciais.
A questão da energia foi desfigurada pelo ocidente, ao colocar o petróleo, que alavancou a industrialização, abriu mercado de trabalho e tornou diversos produtos acessíveis a muito mais pessoas do que em qualquer outro momento histórico, como prejudicial à humanidade. Lembra a crítica que o economista Frank W. Tausig (1859-1940) fez ao controle de preços pelo governo estadunidense, na 1ª Grande Guerra: “Em geral oportunista, buscando soluções caso a caso e hesitante em torno de princípios, fossem quais fossem” (Quarterly Journal of Economics, v. 33, n. 2, 1919).
O resultado é que a energia tornou-se muito mais cara do que aquela produzida pelas fontes fósseis e hídricas, com menor potência e alcance e, consequentemente, menos eficiente. Agregando a estas deficiências, as sanções e bloqueios a grandes produtores e países de grandes reservas de petróleo, como a Rússia e a Venezuela, o ocidente nem tem como se manter, o que dirá se desenvolver. Quem arriscaria, então, colocar seu dinheiro e seus recursos no futuro do ocidente?
Futuro no oriente
Pelos 800 anos antes de Cristo, com o declínio da realeza Zhou, colocou-se a dúvida sobre a própria divindade, que permitia tal desprestígio e desagregação do trono e do soberano. Era necessária uma nova compreensão que a sinóloga e historiadora francesa Anne Cheng denominou “a aposta de Confúcio no homem”, isto é, a crença na materialidade da vida, no caminho trilhado pelo homem, que transformou a China no maior país sem religião do mundo (52,2% da população, ao qual se adiciona o culto aos antepassados, por 21,9%, totalizando 74,1%).
Confúcio é a latinização de Mestre Kong (Kong Fu Zi), para quem duas palavras sintetizavam toda vida. O tao, o caminho que se constrói, a soma das verdades; e o te, a virtude, o significado moral da existência. O céu é a soma das virtudes, e o Estado, construção do homem, a sociedade organizada, a conclusão do caminho.
O que tem a energia e o ambiente com essa materialidade? Primeiro, a virtude. Não se trata de fraudar a questão energética como fazem as ONGs ambientais e “cientistas” pagos pelas finanças apátridas. As fontes são escolhidas pela eficácia, ou seja, pela eficiência e custo da energia. E, igualmente, pelo desenvolvimento tecnológico que minimize os danos ambientais; para isso, o Estado, nunca o mercado, pode fazer o planejamento para tempos adequados. Não é milagre nem mágica; é o uso da ciência para o benefício do homem, o que tem impulsionado o desenvolvimento científico da China.
O oriente vem buscando a integração, respeitando as especificidades locais, e essa integração é construtora dos laços que promovem o ganho de todos, pela proximidade que as vias de diversas ordens, digitais, aéreas, marítimas e terrestres, favorecem para trocas e colaborações. Os exemplos estão na Iniciativa do Cinturão e Rota (Nova Rota da Seda), envolvendo 147 países (quase a totalidade da ONU); na Organização para Cooperação de Xangai (OCX), com nove membros, nove parceiros de diálogo, três observadores e três organizações e um país convidados; na Conferência sobre Medidas de Interação e Construção de Confiança na Ásia (CMICCA), fórum intergovernamental, para melhorar a cooperação no sentido de promover a paz, segurança e estabilidade na Ásia, com 27 estados-membros, oito estados observadores e 19 estados não membros participantes, além de cinco organizações observadoras; e na Cooperação Econômica Ásia-Pacífico (CEAP), 21 países-membros localizados no Círculo do Pacífico, para promover o livre-comércio e a cooperação econômica em toda a região da Ásia-Pacífico, criada em 1989 como forma de responder ao individualismo ou à submissão ao mais forte, consequência do neoliberalismo entre as nações.
A imprensa ocidental busca combater a emergência oriental, representada pelo protagonismo chinês. Não acompanha a mudança de foco que o 20º Congresso Nacional do Partido Comunista da China, realizado em Pequim, entre 16 e 22 de outubro de 2022, com mais de 2.300 delegados, representando quase 100 milhões de membros, aprovou.
Isso foi brilhantemente sintetizado pelo think tank MacroPolo: “Nanômetros no lugar do PIB”. Ou seja, a China passa a crescer pelo domínio e desenvolvimento tecnológico, ao invés do manipulável e civilizacionalmente irrelevante produto interno bruto.
Pedro Augusto Pinho é administrador aposentado e atual presidente da Aepet (Associação dos Engenheiros da Petrobrás).
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