As negociações entre União Europeia e Mercosul para um acordo econômico abrangente estão entrando no que parece ser a reta final, com negociadores do Itamaraty e do Ministério do Desenvolvimento e da Indústria ansiosos para chegar a um acerto. O presidente Lula tem declarado que quer fechar com os europeus até 7 de dezembro, data em que ele passa a presidência do Mercosul para o Paraguai, mas acrescentou que se não resolver a questão até lá abandonará negociações que já levam mais de 20 anos. Espero que elas sejam realmente abandonadas e saiam de pauta. Vou explicar por quê.
Não é por acaso, leitor ou leitora, que não se conseguiu fechar esse acordo durante mais de duas décadas de tentativas. Os europeus sempre foram – e continuam – muito resistentes a aceitar uma negociação minimamente equilibrada e insistem, além disso, em cláusulas intrusivas que cerceiam as políticas de desenvolvimento. Nem mesmo o governo Fernando Henrique Cardoso, nem mesmo o governo Temer, ambos de inclinação liberal e entreguista, conseguiram concluir essa negociação. Foi preciso a presença de Bolsonaro e Macri para que ocorresse a rendição total e se fechasse, em 2019, um acordo escandalosamente desigual.
O que fazem então os negociadores do governo Lula em 2023? Cometem o erro palmar de retomar as negociações com os europeus aceitando como ponto de partida a herança de Bolsonaro. Colocaram-se, assim, na posição de pedintes de ajustes a um péssimo acordo. Acabaram levantando poucos pontos relevantes, com ambição limitada, não tocando na essência neoliberal do que foi aceito por Bolsonaro.
Nesse pé estamos. São tão limitados os pontos levantados pelos negociadores do governo Lula que mesmo se fossem aceitos integralmente pela parte europeia não resultariam em algo minimamente aceitável.
Essência neoliberal do acordo
Qual a essência do acordo? A abertura quase total do mercado brasileiro, via eliminação dos impostos de importação, a uma concorrência desigual com corporações e outras empresas europeias que têm, regra geral, superioridade tecnológica, maior escala de produção, acesso a crédito em condições mais favoráveis, entre outras vantagens. Empresas que, ademais, contam com subvenções dos seus Estados, que dispõem de grande capacidade financeira para apoiar suas empresas industriais, de serviços e agrícolas.
As empresas brasileiras, por seu lado, sofrem com o conjunto de fatores adversos conhecidos como “custo Brasil” – juros extraordinariamente elevados, crédito escasso, instabilidade cambial e períodos recorrentes de apreciação da moeda, deficiências de infraestrutura e logística. As tarifas de importação, suprimidas por esse acordo, são uma compensação apenas parcial pelos vários fatores que minam a competitividade sistêmica da economia brasileira e suas empresas.
A indústria e a agricultura familiar seriam as grandes derrotadas. Não é à toa que as entidades que representam agricultores familiares se posicionam contra esse acordo. Um dos seus principais problemas reside no fato de liberalizar quase completamente o comércio daquilo que é produzido pelos agricultores familiares brasileiros, inclusive o comércio daqueles bens que permitem um mínimo de agregação de valor no campo. Isso fatalmente prejudicará a produção e o emprego na área rural. Os pequenos agricultores ficarão submetidos à concorrência desimpedida com importações de produtos europeus produzidos, não raro, com o apoio de altos subsídios governamentais. Toda essa parte do acordo herdado do governo Bolsonaro não foi questionada pelos negociadores do governo Lula.
Há muitos motivos para inquietação com essa negociação malconduzida. Um aspecto pouco conhecido é que o acordo com a União Europeia constitui a porta de entrada para outros acordos do mesmo tipo, prontos ou quase prontos, e que apenas aguardam a finalização dos entendimentos com os europeus – os acordos com o Canadá, com a Associação Europeia de Livre Comércio – EFTA, com Singapura e com a Coreia do Sul – todos no formato do acordo com a União Europeia, inspirado por sua vez na Alca, que rejeitamos ainda no primeiro governo Lula. Ressalte-se, ademais, que, dificilmente Estados Unidos, Japão e China, entre outros, ficarão assistindo a isso passivamente. Vão pressionar, cedo ou tarde, pelas mesmas concessões que foram feitas aos europeus – tanto mais que ficará evidente para todos que os europeus as obtiveram sem fazer concessões minimamente significativas ao Mercosul.
A economia brasileira estará amarrada numa teia de acordos neoliberais ultrapassados, que obedecem a doutrinas de liberalização nunca praticadas pelos países desenvolvidos e pelos países emergentes bem-sucedidos, como a China, mas exportadas para países incautos do mundo em desenvolvimento. Hoje em dia, são doutrinas ainda menos aceitas, uma vez que todos os principais países desenvolvidos estão buscando a reindustrialização, a internalização de cadeias produtivas e protegendo a produção em solo nacional ou regional.
O que ganhamos, afinal, com esse acordo?
A pergunta que não quer calar é a seguinte: o que ganha o Brasil se esse acordo vier as ser concluído? Acesso adicional para nossas exportações? Muito pouco, quase nada. Algumas das principais commodities que exportamos (café em grão, soja, petróleo, entre outros) já não enfrentam barreiras na União Europeia. As cotas oferecidas para alguns outros produtos agropecuários em que somos competitivos (como carne bovina, açúcar e arroz) são pequenas e insuficientes (inferiores ou próximas às exportações atuais); outras são inócuas (dizem respeito a produtos nos quais a capacidade de concorrência europeia dificilmente daria espaço para a produção brasileira, como é o caso da carne suína).
