Por Felipe B. Zorzi
“O verdadeiro espírito positivo consiste sobretudo em ver para prever, em estudar o que é, a fim de concluir disso o que será” – Augusto Comte
Logo, logo, o mundo vai despertar de um Sonho Norte-Americano com uma Nova Grande Depressão. Conta-se uma história chamada de American Dream: nos Estados Unidos da América, qualquer um poderia investir no próprio futuro, adquirir casa própria, receber boa educação e atingir vida de classe média. Tudo que se precisaria fazer é trabalhar duro e empreender como agente privado no livre mercado. A competição capitalista levaria a um bem-estar geral. A mão invisível do mercado guiaria indivíduos atomizados, agindo por interesses próprios, à realização do tal sonho. No entanto, está cada vez mais claro que essa metafísica da mão invisível não é mais do que uma fantasia, uma quimera. Ao despertar do sonho com a evidência dos fatos, todos perceberão que a realidade está mais próxima de um pesadelo.
Desde 1980, a desigualdade aumenta rapidamente nos EUA. Ao isolar o 1% mais rico da população, encontra-se 35% de concentração de riqueza nacional. Este número sobe para 74% ao considerar os 10% mais ricos. Uma classe média de 40% da população fica com só 26% da riqueza. Já os 50% mais pobres detêm quase 0% da riqueza nacional, o que significa que não possuem nem mesmo uma casa própria. Entre 1980 e 2020, a renda dos 90% mais pobres cresceu somente 28%. Aqueles que estão entre os 90% e 99% no topo da pirâmide de renda tiveram um acréscimo de 65% no mesmo período.
Enquanto isso, o 1% mais rico da população recebeu um aumento de 179% na sua renda. Quando isolados os 0,1% mais ricos, esse valor chega a 389%.
Observemos o salário-mínimo para entender mais profundamente o que está ocorrendo. Entre 1980 e 2006, ele aumentou de 3,1 dólares para 5,15 dólares por hora de trabalho.
Então, o salário-mínimo subiu para 7,25 dólares por hora entre 2007 e 2009, não tendo saído desse patamar até 2022. Isso significa que, trabalhando por 200 horas úteis ao mês, um pobre norte-americano ganhava cerca de 620 dólares em 1980 e 1450 dólares em 2022. Ao longo desse tempo, houve um processo de inflação nos preços de consumo.
Para dar somente um exemplo, o aluguel médio mensal passou de 243 dólares por mês em 1980 para 1180 em 2023. Enquanto um trabalhador pobre gastava só 40% da renda com aluguel em 1980, já gasta 80% em 2023. Com a concentração de renda, há uma tendência dos ricos acumularem propriedade sobre os imóveis para viver de aluguel, o que força a competição no mercado de aluguel dentre os pobres. Para além do aluguel, pode-se falar da inflação na alimentação ou nos combustíveis que conjuntamente comprometem a qualidade média de vida. Eis o perigo: a classe média norte-americana está desaparecendo.
Olhemos, então, para outro processo sistêmico: a desindustrialização. O setor industrial tende a remunerar melhor do que a agropecuária e os serviços. Em 1980, com uma população de 220 milhões de habitantes, quase 20 milhões de norte-americanos eram empregados na indústria. Em 2022, esse número se reduziu a cerca de 12 milhões, mas a população aumentou para 330 milhões. Isso foi compensado por um inchaço nos setores de serviços, como mídias, comércio e finanças: de 60 milhões em 1980 para 130 milhões em 2022. O dilema é que os produtos industriais ainda são consumidos pela população. No ano de 2004, a produção industrial mundial foi de 7,2 trilhões de dólares, dos quais 1,6 nos Estados Unidos, 1,8 foram na União Europeia e 0,6 na China. Já em 2021, dos 16 trilhões de dólares produzidos, 4,9 foram na China. 2,5nos Estados Unidos e 2,5 na União Europeia. A competitividade das cadeias produtivas asiáticas dão sentido a queda dos empregos industriais nos EUA, o que torna o preço de produtos importados vulnerável aos efeitos inflacionários de conflitos internacionais, como a guerra entre Rússia e Ucrânia de 2022.
A explosão da dívida pública norte-americana talvez seja a variável mais importante para ligarmos o alerta de uma crise financeira. Para manter os serviços públicos do Estado, um país precisa arrecadar impostos. Quando a arrecadação é menor que os gastos públicos, ocorrem défices no orçamento público. O governo norteamericano arrecadou mais do que gastou em só três anos tributários entre 1980 e 2022. Porém, a dívida pública permanecia moderada, isto é, abaixo de 9 trilhões de dólares, até 2008, quando ocorreu uma crise de hipotecas no mercado imobiliário norteamericano e quando a produção industrial da China se igualou a dos Estados Unidos. Entre 2008 e 2019, a tentativa do governo de salvar os empregos das grandes empresas privadas com programas de gastos públicos para acelerar o crescimento levaram a dívida a 22 trilhões de dólares. Em quatro anos, desde que a pandemia de covid-19 se disseminou em 2020, essa dívida saltou para quase 32 trilhões de dólares. O produto interno bruto dos Estados Unidos passou de 15 trilhões em 2008 para 25 trilhões em 2022, mas esse crescimento foi artificialmente impulsionado através de um aumento da dívida pública de 60% para quase 130% da economia nacional em menos de uma década e meia.
