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Falar grosso com a Nicarágua e falar fino com os EUA?

Beto Almeida*

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A genial frase de Chico Buarque de Hollanda definiu em linhas gerias, anos atrás, o que deve ser nossa política externa, já rotulada como ativa e altiva: “Não falar grosso com a Bolívia e não falar fino com os EUA”. Se considerarmos ter sido o próprio presidente Lula quem definiu, ao modo popular , como sempre, uma das fórmulas para entender a integração latino-americana, “crescer juntos” enfatizou, a expulsão da Embaixadora da Nicarágua , Fúlvia Castro, na semana que passou, vem compor um leque de interrogações que muitos do campo progressista vêm fazendo sobre a política externa ditada pelo Itamaraty, no Brasil e no mundo, especialmente no BRICS.

O Embaixador do Brasil em Manágua, Breno Dias da Costa, indicado para aquela embaixada pelo Governo Bolsonaro, criticara publica e abertamente o Presidente Daniel Ortega, exercendo, desta forma, não apenas uma não-diplomacia, conflitante com o Estatuto da carreira, mas especialmente violando a Constituição Brasileira que estipula o respeito à Autodeterminação dos Povos e à não ingerência assuntos internos de outros países, como princípios constantes de suas cláusulas pétreas. O que não impediu terem sido pisoteadas pela terrraplanice que inspira muitos dos Embaixadores vinculados ao lamentável chanceler Ernesto Araújo. O surpreendente é a tolerância do Itamaraty com essa clara violação de nossa Constituição, e em território marcado pela dignidade de uma pátria soberana inspirada em Augusto César Sandino.

Lula conheceu Fidel em Manágua: amizade de causas!
Lembro Sandino, não por acaso. Foi em Manágua, a 19 de julho de 1980, que o presidente Lula, em plena Praça da Revolução, conheceu Fidel Castro, selando, ali mesmo, uma amizade de uma vida inteira. Amizade de causas, de ideias, de sonhos libertários, de compromissos com a libertação de todos os povos das garras erguidas pelo imperialismo. De lá pra cá, Lula e o PT, a Cut e o MST, tornaram-se grandes parceiros não só de Cuba como da Nicarágua, construindo várias iniciativas conjuntas para a integração latino-americana, entre elas o Foro de São Paulo. O PT e a Frente Sandinista de Libertação Nacional são partidos irmãos, integrantes do Foro de São Paulo. Tem cabimento chegar ao nível de uma expulsão sob uma controvertida categoria de exercício de reciprocidade, quando a Chancelaria Nicaraguense não expulsou o embaixador brasileiro? O diplomata bolsonarista foi convidado a explicar-se – face suas reiteradas críticas públicas ao governo sandinista. – mas, ao invés de dialogar, deixou o país centro-americano e plantou na Folha. – jornal de inapagável conivência com a ditadura brasileira e seus porões mais escuros. – a versão que teria sido expulso. Não houve ato de expulsão. Mas enquanto o embaixador bolsonarista sujava a imagem do Brasil e do presidente Lula em solo sandinista, a Embaixadora Fúlvia Castro, digna representante das mulheres nicaraguenses, daquela cepa que participou da Revolução, como guerrilheira, mas, indo além, registrando hoje ser a Nicarágua um dos cinco países com melhor equidade de gênero em todo mundo. Nicarágua está competindo com os escandinavos neste quesito. O que torna a alegada reciprocidade uma posição política contra países que esgrimem políticas transformadoras e de desafio ao decadente império dos EUA.

A injusta expulsão da Embaixadora Fúlvia Castro termina por premiar uma provocação ao estilo bolsonarista. Há quem duvide da capacidade da diplomacia de corte terra plano de chegar a esses extremos? Vale lembrar que o Chanceler Ernesto Araújo, que confessou acreditar na planície da Terra, chegou a organizar, sob patrocínio de Mike Pompeo, Secretário de Estado de Donald Trump, um plano para uma ação militar contra a Venezuela, que seria aprovado na Reunião do Grupo de Lima, o que apenas não ocorreu porque o General Mourão, então vice-presidente da república, desembarcou surpreendente na capital peruana, impediu a fala do chanceler, e, falando em nome do Brasil disse : “nós condenamos o chavismo e o governo de Nicolás Maduro, mas o Brasil não vai participar de qualquer ação militar contra a Venezuela”. Falava em nome das FFAAs, enquanto Araújo pretendia falar como ventríloquo do império. Nada disso absolve Mourão de suas posições, mas as FFAAs, falaram em seu nome, comunicando conhecida doutrina estratégica que buscar impedir qualquer conflagração militar próximo às fronteiras, exibindo a consciência que, muitas vezes, foi apresentada como alerta, pelo já falecido General Antônio Carlos de Andrada Serpa: o alvo principal é o Brasil!!!

