Por Luís Antonio Paulino
Conta a anedota que ao se deparar com um bêbado procurando algo sob um poste iluminado, o sujeito teria perguntado ao mesmo o que procurava, ao que o bêbado teria respondido ser a chave de seu carro. O sujeito então retrucou perguntando se foi ali mesmo que o bêbado perdera a chave, ao que ele respondeu que não, que tinha sido mais adiante, mas que lá estava escuro. A anedota serve para ilustrar a tendência das pessoas de procurarem respostas para suas inquietudes onde aparentemente seria mais fácil de achar e não onde realmente podem eventualmente estar.
Isso se passa hoje com o debate sobre a questão de desindustrialização no Brasil. A narrativa corrente é que o país passa por um grave processo de desindustrialização e regride a passos rápidos à condição de exportador de produtos primários, em uma espécie de repetição de nossa sina de economia colonial exportadora de bens primários. Para justificar a tese lança-se mãos dos números, que de fato parecem dar provas irrefutáveis: nos últimos 40 anos o PIB da indústria brasileira caiu de 36% para 11% do PIB nacional.
Enquanto isso, a pauta brasileira de exportações caminhou no sentido oposto, concentrando-se basicamente em produtos agrícolas primários, principalmente a soja, carne e commodities industriais com pouco valor agregado, como petróleo e minério de ferro. Na nossa pauta de comércio com a China, por exemplo, praticamente 100% de nossas exportações são produtos extraídos diretamente do reino mineral ou animal, como soja, petróleo, carne in natura e minério de ferro, mas praticamente 100% de nossas importações da China saem das fábricas chinesas, como maquinários, equipamentos, produtos elétricos e eletrônicos e mais recentemente os carros elétricos.
Que a nova divisão internacional do trabalho trazida pela hiper globalização do final do século 20 e início do século 21 parece ter reservado para a China o papel de fábrica do mundo e para o Brasil o papel de fazenda do mundo, parece não haver muita dúvida. De fato, como demonstram as várias teorias de comércio internacional, quando as economias se abrem, como foi o caso do Brasil, a partir do início dos anos 1990, a tendência é que cada uma comece a se especializar naquilo que produz com maior eficiência. No caso do Brasil parece não haver dúvida, seja pelas condições naturais, seja pelos investimentos públicos e privados realizados na área, que nos tornamos realmente os campeões na produção e na exportação das principais commodities agrícolas comercializadas no mundo atualmente.
Conforme noticiou o jornal Folha de S. Paulo (10/07/2023), “Projeções do Departamento de Agricultura dos EUA consideram que o agro brasileiro deve liderar o aumento da produção de alimentos e das exportações até 2027”. Segundo essas projeções, a produção brasileira de alimentos deve aumentar 69% até 2027, contra 12% dos Estados Unidos, 34% da Rússia, 28% da Índia, 11% da China, 22% da Austrália e 44% da Argentina. As exportações brasileiras de alimentos segundo as mencionadas projeções devem aumentar 101% no mesmo período, contra 45% da Argentina, 36% da Rússia, 24% dos Estados Unidos e 23% da Austrália.
Mas esses números, até pela sua exuberância, escondem um outro fato que tem passado desapercebido na maioria das análises que tratam sobre o tema da desindustrialização do Brasil, qual seja, o crescimento cada vez maior da indústria nacional de alimentos, que já é, dentre todos os ramos industriais do País, o que mais emprega pessoas. Para ilustrar o falamos recorremos a um artigo, publicado pela Folha de S. Paulo, em 10 de dezembro do ano passado, assinado por Fernando Canzian, intitulado “Commodities fortalecem indústria e Brasil vira ‘supermercado do mundo’”.