Por fim, podemos ver sinais de um risco de colapso no mercado imobiliário.
Comentaristas financeiros norteamericanos já começaram a falar de um Doom Loop, um Ciclo da Perdição. Ao longo das últimas duas décadas, inovações tecnológicas como redes sociais e inteligência artificial levaram à consolidação de grandes monopólios corporativos em setores como comércio varejista e telecomunicações. Com a diminuição na qualidade de vida e o contexto de isolamento da pandemia de covid-19, muitos trabalhadores começaram a se deslocar para trabalhar à distância em áreas mais baratas do país. As pessoas estão saindo de metrópoles como Nova Iorque, Boston, Filadélfia, Seattle, Chicago, Washington, São Francisco e Los Angeles. Isso está fazendo com que muitos imóveis permaneçam ou estejam sendo desocupados nos grandes centros. O setor em que isso é mais evidente é o de imóveis comerciais destinados para escritórios, lojas e hotéis. Em algumas cidades, os espaços vagos chegam a 50%. Muitos desses imóveis foram financiados ou estão hipotecados. Seus custos de administração continuam rolando. Enquanto isso, o Banco central dos Estados Unidos aumentou a taxa de juros básicas de 0,25% para 5,5% ao ano de 2022, o que só havia ocorrido nos anos que antecederão a crise de 2008 nas últimas duas décadas. Caso os devedores não consigam pagar pelo aumento de despesa que isso representa, os bancos que administram estas dívidas estão em risco, particularmente os de menor porte.
Tendo analisado a economia, voltemos rapidamente nossa atenção para a questão da saúde mental dos jovens. Para dar um exemplo, a educação superior encareceu exponencialmente nas últimas décadas. O custo das mensalidades e taxas das grandes universidades privadas se aproxima de 40 mil dólares por ano. Porém, a poupança de muitas famílias não comporta gastos adicionais. Cerca de 30% dos novos adultos que frequentam uma faculdade adquirem dívidas com empréstimos estudantis, cujo montante já chega a 1,6 trilhões de dólares em 2023. Seus salários, depois dos custos correntes do mês, estão comprometidos com educação. É difícil imaginar comprar uma casa, criar filhos ou desfrutar do ócio sem uma herança para ajudar. Essa é só uma das dimensões que influencia a crise mental das novas gerações: aquecimento global, polarização ideológica, redes sociais etc. Cerca de dois jovens em cada sala de aula está com alguma doença, como depressão e ansiedade, que atrapalham seu aprendizado e sua concentração. As expressões dessa crise são tristeza, desesperança, violência, uso de drogas, comportamento sexual de risco etc. Entre as nações ricas, norte-americanos já apresentam a maior taxa de suicídios. O suicídio já representa a segunda maior causa de morte de jovens entre 10 e 24 anos. Lembremos que o organismo é um sistema integrado, logo o corpo fica comprometido quando o estresse domina a mente.
Vale destacarmos a epidemia no uso de drogas. A distribuição de drogas aumentou com a formação de redes internacionais de crime organizado nos últimos anos. A disseminação de opióides sintéticos, como o fentanil, tem se somado ao uso de outras drogas (heroína, metanfetamina, cocaína etc.). Entre 2015 a 2022, as mortes por overdose passaram de cerca de 50 mil para 105 mil pessoas por ano. Desses, o aumento de 70 para 100 mil mortes aconteceu somente entre dezembro de 2019 e junho de 2021, durante a pandemia de covid-19. Num país em que 2 milhões de pessoas, dentre uma população de 330 milhões, estão presas no sistema carcerário, esse problema de saúde pública se torna ainda mais eminente. Enfim, esses números refletem também na expectativa de vida do país, que caiu de quase 79 anos em 2019 para pouco mais de 76 anos em 2022.
Tudo isso significa que há uma bomba relógio em contagem regressiva. A vida dos trabalhadores norte-americanos está estrangulada pela disfunção moral no sistema capitalista. As assimetrias e patologias sociais aqui citadas são só algumas das muitas dimensões de crise que poderiam ser descritas. Esse círculo vicioso no centro do sistema pode levar a um pane geral. Num sistema disfuncional, um atrito pode levar a muitos outros. Chama-se de Grande Depressão (Great Depression) a década que se iniciou com a quebra da Bolsa de Valores de Nova Iorque em 1929, quando centenas de bancos quebraram, o desemprego chegou a cerca de um quarto da população e seu bem-estar sociopsicológico ficou comprometido. Se a comparação histórica estiver correta, outra grande crise deve despertar o mundo inteiro do sonho norteamericano. Estejamos atentos, porque também sentiremos os efeitos da Nova Grande Depressão aqui no Brasil!
Felipe B. Zorzi Possui doutorado em ciência política pela UFRGS, foi pesquisador visitante em Harvard, e é especialista em pensamento sistêmico, positivismo e desigualdade.
O artigo encontra-se em https://disparada.com.br/doom-loop-depressao/
PS- A citação foi de Comte; mas a análise, baseada em Karl Marx, é implacável. A contrarrevolução neoliberal- levando a crise estrutural do capital a um patamar superior- com seus efeitos, cobra sua fatura- tanto lá como cá.
Mário Arthur Sampaio.