O Embaixador da Periferia buscaria o diálogo?
O Embaixador Samuel Pinheiro Guimarães, o Chanceler da Periferia, autor dos geniais “Quinhentos Anos de Periferia” e “Desafios Brasileiros na Era dos Gigantes”, um dos mentores do Mercosul, possivelmente se anteciparia, por meio de diálogo, para evitar a truculência da expulsão da representante sandinista, o que vai contra a ideia de “crescer juntos”, como preconiza Lula. Os laços entre Brasil e Nicarágua são amplos, profundos, semeados também pelas Brigadas de Solidariedade, que o povo brasileiro enviou à Pátria de Sandino. Tenho a honra de haver integrado uma destas brigadas, a Zumbi dos Palmares, que trabalhou na colheita do café em Matagalpa, então algo de operações terroristas da contra-revolução, patrocinadas pelos EUA. Foi em Managua que ouvimos, pela voz de Daniel Ortega, como apoio, o comunicado de que o Brasil adotara a Moratória da Dívida Externa, em pleno Governo Sarney.

Certamente, pouco se conhece da realidade nicaraguense atual, dotada de sistema de educação público e gratuito, similar ao seu sistema de saúde. A eletrificação alcança 95% do território nacional, e cerca de 90 por cento da população já tem acesso à água potável, algo que falta a pelo menos 30 milhões de brasileiros, num país incomparavelmente mais rico. Nicarágua é também auto- suficiente na produção dos alimentos que consome, e possui uma invejável rede de modernas rodovias interligando todo o país, quando, antes da Revolução, a costa do Pacífico não tinha qualquer comunicação, a não ser aérea, com a Costa do Mar Caribe. Estávamos lá, os brigadistas brasileiros quando presenciamos a chegada de dois navios da URSS carregados de livros, no idioma de Rubens Dario, em apoio à Cruzada Nacional de Alfabetização que, em apenas um ano e meio, erradicou a chaga do analfabetismo, apesar do terrorismo dos EUA, que ceifou a vida de centenas de professores. O Brasil nem meta possui para erradicar o analfabetismo apesar ter gerado ilustres educadores como Anísio Teixeira, Darcy Ribeiro e Paulo Freire, todos perseguidos pela ditadura cívico-militar. Mas, expulsa uma diplomata revolucionária, ao invés de dialogar.

A estatização da Universidade Centro Americana
Um renovado leque de iniciativas hostis é lançado pelos EUA contra o Governo Sandinista, e a resposta tem sido, mobilização popular, realização de eleições e, mais que isso, avanço e aprofundamento em medidas de interesse popular, como, recentemente, a plena estatização da Universidade Centro Americana, propriedade dos Jesuítas, que servia de base para ações de desestabilização do país, sempre financiadas pela NED e pela Usaid. Nicarágua tem resistido. A Frente Sandinista não aposentou por completo o aprendizado da Revolução Sandinista, e, não se desfez de suas armas, pois enxerga o mundo como um cenário de crescente intervenção militar imperialista apoiadas pelos EUA e outros inimigos dos Sandinismo. Evidentemente, a estatização contrariou uma parte das forças progressistas nacionais, vinculadas à igreja católica, sempre indisposta a aceitar qualquer questionamento ao modelo escola paga que lhe mantém. Relutando, também, na defesa do sagrado lema revolucionário sandinista de construir a educação pública, gratuita e laica!

É neste contexto que se torna ainda mais inesperada a posição do Itamaraty, optando por uma reciprocidade punitiva para com um país que tem um heroico histórico de resistir a agressões dos EUA, tendo sido invadido e agredido inúmeras vezes. Seria inconcebível que um Embaixador Brasileiro em Washington fizesse críticas públicas a políticas da Casa Branca, criticando, por exemplo, o apoio do governo Biden ao genocídio em Gaza, ou que nosso representante em Londres também condenasse a imposição de sanções da Otan à Rússia não? Por que contra a Nicarágua isso é lamentavelmente tolerado pelo Itamaraty? Por ser um país pequeno, os itamaratecas deduzem, arrogantemente, não possuir dignidade?

Conflitar o Brasil com a Integração
Algumas interrogações preocupantes vão surgindo no cenário: o Brasil nunca exigiu atas de nenhum país para reconhecer seu resultado eleitoral. Por que o faria apenas em relação à Venezuela?? Não seria a provocação do ex-embaixador brasileiro em Manágua, o bolsonarista, uma estratégia para conflitar Lula com os países com soberania o suficiente para não agir com vassalagem ante o governo dos EUA? Não seria esta, portanto, uma estratégia útil aos EUA, que opõem-se à integração da América Latina, fragilizando a unidade da Celac, por exemplo, integrada tanto por Brasil como pela Nicarágua e a Venezuela? Conflitar países que manifestam apoio ao BRICS, não é igualmente uma iniciativa para dificultar a consolidação de iniciativas que tendem a consolidar o processo de construção de um mundo multipolar, anunciado em nossa posição na ONU? Finalmente, qual o papel das forças progressistas no Brasil: assistir passivamente uma nova tendência em nossa política externa, ou, mais que aplaudir, reivindicar que a genial definição de Chico Buarque volte a prevalecer no Itamaraty, bloqueando este curso de “falar grosso com a Nicarágua e Venezuela e falar fino com os EUa”?

*Jornalista, Conselheiro da ABI

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