Não é de fato possível pensar honestamente no que se quer de um país sem que se reflita, séria e responsavelmente, sobre as ideias que o guiam. No mesmo sentido Hannah Arendt, na sua tese clássica sobre mal banal e mal radical, nos instrui mais ou menos da mesma maneira.
Desde que, cinicamente, passaram a chamar a mentira de “pós-verdade” a necessidade da reflexão como hábito tornou-se ainda mais imperiosa. É nesse sentido que saudamos a excelente resenha, feita por Petronio Portella Filho, no GGN, como indispensável e por tal, a republicamos:
“Sou a favor de que todos apertem os cintos, desde que todos usem as mesmas calças.” Mark Blyth”
Economistas do mercado financeiro projetam, para o Brasil, um déficit primário de 0,7% do PIB em 2024 (último relatório Focus). Segundo a maioria deles, isso seria algo imoral, uma demonstração de “descontrole fiscal”. Curiosamente, na última edição do Monitor Fiscal (abril/2024), o FMI projetou, para os 188 países que ele monitora, um déficit primário médio de 4,9% do PIB em 2024. E o tom da referida publicação não é alarmista. Ou seja, aqui no Brasil, exige-se mais austeridade fiscal do que no exterior. Tentam impor ao governo Lula uma agenda de austeridade que o impediria de cumprir o programa eleitoral com que ganhou a eleição.
Tal campanha torna urgente a leitura de “Austeridade, a História de uma Ideia Perigosa”, de Mark Blyth. Trata-se do melhor e mais completo livro que já foi escrito sobre a doutrina da austeridade econômica. Com esse livro, Blyth se tornou o crítico mais respeitado das políticas de austeridade. Uma excelente tradução do livro foi publicada no Brasil pela editora Autonomia Literária. O livro é excelente fonte bibliográfica, além de uma leitura agradável.
Vou iniciar a resenha do livro com uma indagação. Como pode alguém em sã consciência ser contra a austeridade? Segundo os dicionários, todas as acepções do vocábulo austeridade são positivas. Austeridade significa autocontrole, comedimento, frugalidade, despojamento e sobriedade. Não é por acaso que os defensores da austeridade a defendem com base em princípios morais.
A questão é complexa. Começa que a “austeridade” dos economistas tem pouco a ver com as virtudes listadas pelos dicionários. Segundo os doutrinadores, a austeridade é necessária porque os governos – todos eles diagnosticados como inchados – precisam cortar despesas fiscais, única maneira de equilibrar as contas públicas. A “farra de gastos” que provocou aumentos no endividamento público deveria dar lugar a uma disciplina fiscal “moralizadora”, onde os governos só gastam o que arrecadam. A austeridade promoveria uma forma de deflação, ou seja, de redução dos preços. A economia se ajustaria via redução dos salários e preços, recuperando sua “competitividade” internacional. Tal política restauraria a confiança dos empresários, que voltariam a investir.
Segundo Blyth, a doutrina é problemática em vários níveis, a começar pelo diagnóstico do problema. O aumento do endividamento público das últimas décadas não foi resultado da expansão de gastos fiscais, muito menos do crescimento do Estado. Pelo contrário. O recente aumento do endividamento público, um fenômeno internacional, se deu numa época de ampla hegemonia do neoliberalismo. Tudo começou com uma crise bancária propiciada por uma das bandeiras mais caras do neoliberalismo, a desregulação do sistema financeiro.
Na prática, a dívida bancária foi socializada nos EUA e na maior parte dos países. A austeridade, argumenta Mark Blyth, é a contrapartida da operação de resgate dos bancos. Ela é também a forma como os bancos exigem que a dívida federal que eles transferiram para o Estado seja paga pelos contribuintes. Nas palavras de Blyth: “Austeridade não é apenas o preço da salvação dos bancos. Ela é o preço que os bancos querem que nós paguemos”.
