“Amigos, a humildade acaba aqui. Desde ontem o Fluminense
é o campeão da cidade” (Nélson Rodrigues)
Não me lembro de outra atuação tão vergonhosa da seleção brasileira. Nem mesmo a perplexidade da Família Felipão tendo sido abandonada por Deus na patética derrota para a Alemanha no Mineirão. Ali houve inocência nos piores e mais variados sentidos. Mas ser surpreendido em sua inocência é apenas um tipo de incompetência. Ser derrotado é algo que acontece. Jogar pior é algo que acontece. Faz parte do futebol.
Por vezes há partidas em que entramos destinados a perder, mas, mesmo assim, jogamos gloriosamente, heróis trágicos como Heitor e Karna, e terminamos, desonrados, desonrosos. Brasil e Holanda, em 74, onde na medida do possível tentamos um primeiro tempo de igual para igual, mas acabamos sendo sufocados e nos entregando a uma desesperada violência no segundo tempo.
Mas no Maracanã, noite de 21 de novembro, o que se viu em campo foi de outra natureza. Com pouco menos de meia hora de jogo o Brasil tinha menos de 37% de posse de bola, cometido 11 faltas (contra 3 da Argentina), dois cartões amarelos que em qualquer campeonato sério o VAR teria chamado para avisar que era vermelho. Ambos por faltas de atacantes no De Paul, que por alguma razão, era nítido, foi escolhido para ser provocado até reagir e acabar expulso. Só que o feitiço virou contra o feiticeiro: com um pouco de teatro do mesmo De Paul, o que era para ter sido um cartão amarelo de Joelinton faltando dez minutos para acabar a partida, o Brasil já perdendo por 1×0, acabou sendo um vermelho. Possivelmente o juiz resolveu compensar ali o que fora sua pusilanimidade na primeira metade do primeiro tempo.
Culpar a CBF é fácil. Afinal, cartolas são malvados, corruptos, incompetentes. É que nem culpar o Congresso. No que vi de comentários, ESPN e SportTV, assim que terminou a partida, ninguém queria encarar o que para mim é óbvio: a indigência tática do dinizismo (também chamado de relacionismo).
Pequena nota de rodapé: apesar de botafoguense – e porque botafoguense – tem muito tempo que não assisto campeonato brasileiro, tirando coisas como gols da rodada e uma mesa redonda aqui e acolá. Razão? Há um momento em que você se cansa da mediocridade do futebol aqui jogado. Há um momento em que você se cansa de um campeonato onde se rouba até no VAR. Há um momento em que você se cansa de como Globo e CBF confluem para seus interesses econômicos e políticos de uma forma que não é a melhor para o futebol. Portanto, certas coisas de nosso futebol corrente acompanho de segunda mão através de análises na TV e no YouTube, de jogos dos mata-matas da Libertadores, de fases finais da Copa do Brasil, de jogos que sou forçado a ver na companhia de outras pessoas.
Muito se celebrou a forma de jogar do time do Fluminense do Diniz como sendo um resgate de alguma virtude primal da idade do bronze (de praça na frente do estádio) do futebol brasileiro. Futebol enquanto narrativa de Galvão Bueno, um futebol do puro talento brasileiro. Isso, na minha opinião, é uma enorme bobagem, como o mito constante da renovação, de que vai aparecer algum Luke Skywalker em idade de serviço militar para destruir com as death stars europeias com suas jogadas de gênio. O sistema sem forma do Diniz libertaria esse talento atávico para acontecer, o toque de bola, a fluência.
No meu vício de entender os fenômenos como processos evolucionários e/ou dialéticos, de pensar sobre limitações materiais e históricas, vejo o futebol e os técnicos que o comandam de forma diferente. Vejo o tempo, vejo as corridas armamentistas, vejo as soluções que são dadas como resposta e as consequências que elas trazem. O futebol é uma grande narrativa de transformação no tempo e na cultura.
Qual o problema ao qual o dinizismo responde, então? Ganso!
Se você olhar a estatística de número de passes do Brasileirão de 2022, o jogador com maior média de número de passes por partida foi o André (71,9 passes), do Fluminense. Ganso foi o sexto (59,8 passes). O dado interessante é que até o colombiano Jhon Arias (49,4 passes), também do Fluminense, em 28º, todos os jogadores fora o Ganso são laterais/alas, meio campistas defensivos, ou defensores. Ganso, assim como Arias, é um meio campista ofensivo, um meia para usar da terminologia nacional. Ganso fez isso, na média, sendo substituído aos 30 minutos do segundo tempo. O quão anômalo é isso? Na Inglaterra do ano passado o primeiro meia que aparece é o Bruno Fernandes, 48º da lista ordenada por média de passes.
