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Globalização dará lugar a blocos de países antes ‘inimagináveis’

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Texto de Marsílea Gombata

Professor do IMD, Carlos Cordón prevê comércio ‘tímido’ e dividido em blocos de países

Estamos diante do fim da globalização. Daqui para frente, veremos o comércio de bens tímido entre os países e um mundo dividido em blocos econômicos inimagináveis há dez anos. O diagnóstico é de Carlos Cordón, professor de estratégia e administração de cadeias de valor do International Institute for Management Development (IMD), com campi em Lausanne, na Suíça, e em Cingapura.

Esse movimento, afirma, tem dentre os principais motivos a guerra comercial entre Estados Unidos e China, a ruptura nas cadeias de valor que levou à ideia de que fornecedores não são mais tão confiáveis e o aumento dos salários dos trabalhadores chineses.

Em entrevista ao Valor, o especialista diz que estamos diante de uma nova ordem mundial, que difere muito do arranjo antes protagonizado pelo Ocidente.

“Agora vemos uma nova ordem com contrapontos como o Brics, uma potência como a China. Há uma definição diferente do que é poder econômico. E creio que veremos blocos diferentes”, diz. “Do ponto de vista econômico, isso significa muitas barreiras. Veremos mais competição, e os políticos desempenhando um papel muito maior. Para as empresas, isso demandará entender muito mais sobre política do que antes.”

A nova ordem mundial, argumenta, será marcada por muitas regiões econômicas. “Creio que há um bloco econômico da Europa, outro com EUA, Canadá e México. E outro na Ásia. Na verdade, há três blocos na Ásia: um com Japão, Taiwan, Coreia do Sul, Austrália e EUA. Outro com a China e os países que comercializam muito com ela. E há um país estranho, que é a Índia. Não sabemos exatamente o que está fazendo, mas quer negociar com todos os outros”, diz.

Ele acrescenta a esse cenário elementos que podem surpreender, como o Brics, e países que se colocarão como friendshoring (fornecedores parceiros), como Arábia Saudita, Emirados Árabes Unidos e parte da América do Sul. E alerta: as cadeias de valor serão cada vez mais influenciadas pela política.

A seguir, trechos da entrevista:

Valor: O senhor participou recentemente de um evento cujo título era: O fim da globalização. Estamos diante dele?

Carlos Cordón: A resposta é “sim”. Se olharmos para o comércio global de bens, vemos que, há anos, ele vem caindo. Não é o caso do comércio global de serviços. Mas o de mercadorias está diminuindo. E não é por causa da covid-19, como se dizia. É porque as empresas não estão querendo mais comprar de um lugar para vender em outro. Lembro que uma empresa de alimentos contava que costumava comprar alguns itens na Malásia para vender no Peru, mas não fará mais. Há várias razões por trás desse fim: a primeira é do ponto de vista geopolítico. Há praticamente uma guerra comercial entre EUA e China. Vemos alguns políticos agindo de determinada forma, como no caso do governo de [Joe] Biden, outros países tomando medidas semelhantes para alimentos, sob o argumento de segurança alimentar, e assim por diante. E todos estão tentando repatriar grande parte das cadeias de abastecimento. A segunda é que interrupções que vimos criaram a ideia de que não existe uma situação tão confiável como antes, e que o fornecedor pode não ser tão confiável. E, já que não temos certeza se vamos receber, faz sentido comprar de tão longe? Talvez não. O terceiro ponto é que os salários na China, nos últimos dez anos, multiplicaram-se por dois. Então, como empresa, comprar coisas da China há dez anos era muito barato. Agora não é tanto quanto costumava. Sempre esclareço que o fim da globalização ocorre para muitos produtos, mas não para todos. Na Suíça temos o maior consumo de chocolate per capita do mundo, mas nunca cultivaremos cacau por questões climatológicas. Será preciso, então, importar cacau. Esse comércio continuará a existir, mas muitos outros que cresceram dramaticamente estão diminuindo. Empresas como Maersk ou outras transportadoras sempre mencionam o efeito multiplicador. O que é isso? Antes, se o PIB mundial crescesse 3%, o comércio global cresceria 6%. O efeito multiplicador, portanto, era 2. No final de 2008, em 2009 e em 2010 esse multiplicador passou para 1. Hoje é basicamente negativo. Faz sentido transportar os produtos por tanto tempo para tão longe?

Valor: As causas da desglobalização são econômicas ou políticas?

Cordón: Eu diria que ambos. Políticas, se pensarmos na razão pela qual, por exemplo, os EUA estão tentando bloquear o comércio com a China. São razões políticas, mas também econômicas, pois eles querem manter a liderança tecnológica. O governo Biden, um pouco ingenuamente, aprovou no ano passado o Chips and Science Act, que proíbe as empresas americanas de enviar para a China tecnologia empregada na fabricação de microchip. Isso significa que os EUA acreditam terem a liderança dessa tecnologia, o que não é o caso. A empresa alemã ASML, que faz máquinas para fabricar os microchips, tem plantas na Califórnia, na Malásia. O governo Biden pressionou o governo alemão para bloqueasse algumas das exportações de ASML para a China. Outras razões econômicas têm a ver com a possibilidade de alguns países tentarem fazer o resto do mundo de refém. Se a China pensar: “Temos terras raras, item necessário para a produção de microchips, e agora vamos limitar a exportação deles”.

Valor: As causas que levaram à globalização não existem mais?

Cordón: Com certeza, não. É interessante porque, durante muitas décadas, a crença era que, se todos os países comercializassem entre si, ficariam mais próximos. E, portanto, seria mais difícil travarem uma guerra. A ideia era: mais integração econômica, menos conflito. Essa realidade não existe mais. Acho que nas forças que levaram à globalização havia intenções muito boas, mas que não estão mais aí. E esse é um aprendizado doloroso.