O autor observa que, antes da crise de 2008, praticamente ninguém nos Estados Unidos ou no exterior estava preocupado com “o aumento descontrolado das dívidas públicas” nem com “o excesso de gastos fiscais”. Quando a crise financeira se instalou, em 2008, a resposta inicial dos governos foi keynesiana. Os gastos fiscais foram expandidos, o que impediu a repetição da Grande Depressão de 1930. Mas, a partir da reunião do G-20 de junho de 2010, o keynesianismo deu lugar a uma estratégia denominada “growth friendly fiscal consolidation”, um eufemismo para a velha austeridade fiscal.
As restrições de Mark Blyth às políticas de austeridade podem ser resumidas em dois argumentos. Em primeiro lugar, os sacrifícios que ela impõe não são dirigidos aos responsáveis pela criação dos ativos tóxicos que originaram a crise. A austeridade sacrifica trabalhadores, classe média e empresários do setor produtivo – mas não toca nos privilégios dos bancos e rentistas.
As dívidas de um governo são muito diferentes das dívidas de um indivíduo. A dívida de uma pessoa pode ser paga, inclusive na íntegra, se ela apertar o cinto. As dívidas do governo federal são quase sempre roladas. Tais dívidas só diminuem no longo prazo quando a taxa de crescimento do PIB é maior do que a taxa de juros real que incide sobre a dívida. A austeridade não funciona porque ela diminui a taxa de crescimento do PIB (e da Receita Fiscal), mantendo constante (ou aumentando) a taxa de juros.
As estatísticas são eloquentes. Das políticas de austeridade fiscal resultou não só aumento nas dívidas públicas como também aumento nas taxas de juros que os bancos cobram para financiá-las. Ou seja, os próprios credores privados desconfiam da austeridade. O mesmo pode ser dito das bolsas de valores. Quando os governos anunciam grandes cortes de gastos fiscais, isso quase sempre provoca quedas das bolsas, ao invés do prometido retorno da confiança do setor privado.
No Brasil, logo após o impeachment da Dilma, botaram na Constituição o “teto de gastos”, que na verdade era um esmagador de gastos. O “teto” vigorou durante sete anos. Era tão radical que não chegou a ser cumprido, mas impôs uma agenda de redução do Estado, privatizações e cortes de direitos sociais. Os resultados foram desastrosos tanto para o crescimento quanto para o endividamento público. A Dívida Líquida do Governo Central e BC, durante as gestões petistas, havia diminuído de 37,7% do PIB (dez/2002) para 26,0% do PIB (abril/2016). Mas ela sofreu grande aumento durante as gestões “austeras” de Temer e Bolsonaro, quando saltou de 26,0% (abril/2016) para 47,1% (dez/2022).
O autor mostra que a doutrina da “austeridade expansiva” foi amplamente contestada por vários autores, inclusive por um estudo do Fundo Monetário Internacional. Paul Krugman zomba de tal crença e a compara com um culto à Fada da Confiança. Mas, como observa Blyth, a austeridade é uma doutrina zumbi. Por mais que fracasse, ela se recusa a morrer em definitivo. Volta e meia ela sai da catacumba.
Mark Blythe é muito crítico da União Europeia, que considera uma armadilha monetária e fiscal. A UE, ao tentar impor o modelo austero alemão para o continente europeu, ainda por cima com moeda única, produziu décadas de estagnação e uma gigantesca crise bancária. A diferença entre a crise bancária americana e a europeia é o tamanho do problema. Nos EUA os bancos são grandes demais para falir; na Europa, grandes demais para o governo resgatar.
A solução, segundo Blyth, seria os governos desistirem de salvar grandes bancos inadimplentes. Tais operações de resgate provocam saltos na dívida pública, que servem de pretexto para a “austeridade” perpétua. As elites aumentam a dívida e o povo paga por ela. A austeridade produz estagnação e a relação dívida/PIB não diminui no longo prazo. Melhor do que o banco central salvar bancos comprando títulos podres seria permitir falências e liquidações extrajudiciais, de forma organizada, impondo os sacrifícios da austeridade a banqueiros e especuladores. Quando isso acontecer – se isso um dia acontecer − poderemos então defender a austeridade macroeconômica com base em princípios morais.
Caso tenha se interessado pelo tema, recomendamos essa nota bastante esclarecedora sobre austericídio, AQUI e AQUI.