Há uma afirmação famosa de Seedorf sobre a viabilidade de Ganso na Europa. Galvão, Arnaldo e toda aquela farofa nacionalista da SportTV da época, celebrando um lance de muita habilidade de Ganso que quase resultou num gol. Seedorf, do alto de sua sagacidade de um cara com quatro Champions por três times diferentes, contendo o riso, disse que aquela jogada nunca seria possível na Europa. E que Ganso era lento demais.
E, de fato, Ganso não vingou na Europa. Mas depois de contusões, passagens pelo banco etc., Diniz soube aproveitar o que era um enorme talento com algumas deficiências graves. No amontoado de jogadores que é o relacionismo, jogando contra o futebol taticamente medíocre que é praticado na América do Sul (à exceção de alguns times com técnicos portugueses sem jogadores a sabotá-los, o Palmeiras de Abel e o Flamengo de Jesus como os mais sólidos exemplos disso), o futebol do Diniz aflora como algo engenhoso, exuberante surpreendente.
O problema é que isso não funciona se o outro lado tem jogadores de qualidade com uma formação tática sólida. Isso não funciona contra jogadores que agem na telepatia das jogadas longamente ensaiadas, mentes pré- posicionadas a executar um balé em campo. Isso é desnecessário quando você tem um conjunto de jogadores com habilidade para executar um plano tático.
Mas nem isso foi. O Brasil entrou em campo para bater. O Brasil entrou em campo como se fosse um time pequeno disputando uma partida em casa contra um time grande. E sair dando tapa na cara dos outros jogadores não é uma atitude que você aprende jogando no Arsenal ou no Barcelona. Isso é uma determinação de se entrar duro em todas as jogadas, de agir de forma violenta. Isso é o técnico.
Tinha só um probleminha: era a Argentina do outro lado. Assim como entramos com Chicão em 1978 com o objetivo de demostrar força (e resultou em zero a zero), entramos parando o jogo. A Argentina, que tentava jogar, que entrou na partida com o objetivo de arrancar um empate, deixou o jogo (não) fluir, sem precisar ter muito trabalho para isso. Zero a zero servia, como serviu em 78.
Outra pequena janela: não vou entrar no mérito da violência da PM e da comédia de erros que levou a isso, não vou entrar no mérito da ditadura argentina em 78. Não acho que isso tenha influenciado esses resultados.
Taticamente, a Argentina já superou a sua fixação com enganches, com craques como Riquelme a produzir malabarismos, ditar o meio campo. Seu gênio atual, Messi, é um atacante, e para que ele funcione é necessário espaço, segurança, confiabilidade. A Argentina joga com três volantes, três jogadores de grande habilidade e intensidade a conduzir o meio campo: De Paul, Mac Allister e Enzo Fernandez, titulares de Atlético de Madrid, Liverpool e Chelsea. É um meio de campo assombrosamente sólido. Como o da França, como era o da Croácia que nos eliminou no Qatar. E nós, um time que podia dispor de uma contrapartida na forma de Douglas Luiz, Bruno Guimarães, Joelinton… e até mesmo o André, num momento em que Casemiro está ausente? Não entrar com três volantes de forma que três na frente pudessem ter mais espaço e liberdade… cacete! Pra que o Raphinha?
O Brasil dispõe hoje de uma ótima geração de jogadores. Há buracos: tirando o contundido Militão, a atual defesa brasileira é uma das mais medíocres que já vi de amarelinha. Há o problema de uns falsos brilhantes, como o seis por meia dúzia que são Raphinha e Antony, ou aquela boa pessoa de apenas bom futebol que é Richarlison. Há o problema de que esse ataque, de fato, só estará no ponto na Copa de 2030 (falo de Rodrygo, Endrick e Vini Jr, os três do Madrid). Mas se pensarmos no atual time do Madrid, Vini e Rodrygo estão sendo preparados a ter um diamante por trás deles. E a ponta desse diamante na seleção, tal como foi no PSG durante algum tempo, é Neymar, o contundido, quebrado, experiente e extraordinário Neymar. Um Neymar para quem só falta no álbum a figurinha de Campeão do Mundo.
O Brasil já tem time, já tem técnico, suas peças estão sendo lapidadas. Mas isso você não vê na Globo, isso você não vê na narrativa do clubismo dos torcedores. Isso você não vê na imprensa que quer dar uma relevância a esse mundo de nosso futebol local que ele não tem mais.
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