Argumento da desproporcionalidade com invocação do direito alemão não se sustenta
Texto por Marcelo Neves
Professor titular de direito público da Faculdade de Direito da UnB, é autor de Symbolic Constutionalization (2022) e The Paradox of Principles and Rules (2021), Oxford University Press
O Código de Processo Civil proíbe expressamente que o magistrado exerça as suas funções no processo “em que figure como parte cliente do escritório de advocacia de seu cônjuge, companheiro ou parente, consanguíneo ou afim, em linha reta ou colateral, até o terceiro grau, inclusive, mesmo que patrocinado por advogado de outro escritório”. Dessa maneira, o legislador atuou para concretizar consistentemente o princípio constitucional que garante a imparcialidade do juiz.
Em decisão recente, o STF decidiu que esse dispositivo legal não é compatível com a Constituição. Um dos argumentos é que os magistrados não podem conhecer nem ser obrigados a conhecer todos os advogados que são membros ou representantes do escritório de seu cônjuge, sua companheira ou seu parente próximo.
Tal argumento é insatisfatório. Claro, se o magistrado que atuar em processo desse tipo demonstrar que não sabia que o advogado postulante no processo se enquadrava na hipótese legal que ensejou o impedimento, ele estará livre de eventuais sanções, como a de ser condenado pelo Senado por crime de responsabilidade. Mas, havendo arguição por uma das partes e comprovado o impedimento, ele deverá se afastar do processo, que será assumido pelo seu substituto legal. Então, os atos praticados por juiz em condição de impedimento serão decretados nulos pelo respectivo tribunal.
ambém se invocou, junto ao argumento do desconhecimento, o princípio da proporcionalidade, tão caro à jurisprudência constitucional alemã. Mas essa utilização retórica do direito alemão é seletiva e equivocada. Para invocar adequadamente o modelo alemão, os ministros deveriam recorrer à claríssima jurisprudência do Tribunal Federal da Alemanha (BGH). Tendo em vista que a lei processual alemã não prevê expressamente a referida hipótese de impedimento, o BGH estabeleceu uma hipótese de suspeição de parcialidade análoga à de impedimento prevista na lei brasileira.
Em decisão de 15 de março 2012, esse tribunal decidiu que um juiz pode ser impugnado por suspeição de parcialidade se seu cônjuge trabalhar como advogada no escritório de advocacia que representa o oponente perante aquele juiz, inclusive no caso de a esposa do juiz não representar o cliente pessoalmente, apenas trabalhar meio período no escritório de advocacia e não ser sócia.
O BGH entendeu que a proximidade profissional particular da esposa do juiz com o procurador do adversário dá à parte motivos para se preocupar com a possibilidade de que isso possa levar a uma influência indevida sobre o magistrado. Segundo esse tribunal, mesmo que se possa presumir, em princípio, que os juízes têm a independência interna e a distância que lhes permitem tomar decisões imparciais e objetivas, não se pode esperar que uma parte confie que o oponente não exercerá qualquer influência indevida, e apenas rejeitar o juiz quando isso acontecer e ela ficar sabendo disso. Por fim, longe do argumento absurdo de negar nesse caso o princípio da imparcialidade com base no princípio da proporcionalidade, o BGH sustenta que a sua decisão serve, conjuntamente com os dispositivos legais de impedimento e suspeição, “à realização do direito constitucionalmente garantido das partes de não terem que comparecer perante um juiz que não tenha a neutralidade necessária”.
Assim, o argumento da desproporcionalidade com invocação do direito alemão não se sustenta se houver uma argumentação jurídica consistente e honesta. Tampouco pode ser tomada a sério a aplicação do princípio da igualdade, como propôs um dos ministros, pois se trata exatamente de privilegiar uma parte em detrimento da outra.
No mínimo, quatro ministros do STF têm cônjuge, companheira ou parente próximo pertencente a escritórios que atuam regularmente nesse tribunal. Alguém, com pretensão teórico-sociológica, poderia sugerir que essa decisão da corte constitui um caso típico de “sabotagem” ou bloqueio (não apenas condicionamento) do código jurídico lícito/ilícito pelo código amor/desamor (conjugal) ou pelos códigos das boas relações em geral (parente/não-parente, afeto/desafeto, amigo/inimigo etc.). Mas eu me restrinjo aqui ao aspecto técnico-jurídico: trata-se de um desarrazoado constitucional do Supremo Tribunal Federal.