Entre as várias referências dos anos 1980, o filme De volta para o futuro é quase uma unanimidade por agradar cinéfilos e o público em geral. Nele, um adolescente encontra uma máquina do tempo e, ao utilizá-la de maneira irresponsável, acaba se apagando da história. O candidato liberal Javier Milei, definitivamente um nostálgico, dadas as costeletas, parece querer reprisar a experiência do filme. Para isso sugere ajuste fiscal, privatizações e estabilização de preços a qualquer custo. Tratam-se de propostas ainda mais liberais que as de Paulo Guedes. Até a radical dolarização econômica está incluída!
Aparentemente, essas ideias surgem de uma caracterização imprecisa da moeda. Pela teoria convencional, a moeda é uma mercadoria que em determinado momento da história assume o papel de equivalente geral do sistema econômico. A partir desta primeira, assume outras funções como unidade de conta e reserva de valor. Tempos depois é substituída pela moeda estatal, carregando consigo essas funções. Nesse momento, a administração da moeda pelo Estado pode ser elemento de forte instabilidade econômica e manejá-la com cautela é a questão econômica mais importante de um governo.
Segundo a Teoria Monetária Moderna, a imprecisão da definição vigente está na ideia de que a moeda não surge como equivalente geral porque pode ser trocada por qualquer mercadoria, mas por ser estatal. Em um sistema econômico suficientemente desenvolvido, qualquer mercadoria pode ser trocada por qualquer outra, dadas as condições de mercado. O fato que difere a moeda de outras mercadorias é a possibilidade que pague impostos. Trata-se da única dívida que nenhuma outra mercadoria pode pagar, a não ser em situações muito particulares.
Pela visão convencional da moeda, ajuste fiscal é apresentado como o elemento fundamental da política econômica porque desajustes na atuação estatal podem modificar os preços em relação ao equivalente geral, com consequências econômicas severas. Os desajustes provocados pela política econômica seriam fonte das instabilidades que gerariam problemas cambiais, por exemplo.
Para a Teoria Monetária Moderna, dado que todas as moedas são estatais, o problema da política econômica, a monetária em especial, é manter a paridade da moeda estatal com as outras. Isso porque os governos devem garantir aos agentes moeda estrangeira para cumprir suas obrigações com o estrangeiro, uma vez que sempre podem emitir moeda nacional. Ou seja, a escassez de moeda não é de liquidez nacional mas cambial e esta deve ser a preocupação da política econômica.
No início da década de 1990 os argentinos mantiveram saldos comerciais negativos, utilizando-se da lógica liberal. Por esse motivo, em 2002 há uma explosão do câmbio que por um lado diminui drasticamente as importações por torna-las mais caras, e incentiva as exportações. Os saldos comerciais positivos à partir de então cobrem as obrigações líquidas em dólar. Mesmo assim, os governos Kirschner não modificam consistentemente a necessidade de dólares para cobrir as obrigações. Esse movimento poderia ter sido feito com a nacionalização de alguns setores econômicos e medidas que diminuíssem a necessidade de importações. Sem isso, com a queda dos saldos comerciais à partir de 2012 a crise se instala.
À partir de 2015, as políticas liberais do governo Macri não dão resposta adequada ao tema. Com a economia combalida o governo liberal de Macri força os saldos comerciais com base no aumento das importações, entre 2016 e 2017. As obrigações em moeda estrangeira se ampliam sem que possa ser possível retornar a patamares administráveis.
Uma observação importante é que os preços em moeda doméstica acompanham a necessidade de dólares. Isso ocorre porque os agentes passam a demandar moeda estrangeira para cumprir suas obrigações. Como o Governo sempre pode emitir moeda nacional, passa a fazê-lo sem que seja possível controlar a cotação em relação ao câmbio. Nenhum tipo de ajuste econômico restritivo levará os dólares necessários para a Argentina, pois não há garantia de que o Governo poderá controlar a cotação da moeda estrangeira. A atração de dólares somente pode ocorrer com a liquidação do Estado, seja pagando juros exorbitantes, seja vendendo capital.
Ou seja, por um lado, os saldos comerciais positivos não foram suficientes para diminuir a necessidade de dólares. Mesmo assim, as políticas liberais, principalmente aquelas que estão sendo propostas são ainda piores. Se por um lado não se preocupam com os saldos comerciais, uma vez que planejam abrir ainda mais para a concorrência uma economia que já está em crise, ainda visam ampliar a necessidade de moeda estrangeira. Afinal, com a cotação do dólar nas alturas, qualquer investidor pode comprar estatais e empresas argentinas a preços de banana.
A proposta de dolarização é ainda mais nociva, pois abrir mão da moeda nacional fará com que a moeda estrangeira também seja necessária para transações internas e pagamento de impostos. Assim, a verdadeira austeridade que se deve buscar não é a fiscal com o Estado gastando menos que arrecada, mas a da exposição à necessidade de moeda estrangeira.
Por fim cabem algumas observações sobre o Brasil. No nosso caso, a situação não é tão ruim pois temos a 7ª maior reserva cambial do mundo (US$ 346 bilhões). As privatizações da área do petróleo já estão cobrando seus preços (literalmente) com refinarias privadas vendendo seus produtos a valores 23% maiores que a Petrobrás. Além disso, a privatização da Eletrobrás ainda não deu todos os seus frutos no que se refere ao envio de dólares ao exterior.
Mas mantendo as referências de viagem no tempo, outro filme que nos ocorre é Lapso do Tempo (2014). Nesse caso, colegas de quarto descobrem o cadáver de um cientista que criou uma máquina que fotografava o local com 24 horas de antecedência. Decidem lucrar com a história, mas no final acabam imersos em eventos perturbadores em que preveem seu próprio destino trágico. Estas referências logo vêm à cabeça quando vemos as propostas liberais.
Com certeza o futuro argentino era o que deveria se esperar da política liberal aloprada de Paulo Guedes. Mesmo assim, caso o Governo Lula não trabalhe para diminuir a necessidade de dólares também é o que nos espera. Queiramos nós não estarmos olhando para o Brasil de anos futuros.
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