Publicado originalmente no Ação Amazônia
No limiar do século XIX, o naturalista alemão Alexander Von Humboldt colocava seus pés no vale do Amazonas pela primeira vez. Fascinado com a grandiosidade e a riqueza da vegetação que o arrebatou, o grande cientista proclamou as palavras parafraseadas no título deste artigo: um dia, a Amazônia há de ser o celeiro do mundo. O vaticínio do desbravador germânico possui significado ambíguo. Por um lado, ele faz clara referência ao potencial do fértil solo amazônico de alimentar o planeta; contudo, ele também pode ser compreendido de uma forma mais sutil e perigosa: ao profetizar a opulência da Amazônia, as palavras de Humboldt também expressavam a histórica ganância das potências coloniais europeias perante o gigantismo pantagruélico do continente verde brasileiro.
Humboldt não foi o primeiro estrangeiro a olhar para a nossa hinterlândia profunda com voracidade. Desde os primórdios do século XVII, os rios e vales da Amazônia vêm sendo palco de sangrentas confrontações, em que a ambição dos Impérios do Velho Mundo (Espanha, Inglaterra, Bélgica, França e Holanda) se choca com a tenacidade e a bravura luso-brasileira. Nominalmente integrada ao Império Espanhol pelo Tratado de Tordesilhas, a Amazônia tornou-se portuguesa (para tornar-se brasileira) de direito pelo arrojo missionário dos jesuítas e pela coragem sem mesura dos exploradores e militares reinóis. A espada lusitana e a cruz jesuítica misturaram-se em cultura, carne e espírito ao arco e flecha animista do nativo, criando a massa cabocla que antropizou as margens dos rios do continente amazônico.
Enquanto as missões jesuíticas levavam a fé cristã aos povos da floresta, “abrasileirando” essa fé com as tradições, lendas e mitos indígenas, as armas lusas expulsavam invasores de múltiplas procedências. Ainda que a história dos grandes feitos de nossos antepassados na região hoje nos seja sonegada, seu legado ainda pode ser encontrado em diversas formas na vida e no cotidiano da Amazônia brasileira. A predominância da Língua Portuguesa, a Fé Cristã e os costumes de origem ultramarina evidenciam o sucesso logrado pelos missionários da Companhia de Jesus em sua catequese bandeirante. Esta, ao mesmo tempo que organizava os índios em matrizes produtivas nas reduções e missões, cortava o verde da floresta, assenhorando-se de terras virgens e preenchendo-as de espírito luso-brasileiro. Por outro lado, as ruínas dos fortes de Santo Antônio de Gurupá no Pará e São José de Macapá no Amapá desenham na paisagem o brio e a genialidade militar dos velhos portugueses. Mesmo com recursos modestos e condições desvantajosas, esses patriarcas da nossa Nação conseguiram expelir dos vales e rios amazônicos a ambição holandesa, inglesa e francesa. Grandes (e, infelizmente, desconhecidos) homens como Bento Maciel Parente, Luís de Vasconcelos e Pedro Teixeira, acompanhados de hordas de nativos destemidos, constituíram a impenetrável fortaleza humana que impediu pela força das armas a transformação da Amazônia em um tabuleiro de disputa colonial.
Os portugueses impediram ao longo do século XVII a rapina das potências europeias sobre as riquezas amazônidas. Porém, a vitória luso-brasileira, ainda que formidável, não foi definitiva. No século XIX, quando os Impérios holandês e francês já haviam atingido a sua debacle, as riquezas da Amazônia despertaram a gula de outros predadores. Na segunda década do Oitocentos, surgiu um documento sigiloso enviado pelo Capitão da Marinha dos EUA Matthew Fawry a seus superiores que apresentava um plano ambicioso de retalhamento do território do então Reino Unido do Brasil. Além da criação de repúblicas autônomas no Recôncavo baiano, no nordeste brasileiro e no Rio Grande do Sul, o Memorando 157 de 1816 previa a repartição da própria Amazônia. A França abocanharia o território do Amapá; os EUA tomariam para si a ilha de Marajó e o restante se integraria em uma Republiqueta biônica, transformada em satélite estadunidense.
Ainda que o plano de desmembramento do Brasil, felizmente, não tenha conseguido alcançar êxito, chama atenção o paralelismo entre os focos de sublevação revolucionária nas primeiras décadas do Império (no Rio Grande do Sul, na Bahia, no Nordeste, no Maranhão e no Pará) e o mapa desenhado pelo projeto conspirador. Além das “sugestivas coincidências”, a presença de agitadores estadunidenses na revolta pernambucana em 1824 e a tentativa francesa e inglesa de formar uma república amazônida durante o levante da cabanagem evidenciam o interesse das potências do século XIX na fratura territorial do Brasil, que facilitaria sobremaneira a rapina e o controle das riquezas da Amazônia.
Mesmo diante do fracasso das tentativas de esfarelamento do país, frustradas pela espada altiva do Duque de Caxias, a ambição anglo-saxã pelas riquezas da Amazônia não arrefeceu. Com o desenvolvimento da técnica de vulcanização da borracha e seu emprego na atividade industrial, o látex extraído das seringueiras nativas da floresta amazônica tornou-se um recurso de grande valor, sendo cobiçado sofregamente pelos EUA, grande potência industrial emergente na segunda metade do século XIX. É justamente nesse contexto que uma outra figura vinculada à Marinha estadunidense, o Capitão Maury, ganha relevo. Além de articular secretamente uma expedição naval clandestina no Rio Amazonas, o militar também defendeu abertamente a formação de uma republiqueta biônica na Amazônia, que serviria de cartório dos interesses do vizinho do Norte. Apesar das violentas pressões sofridas pelo Imperador Pedro II, sua sabedoria e seu amor pelo Brasil o levaram a impedir a livre navegação estrangeira nos rios da Amazônia, sustando temporariamente as ambições imperialistas da Marinha dos EUA.