Segundo a matéria, a queda acelerada da participação da indústria de transformação no PIB esconde segmentos que vêm batendo recordes e tudo relacionado com as commodities agrícolas exportadas. Prossegue a matéria informando que o Brasil se consolidou com o maior produtor mundial de alimentos industrializados com um volume de 64,7 milhões de toneladas em 2022, à frente dos Estados Unidos. Informa também que nos setores de petróleo e mineração há crescente beneficiamento de produtos brutos, impulsionando cadeias industriais. Na siderurgia, a ascensão e o beneficiamento das commodities vêm provocando investimentos de R$ 12,5 bilhões ao ano. O plano estratégico de US$ 102 bilhões da Petrobras 2024-2028 prevê US$ 17 bilhões para as áreas de refino, transporte e comercialização, com a conclusão de algumas refinarias, o que agregará valor ao óleo bruto.
Mas é na alimentação que o Brasil se destaca. Conforme a matéria, com “38 mil empresas com dois milhões de empregos formais e diretos, o setor [de alimentos] tornou-se o maior ramo da indústria de transformação, com 24,3% de participação no total de vagas. Além destes empregos diretos, agrupa outros 10 milhões na cadeia produtiva, segundo a Abia (Associação Brasileira da Indústria de Alimentos). No total, responde por 12% de todas as pessoas que trabalham no país”. Ainda segundo a matéria, “O setor processa 58% do valor da produção de alimentos do campo e grãos brutos têm crescente participação na engrenagem industrial voltada aos mercados interno e externo. Nos últimos sete anos, as exportações de alimentos industrializados saltaram de US$ 35,2 bilhões para quase US$ 60 bilhões (+72%)”. “No setor de suco de laranja, em que o Brasil desenvolveu tecnologia para exportar o produto sem contato com oxigênio, o país responde por 75% do comércio global, fatura R$ 2,7 bilhões ao ano e gera 200 mil empregos diretos e indiretos”.
Esse comportamento dinâmico do setor de alimentos também se reflete na dinâmica de crescimento regional do País. Segundo outra matéria da Folha (10/07/2023), assinada por Canzian e Zafalon, “No novo Censo do IBGE, Centro-Oeste e Norte do Brasil, fronteiras agrícolas mais recentes, foram as únicas regiões com aumento populacional maior do que a média nacional. Cresceram 1,23% e 0,75%, respectivamente, acima dos 0,52% no país”. Ainda segundo a matéria, “Em 16 anos, os PIBs de Mato Grosso, Tocantins, Piauí e Rondônia cresceram em ritmo muito superior ao de vários estados — e mais que o dobro em relação ao paulista”.
Destaque-se, finalmente, que o excepcional desempenho do setor tem ocorrido com um apoio muito menor do que o governo brasileiro tem dado a outros setores – como a desoneração da folha de pagamentos, por exemplo – é ínfimo, se comparado ao que outros países dão aos seus produtores agrícolas e de alimentos. Diferentemente de outros setores, a produção de alimentos, mais do que uma questão puramente comercial, é uma questão política da maior importância, uma vez que nenhum país quer deixar a alimentação de sua população unicamente na dependência de importações. O fato, portanto, de o Brasil ser um campeão mundial na produção de alimentos é algo que precisa ser valorizado, pois temos para oferecer ao mundo o único produto sem o qual as pessoas não podem viver, que é a comida.
Obviamente não podemos escamotear os problemas que existem na área, como a excessiva concentração da propriedade das terras nas mãos de grandes empreendimentos capitalistas voltados prioritariamente para exportação, quando, na verdade, a agricultura familiar, que detém uma percentagem menor das terras é a grande responsável para pôr a comida na mesa dos brasileiros e, não menos importante, o processo agudo de desnacionalização de nossa indústria de alimentos, de máquinas e equipamentos agrícolas e insumos para a agricultura. Atualmente A indústria brasileira de alimentos, insumos e implementos agrícolas está quase totalmente nas mãos de um pequeno grupo de grandes multinacionais com sede nos Estados Unidos, Europa e China que atuam no setor em nível global. São questões que qualquer governo comprometido com a soberania nacional e a soberania alimentar do Brasil deveria olhar com mais atenção.
Leia o texto original na íntegra.