Quanto a nossas exportações industriais, a redução das tarifas de importação europeias, prevista no acordo, é residual, uma vez que a tarifa média europeia já é muito baixa, em virtude das tarifas consolidadas na OMC e regimes de preferência.
Será que aumentariam os investimentos europeus aqui? Nunca precisamos desse tipo de acordo para sermos o maior receptor de investimento direto da América Latina e um dos maiores do mundo. O acordo com os europeus tende inclusive a reduzir investimentos ou provocar desinvestimentos no Brasil. Para que investir aqui se eles poderão abastecer o mercado brasileiro a partir das suas matrizes, livres de barreiras tarifárias?
Não se alegue que as associações e os sindicatos empresariais da indústria estão a favor do acordo e que, por isso, não haveria motivo para se preocupar com seus efeitos sobre o setor. As pessoas que comandam e estão representadas nesses sindicatos industriais são em sua maioria industriais fictícios. Alguns são donos ou executivos de maquiladoras que importam produtos e peças industriais e se limitam à montagem com baixa agregação de valor e baixa geração de empregos. Ou pior: são meros importadores que usam suas estruturas de comercialização para colocar no mercado interno os produtos que recebem do exterior. Ou são financistas que dependem mais da receita financeira do que da operacional. Outros são meros burocratas de sindicatos patronais, que fazem carreira nessas entidades e têm pouco ou nenhum peso real em termos empresariais. Além disso, têm forte presença nessas entidades patronais representantes de subsidiárias e filiais de empresas estrangeiras, que obedecem, em última análise, à estratégia da matriz.
Já os pequenos e médios empresários brasileiros, da indústria e da agricultura, responsáveis por grande parte da produção e do emprego, não são efetivamente representados por essas entidades.
Para agravar o quadro criado pelo acordo com os europeus, ficaríamos também limitados na possibilidade de controlar e tributar as exportações – algo que pode ser necessário por vários motivos, inclusive de segurança, de desenvolvimento da economia e de proteção de interesses estratégicos. Com poucas exceções, o acordo proíbe restrições quantitativas à exportação. E, no seu formato original, proibia impostos sobre exportações. Pelo que sei, os negociadores brasileiros estão tentando obter dos europeus a concordância para a possibilidade de tributar alguns minerais críticos. Se a lista for pequena vai apenas arranhar o problema. Se for uma lista taxativa, não resolve. Com o rápido desenvolvimento da tecnologia, o mineral que será crítico amanhã, não é percebido como crítico hoje.
Veja-se a que ponto chegamos! Não temos atualmente qualquer limitação legal para usar o instrumento de tributação de exportações. Mas agora ficamos reduzidos à posição de pedir aos europeus a possiblidade de algumas exceções à proibição de tributar. Em troca de quê? De novo, é a pergunta que não quer calar.
Hora de abandonar uma negociação perigosa
Desde o início do ano, o que está sendo feito pelos negociadores brasileiros é apenas dammage control (controle de danos) – e mesmo assim muito incompleto. A equipe negociadora inclui técnicos e diplomatas empenhados em chegar a um resultado e dominados, em sua maior parte, por uma orientação liberalizante completamente anacrônica. Deixam muito a desejar – para não usar palavras mais fortes.
Agora, com a eleição de Milei, surgiu mais um argumento frágil (para dizer o mínimo) – o de que a não conclusão de um acordo com os europeus poderia levar à saída da Argentina e ao fim do Mercosul.
Ora, campanha é campanha, governo é governo. Muitas bravatas de campanha estão sendo e serão abandonadas por Milei. Há muitos interesses empresariais argentinos que seriam fortemente prejudicados pela saída do país do Mercosul, inclusive importantes financiadores da campanha de Milei. Pelo que sei, não há apoio no Congresso argentino para tirar o país do Mercosul; se governo tentar, será provavelmente derrotado. O presidente eleito já está moderando seu discurso, nesse e em vários outros pontos em que prevaleceram teses estapafúrdias durante a campanha eleitoral. Portanto, esse suposto risco para o Mercosul é história para assustar criancinha.
E mesmo na hipótese altamente improvável de que a Argentina viesse a romper com o Mercosul, isso seria motivo para o Brasil se engajar um acordo nocivo com os europeus?
Francamente, não consigo entender como esse acordo ainda está em pauta. Já teríamos de ter feito o que recentemente fez a Austrália, que abandonou negociações semelhantes em razão da intransigência dos europeus. Enquanto a Austrália age com soberania, o Brasil vacila diante da União Europeia.
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Uma versão resumida deste texto foi publicada na revista Carta Capital.
O autor é economista, foi vice-presidente do Novo Banco de Desenvolvimento, estabelecido pelos BRICS em Xangai, de 2015 a 2017, e diretor executivo no FMI pelo Brasil e mais dez países em Washington, de 2007 a 2015. Lançou no final de 2019, pela editora LeYa, o livro O Brasil não cabe no quintal de ninguém: bastidores da vida de um economista brasileiro no FMI e nos BRICS e outros textos sobre nacionalismo e nosso complexo de vira-lata. A segunda edição, atualizada e ampliada, foi publicada em 2021.
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