Porém, quase meio século depois do incidente com o Capitão Maury, a ganância ianque patrocinou mais uma aventura imperialista no continente amazônico: o famoso episódio do Bolivian Syndicate. Dada a precariedade da demarcação territorial na região, durante décadas, trabalhadores nordestinos (provindos especialmente do Ceará) adentraram o território da Bolívia no desenvolvimento da atividade de extração do látex das seringueiras, estabelecendo uma antropização brasileira em solo vizinho. Como explica em detalhe Everardo Backheuser, a diplomacia brasileira se articulava torno de uma solução pacífica para a Questão do Acre, aventando até a possibilidade de remover compulsoriamente os sertanejos gaúchos e cearenses da região. Porém, movidos pelo arbítrio intervencionista dos EUA e por uma visão demasiadamente servil, o vizinho andino apressou-se em conceder o atual território do Acre à exploração predatória da Bolivian Syndicate, uma Charter Company com sede em Nova Iorque, muito semelhante ao tipo de empresa utilizada pelos ingleses na colonização da África. Conscientes dos perigos envolvidos na presença de um apêndice intervencionista dos EUA no coração da Amazônia, o Itamaraty (liderado pela genialidade do Barão do Rio Branco) movimentou-se de forma rápida e eficiente para incorporar o Acre ao Brasil.
Ao longo das diferentes fases de organização institucional do Brasil (Colônia, Império, República Velha, Era Vargas e Regime Militar), ainda que a cobiça estrangeira pesasse sobre as riquezas da Amazônia brasileira, as lideranças políticas de cada época, mesmo com suas limitações e contradições, souberam se mobilizar na defesa da soberania territorial do nosso país. A bravura dos militares lusitanos, a sagacidade das grandes mentes do Império, a altivez diplomática do Itamaraty na República Velha, o projeto da Marcha para o Oeste na Era Vargas e a construção da Transamazônica junto do povoamento da região nas décadas de 1960-1970: cada uma dessas medidas, ao seu modo, impôs freios e obstáculos à rapinagem imperialista sobre nossos recursos. Todavia, esse compromisso com a salvaguarda da integridade e da soberania brasileira tem se tornado cada vez mais ausente na Nova República instituída pela Constituição de 1988. Desde o início dos anos 1990, nossa elite política tem agido de forma negligente e, por vezes, irresponsável no tratamento das ameaças estrangeiras sobre a Amazônia brasileira. A presença metastática de ONGs pseudofilantrópicas que funcionam como organismos disfarçados de intervenção alóctone na região, o descaso com a infraestrutura e a integração do Norte ao restante do país, o aumento injustificável e irracional de áreas imobilizadas e desantropizadas e a virtual criminalização de qualquer atividade produtiva ou de viabilização econômica em quase 50% do território nacional são retratos alarmantes da indiferença (ou mesmo cumplicidade) de boa parte das oligarquias brasileiras da Nova República com a rapina da Amazônia.
Faz-se urgente uma mudança drástica e estrutural na política nacional para a Amazônia; é hora de retomar as iniciativas históricas na defesa e no desenvolvimento da região, abandonando definitivamente o servilismo e a timidez diante da tutela dos países ricos sobre os destinos dos amazônidas e de sua terra. Porém, semelhante reviravolta política terá de ser antecedida por uma mudança de mentalidade. É preciso reaprender a pensar o Brasil e a Amazônia a partir das ideias telúricas produzidas por gente que de fato conhece a região e tem compromisso com a sua prosperidade. Isso não quer dizer isolacionaismo ou paroquialismo, mas quer dizer a rejeição das narrativas difundidas pelos grupos políticos que dizem buscar o Bem da Amazônia, mas, como muito bem apontado pelo Deputado Enéas Carneiro, têm em conta apenas os Bens da Amazônia. Infelizmente, essa máquina de propaganda encontra remanso em setores poderosos da imprensa nacional, que desconhecem sua própria terra e não têm qualquer pudor em atuar contra os interesses de sua própria gente. Torna-se a cada dia mais necessário que as mentes mais lúcidas da vida nacional ajudem o Brasil a se conhecer, libertando-se das correntes do imperialismo dos nossos dias, que age pelas armas da mentira e da propaganda. Este será o passo fundamental para a construção de um projeto político que contemple a Amazônia em toda a sua grandeza e potencialidade.
As palavras de Humboldt ecoam até os nossos dias, anunciando o dilema que devemos enfrentar. A Amazônia, que tem o potencial para ser o celeiro do mundo, em nosso tempo, tem sido apenas um celeiro de ganância, cobiça, arrogância, colonialismo e subserviência. Cada vez mais, se faz necessário nos reconciliarmos com a nossa história, buscando inspiração nos heróis e mártires do passado para seguirmos na luta contra os inimigos que nunca deixaram de conspirar contra nós e cobiçar nossas riquezas. Nossa hinterlândia verde não deve apenas alimentar a ambição estrangeira, mas deve ser o celeiro da prosperidade de toda a Pátria, especialmente dos homens e mulheres que escolheram esse canto do Brasil para erigir o seu lar.