O que ocorre se todos os produtos vendidos na Suíça e fabricados na China passem a ser fabricados na Suíça? Para a Suíça é um grande impacto, mas para a China é pequeno”

Valor: Estamos diante de uma nova ordem mundial?

Cordón: Sim. Estamos perante uma nova ordem mundial em que teremos muitas regiões econômicas. Veremos mais barreiras comerciais e mais blocos econômicos. Creio que há um bloco econômico da Europa, outro com EUA, Canadá e México. E outro na Ásia. Na verdade, há três blocos na Ásia: um com Japão, Taiwan, Coreia do Sul, Austrália e EUA. Outro com a China e os países que comercializam muito com ela. E há um país estranho, que é a Índia. Não sabemos exatamente o que está fazendo, mas quer negociar com todos os outros. Um desenvolvimento mais surpreendente poderia ser com o Brics e o Brics estendido. Penso que nessa nova ordem mundial serão regiões diferentes, acordos multilaterais diferentes. E há países que se colocam como friendshoring, como é o caso da Arábia Saudita, se pondo como um país amigo dos EUA, da China, de todos. Veremos muitos países no Oriente Médio assim. Parte da América do Sul também tentará ter um papel nisso. Acho que o Brasil tem chances, faz parte do Brics, pode negociar com países diferentes, está relativamente próximo da Europa e dos EUA. Mas creio que investidores ficarão muito preocupados com a estabilidade desses países. E o Brasil, pode ter tido altos e baixos, [governos de] esquerda e direita, mas é estável do ponto de vista dos negócios.

Valor: Qual a principal diferença entre essa nova ordem e a antiga?

Cordón: É uma pergunta muito boa. Se pensarmos na velha ordem, ela era em grande parte liderada pelos países ocidentais. Eram eles quem lideravam a economia, a tecnologia, e estavam tentando fazer com que todos praticassem mais comércio livre. Era algo como: “Somos países desenvolvidos, ajudamos os países em desenvolvimento a se tornarem mais parecidos conosco, ditamos as regras do jogo”. Agora acho que vemos uma nova ordem com contrapontos como o Brics, uma potência como a China. Há uma definição diferente do que é poder econômico. E creio que veremos blocos diferentes. O que era chamado de sociedade ocidental não será seguido pelas outros. Penso que não veremos mais uma liderança clara desses países. Do ponto de vista econômico, isso significa muitas barreiras. Veremos mais competição, e os políticos desempenhando um papel muito maior. Para as empresas, isso demandará entender muito mais sobre política que antes. Já vejo algumas empresas tendo especialistas em geopolítica, aconselhando-as sobre mudanças em determinadas cadeias. A China já não é uma fábrica para o mundo inteiro. O mesmo sobre a ideia de a Apple desenvolver o design na Califórnia e fazer a montagem na China. Veremos montagem de aparelhos Apple em diferentes lugares.

Valor: A diversificação das cadeias produtivas, em parte impulsionada pelo conflito entre EUA e China, pode oferecer oportunidades para quais economias e setores?

Cordón: A questão não é muito sobre qual setor, mas mais sobre quais subsetores. Deixe-me dar um exemplo. Quando pensamos em comida, vemos que muitas das cadeias de abastecimento globais são globais por causa da natureza. Não se pode cultivar mamão na Suíça, por exemplo. Porém, quando falamos sobre produtos lácteos, essas produções tendem a ser mais locais. Alguns produtos podem ser produzidos mais localmente, mas, se esse país tiver um déficit devido à climatologia, não há outra escolha senão importá-los. Países que têm boa climatologia, como o Brasil, têm grande oportunidade [adiante]. Mas não creio que a Finlândia, por exemplo, tenha. Empresas que foram para a China produzir terão de repensar [sua estratégia], especialmente as de mecânica, eletrônicos, linhas de montagem. Pense na Apple ou baterias para carros elétricos. Haverá muita oportunidade para eles. Outros setores ainda estão engatinhando e precisam de muita diversificação. No caso da indústria automobilística, ela é muito local, regional. Os carros comprados no Brasil, em geral, são fabricados no Brasil. Os carros vendidos na América do Norte são fabricados lá, muitos deles feitos no México para os EUA. No setor de maquinários, depende. Se for um tipo de maquinário muito sofisticado, de alto valor agregado, a produção tende a ser global. Se não tiver tanto valor agregado, será regional. Um setor que não deve se regionalizar é o da indústria aeronáutica.

Valor: O sr. acredita que as economias sul-americanas poderiam ter um papel relevante nesse movimento crescente de reorganização das cadeias de valor?

Cordón: Acho que sim. Provavelmente não significativo para a economia mundial, mas para a economia de um país. O que ocorre se, de repente, todos os produtos vendidos na Suíça e fabricados na China, passarem a ser fabricados na Suíça? Para a Suíça é um grande impacto, mas para a China é muito pequeno. Não acrescentará muito à economia global, mas contribuirá para a transição para essa nova ordem mundial. Um país que certamente está colhendo muitos benefícios é o México. Acredito que o resto do mundo ainda demorará um pouco para acordar e ver que pode lucrar com isso. Dependerá de empresários da América do Sul buscarem oportunidades lá fora. Isso depende muito dos empresários e também dos políticos.

Valor: Há algum ponto não mencionado que considera relevante?

Cordón: Uma coisa que mencionamos lateralmente, mas terá um papel maior no futuro é a sustentabilidade. E acredito que existe um lado positivo nisso. Fiquei surpreso quando vi alguns grandes agricultores do Brasil na vanguarda [disso], de como fazer diferente e tornar a produção mais sustentável. Isso poderia ser uma oportunidade para o Brasil, que pode ser um beneficiário disso.

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